Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

Em se tratando de comissões parlamentares em geral, a CF, art. 58, § 1º, determinou que na sua instalação seja “assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa.” A exigência de proporcionalidade partidária na representação também se aplica às CPIs e CPMIs do art. 58, § 3º, da CF.
O principal objetivo da previsão é fazer com que as forças políticas que compõem a Casa Legislativa sejam efetivamente refletidas nos seus trabalhos.
Ocorre que a expressão constitucional “tanto quanto possível” conferiu a abertura para que os regimentos internos das Casas Legislativas disciplinem os contornos para o cumprimento desse requisito. Dessa forma, a rigor, eventuais controvérsias relacionadas a esse tema resultariam matéria interna corporis.
Isso atrairia a aplicação do Tema nº 1.120 da Repercussão Geral do STF (já comentado <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/direito-parlamentar-stf-20012021">aqui</a> e <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/enrolled-bill-doctrine-ebd-07072021">aqui</a>), cuja tese aprovada prevê que “Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis”.
Nada obstante, parece difícil que essa tese venha a ser aplicada ao <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6635253">MS nº 39.154</a>, impetrado pelo partido Novo na última sexta-feira dia 05 de maio e distribuído ao ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/luis-roberto-barroso">Luís Roberto Barroso</a>. A ação discute a composição da <a href="https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/04/26/pacheco-le-requerimento-e-cpmi-dos-atos-antidemocraticos-sera-instalada">CPMI dos atos de 8 de janeiro de 2023</a>, que contará com 15 senadores, 15 deputados e igual número de suplentes, aos quais se somam mais um representante da minoria de cada Casa em sistema de rodízio.
No último dia 26 de abril, mesmo dia em que o requerimento foi lido na sessão conjunta do Congresso Nacional, o presidente da Câmara dos Deputados, <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/arthur-lira">Arthur Lira</a>, encaminhou ao presidente do Senado Federal a relação de partidos e blocos para fins de definir a proporcionalidade da comissão.
E aqui reside a controvérsia: devem ou não ser considerados no cálculo da proporcionalidade os partidos que não atendam à cláusula de desempenho do art. 17, § 3º, da CF, inserida pela EC nº 97/2017? A rigor, essa norma constitucional disciplina tão somente o acesso ao fundo partidário e ao fundo especial de campanha e direito de antena (acesso gratuito a rádio e televisão).
Mas o art. 9º do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), com redação dada pela Resolução nº 30, de 2018, exige o atendimento do art. 17, § 3º, da CF para que o partido tenha direito a uma liderança. Assim, partidos que não tenham alcançado a cláusula de desempenho não têm direito a indicar um líder e ficam sem uma série de prerrogativas regimentais (vide, por exemplo, o RICD, art. 10, sobre o uso da palavra, designação de servidores, etc.).
Nada no regimento foi dito a respeito de os partidos que não atendem ao art. 17, § 3º, da CF não poderem participar nas comissões parlamentares. No entanto, a relação enviada pelo presidente da Câmara não considerou o partido Novo, que efetivamente não alcançou cumprir a referida cláusula de desempenho nas últimas eleições.
Vale registrar que, ao todo, foram 15 os partidos que não atingiram o número mínimo de votos da regra constitucional em comento nas eleições de 2022: PSC, Patriota, Solidariedade, Pros, Novo, PTB, PCB, PMB, PRTB, PSTU, Agir, DC, PMN.
Somente conseguiram cumprir a cláusula de desempenho os seguintes partidos: PL, Federação PT/PCdoB/PV, União Brasil, Progressistas, Republicanos, MDB, PSD, Federação PSDB/Cidadania, PDT, PSB, Federação PSOL/Rede, Avante, Podemos.
Daí que, por ter ficado de fora do Ofício nº 88/2023/SGM-P enviado pelo presidente Lira, o Novo impetrou o MS nº 39.154.
Na petição inicial, o partido argumenta em síntese que, precisamente porque as CPIs constituem direito fundamental das minorias partidárias, a decisão viola o art. 58, §§ 1º e 3º, da CF. A agremiação sustenta ter direito líquido e certo a ter representantes na CPMI, nos termos do art. 10-A do Regimento Comum do Congresso Nacional (RCCN),<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> que prevê uma vaga a ser preenchida em rodízio exclusivamente pelas bancadas que não alcancem, no cálculo da proporcionalidade partidária, o número suficiente para participarem das referidas comissões.
O Novo enfatiza que a ação versa, não sobre a interpretação de normas regimentais, mas sobre o cumprimento da Constituição. Insiste em que o suposto ato coator praticado pelo presidente da Câmara e endossado pelo presidente do Senado mistura normas distintas, pois o regramento sobre a existência ou não de liderança por minorias (uma questão meramente regimental) não tem a ver com a composição das comissões pelas mesmas minorias (assunto que tem assento constitucional).
