Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

Após os atos de vandalismo do último dia 8 de janeiro de 2023, vem-se acompanhando no noticiário um amplo movimento pela punição dos responsáveis pelos atos de destruição, inutilização e deterioração promovidos contra o patrimônio público composto pelos edifícios-sedes da Praça dos Três Poderes.  
Como observou <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/pode-o-tcu-condenar-os-vandalos-do-8-de-janeiro-15022023">Rodrigo Luís Kanayama</a>, não sem uma pitada de reproche, até o TCU está engajado na responsabilização. Em sua coluna, o professor <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-do-anderson-schreiber/responsabilidade-civil-e-atentados-a-democracia-07022023">Anderson Schreiber</a> – mesmo sendo crítico do fenômeno da expansão da responsabilidade civil, valendo citar seu excelente livro "Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos" –, concordou que os danos do 8 de janeiro ao patrimônio público exigem reparação. 
Inclusive, apresentou como “modelo de solução” de lege ferenda – se esta colunista entendeu bem – o artigo 14 da Lei 10.671/2003 (Estatuto do Torcedor), que instituiu modalidade de responsabilidade objetiva solidária do clube e seus dirigentes por danos causados (por terceiros) aos torcedores dentro e fora dos locais de realização de eventos esportivos.  
O brilhante civilista também defendeu a possibilidade de responsabilização objetiva dos organizadores da mobilização (em seu texto, aludiu apenas aos “transportadores” e “financiadores”), os quais já poderiam ser enquadrados como “coautores” do ilícito, o que, com base no artigo 942, caput, in fine, do Código Civil (CC), atrairia a responsabilidade solidária. 
Entendeu ainda que, a partir aplicação do artigo 927, parágrafo único, do CC, seria possível enquadrar o transporte de pessoas e o financiamento das ocupações como “atividade de risco”. Recordou que, por vezes, a lei precisa fixar a responsabilidade sobre o agente que tem “as melhores condições de evitar o dano” (no caso, a criação de riscos de danos).  
O professor Schreiber não se referiu aos parlamentares em seu texto. Mas, como a “praia” desta Defensor Legis é comentar os assuntos do universo parlamentar sob uma perspectiva jurídica, aproveita-se o gancho para tratar da responsabilidade civil dos parlamentares em geral e pelos atos de vandalismo do 8 de janeiro. 
Segue-se a linha do tratado na <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/cabe-medida-cautelar-para-impedir-a-posse-de-parlamentar-diplomado-01022023">coluna passada</a> sobre a pretensão de impedir a posse de 11 deputados por “incentivar” os atos do 8 de janeiro. E mais adiante o ponto do respeitado civilista Anderson Schreiber será retomado. 
Em se tratando de responsabilidade civil dos parlamentares, a primeira pergunta a ser feita diz respeito à natureza do ato praticado pelo parlamentar. Seguindo a jurisprudência do STF já explicada <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/adeus-imunidade-parlamentar-03032021">aqui</a>, se as opiniões, palavras e votos foram exarados no exercício do mandato (in officio) ou em função dele (propter officium), o parlamentar estará acobertado pela inviolabilidade e não há que se falar em qualquer responsabilidade civil de sua parte. 
Bem, ao menos até agora essa é a interpretação que o STF entende adequada do artigo 53, caput, da CF. Isso porque existe um grande risco de o STF mudar de ideia, já que pende de julgamento o Tema 950 da Repercussão Geral (RE 632.115), em que se discute a responsabilidade civil do Estado, com fundamento no artigo 37, §6º, da CF, por ato protegido pela imunidade parlamentar. 
Como sabido, ao julgar o Tema 940 da Repercussão Geral (RE 1.027.633), o STF aprovou a seguinte tese: “A teor do disposto no artigo 37, §6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.  
No Tema 940, adotou-se a chamada tese da “dupla garantia”, proibindo-se que o particular ajuíze a ação per saltum, isto é, diretamente contra a pessoa do agente público.  
Como se vê, há uma clara conexão entre os Temas 940 e 950, com a diferença de que neste último – entende esta colunista – descabe qualquer direito de regresso contra o parlamentar ofensor, porque o artigo 53, caput, da CF tem a natureza jurídica de cláusula excludente de ilicitude ou tipicidade. Isso precisamente pelo valor adicional que representa a liberdade de expressão do parlamentar. Já se tratou do assunto <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/e-possivel-bloquear-perfis-de-parlamentares-nas-redes-sociais-16092020">aqui</a>. 
O cerne da controvérsia do Tema 950 é saber precisamente a abrangência dessa excludente, isto é, se alcança somente o parlamentar ou se afastaria também a própria responsabilidade civil do Estado prevista no artigo 37, §6º, da CF. 
O caso fático do Tema 950 é o seguinte: um juiz de direito ajuizou ação de indenização por danos morais contra o estado do Ceará (personificando a Assembleia Legislativa, que só detém personalidade judiciária para defender suas próprias prerrogativas e os atos de sua Mesa) por conta de ofensas contra ele proferidas por deputado estadual desde a tribuna da Casa Legislativa, utilizando como fundamento a ilicitude do ato de agente estatal, com base no já referido artigo 37, §6º, da CF. 
A sentença julgou procedente o pedido. O TJCE se limitou a reduzir o valor da condenação para R$ 200 mil. O RE interposto pelo Ceará arguiu a impossibilidade jurídica do pedido, por conta do artigo 53, caput, da CF. 
