Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

A Constituição de 1988 está prestes a completar 35 anos. No entanto, o regime de responsabilização dos parlamentares e agentes políticos à luz do texto constitucional continua sem uma compreensão muito clara pela literatura e pelos tribunais e isso vem cobrando fatura até os dias atuais. 
A coluna já se dedicou a essa questão em diversas ocasiões quando comentou a <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/adeus-imunidade-parlamentar-03032021">imunidade parlamentar</a>, o regime de <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/a-responsabilidade-civil-dos-parlamentares-8-de-janeiro-01032023">responsabilidade civil</a>, a lógica do processo por <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/o-que-e-quebra-de-decoro-parlamentar-28092022">quebra de decoro</a>, cujas condutas não se equiparam aos crimes de responsabilidade, entre outros. 
Por ocasião da condenação do senador Rogério Marinho (PL-RN) por improbidade administrativa, convém fazer uma breve recapitulação das idas e vindas da jurisprudência sobre a aplicação do regime da improbidade administrativa aos parlamentares.
Seguindo o itinerário do raciocínio jurídico básico, inicia-se recordando que a CF não prevê de forma clara que parlamentares devem estar submetidos ao regime de sanção por atos de improbidade administrativa. 
O art. 37, § 4º, da CF, limita-se a trazer que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. Tal dispositivo está localizado no Capítulo VII – da Administração Pública, pertencente ao Título III – Da Organização do Estado.
No entanto, o “Estatuto dos Congressistas” se inicia somente a partir do art. 53 da CF, localizado no Capítulo I – do Poder Legislativo, já na parte seguinte (Título IV – Da Organização dos Poderes). Assim, seja porque os dispositivos estão em partes diferentes do texto constitucional (critério topográfico); seja porque o constituinte não estabeleceu de forma expressa a aplicação do regime de improbidade administrativa aos agentes políticos (silêncio eloquente); seja pelo critério da especialidade, existem fortes indícios de que tal modalidade de responsabilização é incompatível com o regime parlamentar.
A lógica subjacente a esse entendimento é que o constituinte quis assegurar o máximo de liberdade de ação aos agentes que expressam a vontade do povo. Inclusive, essa é a razão de ser das prerrogativas parlamentares, por mais que exista uma ampla dificuldade de compreensão ou aceitação quanto à importância desse regramento.
Nesse sentido, é curioso notar que a própria redação originária da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm">Lei 8.429/1992</a>, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-improbidade-administrativa">Lei de Improbidade Administrativa</a>, tampouco previa sua aplicação aos agentes políticos, fazendo surgir na literatura forte corrente no sentido contrário a tal possibilidade. Ainda pende de julgamento o Tema 576 da Repercussão Geral (ARE 683235) sobre essa questão, qual seja, a possibilidade, ou não, de processamento e julgamento de prefeitos, por atos de improbidade, com base na Lei de Improbidade.
Adianta-se que tal controvérsia só foi “corrigida” com o advento da Lei 14.230/2021, que deu nova redação ao art. 2º da Lei de Improbidade, pelo qual agora o agente político é expressamente considerado agente público para os fins da LIA. Mas, ainda assim, pontua-se aqui de lege refenda, tal aplicabilidade subverte a ratio da responsabilização parlamentar. Como já ficará claro adiante, não há espaço para o manejo de ações de improbidade contra atos parlamentares.
À luz da redação originária da Lei de Improbidade, ainda havia a divergência sobre a competência para julgamento da ação correspondente. Isso porque o art. 102, inciso I, alíneas b e c, da CF, não menciona expressamente a competência do STF para julgar ação de improbidade.
Ocorre que, em se tratando de ação de improbidade em face de autoridade com foro por prerrogativa de função, pareceria absurdo atribuir a competência para o seu processo e julgamento a um juiz de primeira instância, tendo em vista, especialmente, as consequências de uma eventual sentença condenatória: pelo art. 37, § 4º, da CF, além da indisponibilidade dos bens e o ressarcimento do erário, a condenação por improbidade administrativa pode acarretar a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos. Na prática, um condenado por improbidade torna-se um “não cidadão”.
Inclusive, como explicado <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/lei-de-improbidade-administrativa-monopolio-vs-concorrencia-02022022">aqui</a>, essa peculiar natureza jurídica da ação de improbidade foi objeto de “correção” por parte do legislador, que retirou seu caráter estritamente civil, conforme o art. 17-D da Lei de Improbidade incluído pela Lei 14.230/2021. Trata-se de ação “repressiva”, de caráter sancionatório.
Só isso deveria ser o suficiente para afastar a competência dos juízes de primeira instância para processar e julgar, com base na LIA, as autoridades que estão submetidas, em matéria penal, à competência originária de tribunal. Aqui, não só os parlamentares, mas todos os agentes que gozem de foro por prerrogativa de função.
Em um primeiro momento, foi precisamente essa a jurisprudência que se formou no STF. Como leading case, cite-se a medida cautelar concedida pelo então ministro Nelson Jobim na Rcl 2.138 (de 2002), logo reiterada no julgamento de <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&amp;docID=521649">mérito</a>, e repetida outras vezes, como na Rcl 2.186 (de 2008).
O entendimento foi o suficiente para suspender a eficácia das decisões de primeira instância, por usurpação da competência do STF, sob o argumento de que agentes públicos responderiam apenas por crimes de responsabilidade, não pelo regime de improbidade. 
Após esse episódio, a Lei 10.628/2002 chegou a acrescentar o § 2º ao art. 84 do Código de Processo Penal para prever expressamente que a ação de improbidade seria proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública. No entanto, como sabido, tal dispositivo foi declarado inconstitucional por ocasião da ADI 2.797 (em 2005), sob o fundamento de que, no plano federal, a competência dos tribunais superiores é matéria sob reserva de Constituição.