Na argumentação do Novo, a proporcionalidade partidária nas comissões não pode ficar condicionada ao atendimento da cláusula de desempenho do art. 17, § 3º, da CF. Na prática, a interpretação conjugada desse dispositivo com o art. 58, § 3º, da CF esvaziaria o direito constitucional de participação das minorias. Seria interditada a participação não só do Novo como de todos os demais partidos minoritários nas CPMIs.
O partido pediu a concessão de liminar para assegurar sua participação na vaga de rodízio destinada às bancadas minoritárias e para que seja determinado à autoridade coatora o envio de novo ofício, com a relação de todos os partidos políticos e blocos que compõem a Câmara dos Deputados, mesmo que o partido não tenha atingido a cláusula de desempenho.
No momento em que se escreve este texto (no dia 7 de maio), o ministro Roberto Barroso ainda não analisou o pedido liminar. Em despacho exarado no mesmo dia da impetração, limitou-se a registrar que o faria somente após a apresentação das informações pela autoridade impetrada. Mas, assim como se fez na <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/pode-o-stf-determinar-a-criacao-da-cpi-da-pandemia-31032021">vez passada</a> quando o assunto envolvia CPIs, esta colunista passa a tecer alguns comentários que podem ser úteis no assunto.
Nesse sentido, não custa lembrar que a matéria “composição de CPIs” já foi reconhecida como de estatura constitucional no passado. Inclusive, a presente discussão reconduz, em parte, aos debates travados por ocasião da CPI dos Bingos nos MSs nº 24.831 e n. 24.849.
Naquele então as palavras usadas pelo ministro Celso de Mello na própria ementa de ambos julgados foram as seguintes: “A prerrogativa institucional de investigar, deferida ao Parlamento (especialmente aos grupos minoritários que atuam no âmbito dos corpos legislativos), não pode ser comprometida pelo bloco majoritário existente no Congresso Nacional”.
No caso da CPI dos Bingos, os líderes partidários se abstiveram de indicar os membros que comporiam o colegiado, com o objetivo intencional de frustrar a sua instalação e o poder de investigação. Com a decisão do STF, determinou-se que, diante da deliberada inércia dos líderes, incumbiria ao presidente da Casa Legislativa viabilizar a composição e a organização da CPI.
De modo geral, pode-se dizer que, em matéria de CPIs, a tática usada pelos governos é mais ou menos a seguinte: CPIs cujo objeto se volte para questões relacionadas ao núcleo do governo não podem ser criadas e todo um trabalho de articulação deve ser feito para que as assinaturas do requerimento sejam retiradas ainda antes da sua leitura pelo presidente da Casa Legislativa. E aqui vale mencionar que existe alguma margem – dentro do <a href="https://www.academia.edu/96474723/CRIAÇÃO_DE_CPIS_DE_DIREITO_DAS_MINORIAS_À_NEGAÇÃO_DO_PODER_DE_AGENDA_DAS_CASAS_LEGISLATIVAS">poder de agenda</a> inerente aos presidentes das Casas – para que essa leitura seja postergada, o que tende a ajudar o governo.
Se essa providência não for suficiente e a CPI for criada, os trabalhos se concentravam para que a CPI não fosse instalada. No entanto, como sabido, isso já não é mais possível, tanto pelo que restou decidido no caso das CPI dos Bingos, quanto no caso da CPI da Pandemia (<a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=756691807">MS nº 37.760</a>).
Então, a estratégia que se afigura possível é outra: se a CPI for instalada, os membros aliados do governo devem procurar limitar ao máximo as investigações e, por consequência, os resultados da CPI. Se forem em maior número numericamente, a dominância dos grupos majoritários é facilitada, assim como o trabalho de “prejudicar” as investigações. É desnecessário reiterar que isso esvaziaria o art. 58, § 3º, da CF.
Do ponto estritamente jurídico, exigir o cumprimento da cláusula de desempenho subverte a hierarquia das normas e significa usar uma previsão regimental (o art. 9º do RICD) inferior para esvaziar um dispositivo superior (o art. 58, §§ 1º e 3º, da CF).
Além disso, viola o princípio hermenêutico da especialidade das normas, pelo qual o art. 17, § 3º, da CF, ao excepcionar o princípio democrático, é uma regra de exceção, pelo que deve ser sempre interpretado restritivamente. As únicas restrições possíveis aos partidos que não alcançam a cláusula de desempenho são exclusivamente aquelas aí elencadas, não cabendo a conjugação com outro dispositivo constitucional para restringir outros direitos.
Como sabido, pelo princípio democrático, todo parlamentar eleito deve ser tratando igualmente (one man, one vote). Já se tratou desse assunto <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/inicio-da-legislatura-no-congresso-nacional-e-na-alesp-29032023">aqui</a>. Por extensão, os partidos políticos desses mesmos parlamentares devem receber o mesmo tratamento na exata proporção dos seus representantes eleitos (com assento no Congresso Nacional). E a própria CF contempla regras especiais, como os direitos das minorias, cuja restrição não seria possível pela norma excepcional do art. 17, § 3º, da CF.
