De acordo com o artigo 113, inciso 2, da Constituição do Peru de 1993, o Congreso pode declarar a “incapacidade moral permanente” do presidente da República e, com isso, o cargo fica vago (assume o primeiro vice-presidente). Assim como comentado em relação ao instituto da ‘morte cruzada’ do Equador, essa declaração não equivale ao impeachment, o qual também tem previsão expressa nos artigos 99 e 100 da Constituição do Peru.
Do artigo 117, infere-se que o impeachment fica limitado às hipóteses de o presidente: 1) trair a pátria; 2) impedir eleições presidenciais, parlamentares, regionais ou municipais; 3) dissolver o Congresofora das situações autorizadas no artigo 134; ou 4) impedir o funcionamento ou reunião do Congreso ou dos órgãos do sistema eleitoral.
A figura da incapacidade moral do presidente foi inserida pela primeira vez na Constituição peruana de 1828 (artigo 83). Não constou na Constituição de 1934, mas voltou a aparecer no texto constitucional de 1839 (artigo 81), sob a expressão de “perpétua impossibilidade moral”, também para reconhecer a vacância do cargo de presidente da República. Desde então, o instituto foi mantido nas constituições seguintes, com pequenas modificações ao longo do tempo.
Embora sua natureza jurídica seja controvertida (aqui prefere-se considerá-la uma “sanção política”), o fato é que um dos problemas que envolvem sua aplicação é nunca terem sido definidas as condutas (ações ou omissões), por parte do presidente, que pudessem ensejar sua permanente incapacidade moral para o exercício do cargo. Além disso, a Constituição tampouco fixou o procedimento a ser obedecido, e sequer o quórum de votação.
Somente em 2003, houve um avanço, com o advento da Sentencia nº 0006-2003-AI/TC, em cujo § 3 o Tribunal Constitucional exortou o Congreso a que disciplinasse tal procedimento, prevendo necessariamente uma maioria qualificada (de não menos que os 2/3 do impeachment), pois seria atentatório ao princípio da razoabilidade que uma maioria simples pudesse destituir o cargo mais alto da nação.
Com isso, no mesmo ano de 2003, adicionou-se o artigo 89-A ao Regimento Interno do Congreso de la República, para estabelecer as regras:
- O pedido de vacância por incapacidade moral deve ser formulado por uma moção assinada por pelo menos 20% dos congressistas (o que resulta no número de 26, já que os membros do Congreso totalizam 130 lá). A moção precisa, ainda, especificar os fundamentos de fato e de direito em que se sustenta, indicar documentos ou o lugar onde tais documentos se encontrem;
- Tal moção tem preferência sobre todas as outras da ordem do dia e, recebido tal pedido de vacância, uma cópia é enviada ao presidente da República no prazo mais rápido possível;
- A admissibilidade do pedido exige o voto de pelo menos 40% (ou seja, 52) congressistas, devendo a votação ser efetuada na sessão imediatamente seguinte àquela em que a moção foi apresentada;
- Uma vez admitida a moção, a sessão de debate e votação do pedido de vacância ocorrerá no prazo de pelo menos 3 dias e, no máximo, até 10 dias, contados a partir da votação de admissão. É possível, no entanto, pelo voto de 4/5 (isto é, 104 congressistas), que seja acordado um prazo menor ou mesmo o debate e votação imediatos. Em todo caso, o presidente da República poderá exercer pessoalmente seu direito de defesa, pessoalmente ou com a assistência de um advogado, por até 60 minutos;
- Para declarar a incapacidade moral (e, portanto, a vacância da Presidência da República), é necessário o voto de 2/3 dos membros do Congreso (ou seja, 87 votos). A decisão constará de uma resolução do Congreso, que deverá ser publicada nas 24 horas seguintes, e vale a partir da comunicação ao presidente declarado incapaz moralmente, ao presidente do Conselho de Ministros ou da sua publicação, o que ocorrer primeiro.
Do que foi explicado acima, destaca-se que a regulamentação do procedimento para a declaração da incapacidade moral do presidente da República no Peru ficou a cargo, exclusivamente, do Congreso, o qual optou por atribuir a legitimidade para o pedido a um grupo de parlamentares.
Além disso, observa-se que não foi fixado um “órgão intermediário” com poderes para avaliar as condições de procedibilidade da moção, a qual vai direta e rapidamente ao plenário. A decisão, portanto, é puramente política.
Ademais, o único direito de defesa assegurado ao presidente é o tempo de 60 minutos antes do debate e votação do pedido de vacância, já que até mesmo o prazo de 3 dias acima comentado pode ser reduzido com a concordância de 4/5 dos congressistas.
Tais peculiaridades de desenho institucional estão longe de representar meros detalhes. Daí a impropriedade de se conceber a declaração de incapacidade moral peruana como uma modalidade de impeachment.
Isso porque, na prática, a figura da incapacidade moral do presidente da República no Peru confere a abertura para que seja possível sancionar uma grande quantidade de condutas não listadas no já referido artigo 117 do texto constitucional peruano (que ensejariam o impeachment). Na verdade, dado o apelo à moralidade, estariam abarcadas uma lista infinita de condutas que sequer são infração a qualquer norma jurídica.