Em todo caso, esse primeiro entendimento da inaplicabilidade da LIA foi o suficiente para paralisar os feitos e, logo, passado pouco tempo, como os reclamantes já não mais ocupavam cargos políticos, simplesmente determinou-se o arquivamento das ações.
Mas, como consequência do julgamento da ADI 2.797, assentou-se que compete ao primeiro grau de jurisdição o julgamento das ações de improbidade administrativa contra agentes políticos, ocupantes de cargos públicos ou detentores de mandato eletivo, independentemente de estarem, ou não, em atividade. 
Essa é a atual jurisprudência do STF sobre a matéria e que explica, mesmo parecendo algo absurdo, o caso do senador Rogério Marinho.
Como amplamente <a href="https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/juiz-condena-rogerio-marinho-por-funcionaria-fantasma-na-camara-de-natal/">noticiado</a>, o parlamentar teve decretada contra si a pena de perda da função pública por improbidade administrativa, em ação que tramitou na 6ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Natal, por fatos ocorridos entre outubro de 2005 a novembro de 2006, quando o atual senador ainda era vereador pela Câmara Municipal de Natal. A sentença pode ser lida <a href="https://www.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2023/06/08200269820148205001-101134890-230601-2148211_020620235651.pdf">aqui</a>.
A própria fundamentação da sentença se aparta da jurisprudência do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">STF</a> sobre a LIA firmada, inclusive, já à luz da Lei 14.230/2021, notadamente quanto à exigência de prova do elemento subjetivo (dolo específico). 
Por ocasião do julgamento do Tema 1.199 da Repercussão Geral, o STF fixou diversas teses, com destaque para a de nº 3: “A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente”. Ou seja, vê-se que o STF admitiu uma retroatividade média na matéria de tipificação dos ilícitos improbidade, aplicando-se a lei nova a ato ou fato pretérito, desde que o processo judicial não estivesse definitivamente julgado. Com isso, indutivamente, seria possível inferir que todo o novo regramento de lex mitior da Lei 14.230/2021 alcançaria o caso do mencionado senador porque ainda não julgado na data de sua vigência.
No que diz respeito à perda da função pública, por exemplo, a sentença afronta a literalidade do art. 12, § 1º, da LIA, com redação dada pela Lei 14.230/2021, cuja redação é translúcida em esclarecer que a sanção de perda da função pública “atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração”. Assim, não seria dado ao juiz determinar a perda do mandato atual de senador da República. Ocorre que o referido dispositivo foi suspenso por <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15355453796&amp;ext=.pdf">liminar monocrática</a> (ainda não submetida a referendo na data em que se escreve o presente texto no dia 5 de junho) na ADI 7.236.
Com efeito, citando jurisprudência firmada antes do advento da Lei 14.230/2021 (o REsp 1.069.603 foi julgado em 2014), o juiz registra à página 66 da sentença: “Anoto, apenas, o entendimento deste magistrado (rectius) no sentido de que a perda da função pública se estende a todos os cargos que o condenado ocupa na administração, e não somente àquele em que se deram os atos de improbidade. O STJ, inclusive, chegou a firmar posicionamento no sentido de que a expressão função pública prevista nos incisos do art. 12 da LIA abrange todo e qualquer vínculo funcional do agente com a administração, na extensão conceitual do art. 2º da Lei 8.429/92. Em outras palavras: a penalidade de perda da função pública imposta em ação de improbidade administrativa, pode atingir tanto o cargo que o infrator ocupava quando praticou a conduta ímproba quanto qualquer outro que esteja ocupando ao tempo do trânsito em julgado da sentença condenatória (dentre outros, REsp 1.069.603/RO, Rel. Min. Humberto Martins)”.
Insista-se: embora a nova LIA tenha incorporado diversos entendimentos jurisprudenciais (como explicado <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/nas-adis-contra-nova-lei-de-improbidade-stf-julgara-jurisprudencia-do-stj-09112022">aqui</a>), nesse ponto, houve clara “correção legislativa” da jurisprudência no novo art. 12, § 1º, da LIA.
Em todo caso, não custa recordar que o art. 20 da LIA prevê que “A perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória”. Dessa forma, a efetiva perda dependerá de que a sentença passe pelo crivo das instâncias superiores, em caso de interposição de recurso.
No entanto, na linha do que se vem defendendo nesta coluna Defensor Legis, a compreensão constitucionalmente adequada da natureza da atividade parlamentar e do seu regime de responsabilização conduz a que tais agentes não podem estar sujeitos aos critérios e procedimentos de apuração de responsabilidade próprios dos gestores públicos ou servidores administrativos.
Essa possibilidade conduz a um indesejado bis in idem com o regime de responsabilização por quebra de decoro (art. 55, inciso II, da CF), bem como à permissão absurda de que um juiz de primeiro grau, sem a concordância do povo, determine a destituição do mandato de um agente político eleito.
Como já argumentado <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/o-que-e-quebra-de-decoro-parlamentar-28092022">aqui</a>, o constituinte parece não ter deixado dúvidas de que quis estabelecer um regime de responsabilização especial para os parlamentares. Da mesma forma que já não se poderia imputar crimes de responsabilidade aos congressistas, tampouco seria possível processá-los por improbidade administrativa.
Segundo a Constituição Federal, as condutas praticadas por parlamentares somente são subsumíveis à averiguação em sede de processo por quebra de decoro parlamentar ou ação criminal correspondente. Fora disso, a rigor, só o crivo das urnas para acarretar responsabilização política dos parlamentares.

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JOTA

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