Vista a discussão do MS nº 39.154 que envolve a proporcionalidade na Câmara dos Deputados, cabe aqui um breve comentário sobre a controvérsia (também a respeito da proporcionalidade) que se instalou no Senado Federal quanto à mesma CPMI dos atos do 8 de janeiro.
Segundo o Regimento Interno do Senado Federal (RISF), art. 78, parágrafo único, a proporcionalidade é fixada pelos quantitativos na primeira reunião preparatória que antecede a primeira e a terceira sessões legislativas ordinárias de cada legislatura. A partir desse cálculo é definida a representação numérica dos partidos e dos blocos parlamentares nas comissões permanentes. Só nessas.
Ou seja, esse “retrato congelado” da proporcionalidade no início da primeira e da terceira sessões legislativas não valerá para as comissões temporárias. Conforme a decisão tomada na <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/questoes-de-ordem/-/q/detalhe/2533">Questão de Ordem (QO) nº 2/2009</a>, as comissões temporárias do Senado (e as CPIs são uma espécie delas) têm sua composição formada considerando a proporcionalidade partidária vigente na data da leitura de seu requerimento de criação.
O principal fundamento para esse entendimento é o de que, em se tratando de comissões temporárias, seu caráter dinâmico e funcionamento por tempo determinado, exigem a consideração do “retrato atual” da proporcionalidade, de modo a considerar os blocos parlamentares compostos no dia da leitura do requerimento de instalação. Dá-se mais efetividade ao art. 58, § 1º, da CF
Por isso, quando o partido Rede, representado por seu único senador Randolfe Rodrigues, saiu do Bloco Democracia (composto por PSDB, MSB, União e PDT) e foi para o Bloco Resistência Democrática (que inclui PT, PSB e PSD) horas antes da leitura do requerimento de criação da CPMI dos atos de 8 de janeiro, isso impactou diretamente no cálculo da composição do colegiado. O movimento do único representante da Rede rendeu mais uma vaga à base do governo, numa estratégia parlamentar legítima à luz da referida QO.
Uma nova questão de ordem chegou a ser apresentada pela oposição quanto ao assunto, mas, como esperado, foi rejeitada pelo presidente da Mesa do Congresso Nacional em <a href="https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/112593?sequencia=8">decisão</a> publicada na última sexta-feira dia 05 de maio. A decisão endossou, na linha no presidente da Câmara, o entendimento de que a vaga de rodízio do art. 10-A do RCCN depende do cumprimento dos requisitos regimentais de cada uma das Casas Legislativas.
Eventual judicialização da data em específico tenderia a fracassar, pois na <a href="https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22SS%203678%22&amp;base=decisoes&amp;is_decisao_presidencia=true&amp;pesquisa_inteiro_teor=false&amp;sinonimo=true&amp;plural=true&amp;radicais=false&amp;buscaExata=true&amp;page=1&amp;pageSize=10&amp;sort=_score&amp;sortBy=desc&amp;isAdvanced=true">SS nº 3.678, </a>o então ministro presidente do STF, <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/gilmar-mendes">Gilmar Mendes</a>, proferiu decisão monocrática entendendo que o momento para aplicação do critério da proporcionalidade para fins de composição das CPIs – que no caso tinha sido fixado na data do resultado da eleição, nos termos do regimento interno da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia – era questão interna corporis.
Não é possível prever como o ministro Barroso vai decidir o MS nº 39.154. Mas, em conclusão a tudo o que se acaba de explicar acima, a reflexão que fica é a da absoluta relevância e importância desse instrumento investigativo: se as CPIs sempre resultassem em “pizza”, sem qualquer utilidade prática, não despertariam tanta preocupação no governo, nem tanto interesse da oposição em criá-las. A história política pós-1988 mostra que toda CPI conduz a algum desgaste da situação pela oposição.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “Art. 10-A. O número de membros das comissões mistas estabelecido neste Regimento, nas resoluções que o integram e no respectivo ato de criação é acrescido de mais uma vaga na composição destinada a cada uma das Casas do Congresso Nacional, que será preenchida em rodízio, exclusivamente, pelas bancadas minoritárias que não alcancem, no cálculo da proporcionalidade partidária, número suficiente para participarem das referidas comissões.”

Plenário da Câmara dos Deputados

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JOTA

O MS 39.154 do Novo e as estratégias de maioria e minoria na Câmara e no Senado

As CPIs e a proporcionalidade

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