A <a href="https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=3978031">Advocacia do Senado Federal</a> postulou seu ingresso no feito como amicus curiae, sustentando a total irresponsabilidade do Estado pelos atos praticados pelos parlamentares, sob pena de afetar o núcleo do exercício parlamentar (os discursos políticos tornar-se-iam ilícitos). 
A base da argumentação é a de que o Congresso Nacional não faz parte da Administração Pública, de modo que o parlamentar manifesta sua opinião, não como órgão da Administração, mas como representante eleito pelo povo, agindo por motu proprio.  
Além da própria ratio da inviolabilidade parlamentar, ainda lançou o seguinte argumento ad absurdum: “Se a possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica for afirmada, eventuais indenizações pagas pela União e pelos Estados ou Municípios acabariam por interpelar a atuação parlamentar diante de seus eleitores – pagadores de impostos e, portanto, de quem sairão os recursos para suportar os prejuízos eventualmente reconhecidos –, obrigando-lhe (ao parlamentar), por constrangimento, a amainar a forma como conduz o seu mandato”. 
Como sabido, é justamente esse tipo de estado de coisas que a imunidade parlamentar pretende evitar.  
No entanto, a <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=750440772&amp;prcID=3978031&amp;ad=s">PGR</a> tem posição diferente e defende a adoção da seguinte tese de repercussão geral: “Nas lides que envolvem a responsabilidade civil da pessoa jurídica de direito público em razão de ofensas cometidas a terceiro por parlamentar, no exercício de seu mandato, deverá incidir a respectiva cláusula constitucional de inviolabilidade material (artigo 53 da Constituição), restando à entidade pública suportar integralmente o dano, consoante a teoria do risco administrativo, excluído o direito de regresso contra o parlamentar ofensor”. 
 A ver quando e como será julgado o Tema 950. Como se vê, a causa é importante, pois pode acabar reduzindo ainda mais o espectro do artigo 53, caput, da CF, cuja redação – não custa recordar – estabelece que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. 
Mas, retomando o fio do que se argumentava mais acima, ainda com base na jurisprudência do STF, tal proteção não alcança manifestações sem nexo de causalidade com a atividade ou com a condição de parlamentar. Quanto a essas manifestações, em tese, caberia a responsabilidade civil, sempre e quando, claro, preenchidos os seus requisitos.  
Aqui, desnecessário recordar que esta colunista discorda desse entendimento do STF. Parlamentares jamais deveriam responder civilmente por palavras, opiniões e votos, por ato próprio, e menos ainda por atos praticados por terceiros supostamente imbuídos pelo discurso parlamentar. 
Eis aqui onde mora o perigo do argumento do professor Anderson Schreiber – aqui deliberadamente distorcido por esta colunista, que o extrapola para o âmbito da responsabilidade civil dos parlamentares, que, repita-se, não foram mencionados no texto dele –: jamais deveria caber responsabilidade direta ou indireta (ou complexa) contra os parlamentares. A norma do artigo 53, caput, da CF, imuniza os membros do Congresso Nacional seja como “autores”, “coautores” ou “por ato de terceiros”. 
No caso dos atos do dia 8 de janeiro, poder-se-ia cogitar de uma eventual responsabilidade civil dos parlamentares por suposta “incitação” aos atos de vandalismo (cogitação essa que, repita-se, já foi afastada pelo <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/01/lira-defende-punir-deputado-que-incentivou-ataque-golpista-mas-isenta-3-do-pl.shtml">presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira</a>). Esse também chegou a ser o fundamento do pedido do Grupo Prerrogativas que foi <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2023/01/inq-4923-11-deputados.pdf">rejeitado na seara penal no Inquérito 4.923</a>. Mas a hipótese tampouco tem base de sustentação no plano civil. 
Não cabe a caracterização do discurso parlamentar como “atividade de risco”, com base no artigo 927, parágrafo único, in fine, do CC, com vistas à responsabilização civil de parlamentares por suas manifestações verbais, enquanto autores ou coautores de ilícitos. 
Além disso, os casos de responsabilidade indireta – leia-se, por ato de terceiro – são taxativos. A posição de “responsável garantidor” precisa vir expressamente contemplada pela lei. Para esta colunista, não cabe qualquer aplicação por analogia, seja do artigo 14 da Lei 10.671/2003, seja do artigo 932 do CC, para responsabilizar parlamentares por atos de outrem. 
Espera-se que, com relação aos atos do dia 8 de janeiro, os tradicionais pilares da responsabilidade civil (ação ou omissão, culpa, nexo de causalidade e dano) sejam mantidos, tanto para os parlamentares, quanto para os outros envolvidos. Não se defende em absoluto a impunidade. Mas não convém criar novas formas de responsabilidade subjetiva ou objetiva não abarcadas pelo direito brasileiro positivado.

atos golpistas

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JOTA

Não se defende em absoluto a impunidade, mas não convém criar novas formas de responsabilidade subjetiva ou objetiva

A responsabilidade civil dos parlamentares em geral e pelos atos de 8 de janeiro

Não se defende em absoluto a impunidade, mas não convém criar novas formas de responsabilidade subjetiva ou objetiva