A essa altura, parece desnecessário enfatizar os problemas envolvidos na aplicação de normas vagas como essa, que exigiriam técnicas mais sofisticadas de interpretação, inclusive de ponderação, de modo a conciliar outros interesses em jogo, notadamente para impedir seu uso de modo desarrazoado para embaraçar ou subtrair o exercício da presidência da República.
No caso do Peru, já foram destituídos 3 presidentes a partir da declaração de incapacidade moral: Guillermo Billinghurst, em 1914, Alberto Fujimori, em 2000, e Martín Vizcarra, em 2020. No caso desse último, a moção foi apresentada no dia 20 de outubro de 2020, admitida no dia 2 de novembro (com 60 votos a favor, 40 contrários e 18 abstenções) e aprovada no dia 9 de novembro do mesmo ano (com 105 votos a favor, 19 contra, e 4 abstenções).
Embora a frequência com que o instituto venha sendo utilizado na prática não sugira um número abusivo, é inegável que no Peru a declaração de incapacidade moral tem um procedimento fácil, simples, rápido, sem cláusulas de resfriamento e com poucas margens de articulação para o presidente da República.
Quanto a esse aspecto, trata-se do oposto do que se observa no impeachment brasileiro, que é um processo sumamente longo, que transcorre em duas Casas, com ampla possibilidade de virada de jogo. Reitera-se, no entanto, que, como as figuras não são equivalentes, a comparação fica um pouco distorcida.
Nada obstante, vem chamando a atenção iniciativas aqui no Brasil que pareceriam aproximar as duas figuras. Foi o caso, por exemplo, da declaração dada no último dia 17 de julho pela deputada federal e presidente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann, para quem é preciso que a Constituição seja alterada para fixar um mecanismo que obrigue o presidente da Câmara dos Deputados a pautar os pedidos de impeachment que envolvam crimes descritos objetivamente, fundamentados, públicos.
Como sabido, a Constituição de 1988 é omissa quanto aos detalhes do procedimento de impeachment e o Regimento Interno da Câmara dos Deputados – RICD, art. 218 (§§ 2º e 3º), atribuiu ao presidente dessa Casa Legislativa, em caráter monocrático, o juízo preliminar quanto ao cumprimento dos requisitos formais de admissibilidade do pedido.
Nem na CF, nem no RICD, foram fixados prazos para o exercício dessa competência, o que a deixaria no âmbito do poder de agenda do presidente da Câmara dos Deputados, o qual teria poderes para, conforme o seu juízo de conveniência e oportunidade políticas, escolher o momento para exercê-la. A rigor, não seria exigível uma imediaticidade na análise desses pedidos (embora tampouco tenha cabida uma demora muito longa e injustificada).
Sobre esse ponto, é aguardada a decisão que será dada no Mandado de Segurança – MS nº 38.034, ajuizado no último dia 2 de julho, pelo deputado federal Rui Falcão (PT-SP) e o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, sustentando existir omissão inconstitucional do presidente da Câmara dos Deputados em apreciar ao menos um dos mais de cento e vinte pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro. Com o writ, os autores pretendem suprir a alegada omissão.
Em resumo, sustentam que, ao julgar a ADPF nº 378, o STF reconheceu que “o recebimento operado pelo Presidente da Câmara dos Deputados configura juízo sumário da admissibilidade da denúncia para fins de deliberação colegiada”, de modo que os impetrantes teriam direito líquido e certo a tal apreciação sumária do pedido e o ato omissivo seria ilegal.
Os autos foram distribuídos à ministra Cármen Lúcia. Na tramitação, consta despacho do último dia 9 de julho do presidente da Corte entendendo que o caso não se enquadra no art. 13, inciso VIII, do Regimento Interno do STF (“São atribuições do Presidente (…) decidir questões urgentes nos períodos de recesso ou de férias”).
Ainda que implicitamente, trata-se do reconhecimento de que não há pressa nessa discussão, nem perecimento de direito em jogo no caso. Com isso, será incoerente que, mais adiante, sobrevenha uma decisão fixando um prazo (que não conta com qualquer suporte no texto da CF) para o presidente da Câmara dos Deputados exercer a competência atribuída pelo RICD.
Eventual decisão nesse sentido – além de subtrair as competências legislativas atribuídas às Casas Legislativas para disciplinar seus procedimentos internos (e, portanto, violar a separação dos poderes prevista no art. 2º da CF) – subverterá o desenho do impeachment no Brasil e sua natureza de processo jurídico-político, ou seja, para cujo andamento as circunstâncias (e a leitura dessa conjuntura pelos parlamentares) importam tanto quanto o preenchimento de formalidades jurídico-processuais.
Para além desse dado, não se pode exigir do presidente de uma Casa Legislativa que se dispa de suas vestes de parlamentar integrante de partido político e atue de modo estritamente neutro (ou apartidário), sobretudo quando ocupa o cargo porque foi eleito pelos seus pares, os quais sabiam de antemão de que o candidato, uma vez eleito, atuaria em favor dos interesses de seu partido ou bloco (seja da base do governo, seja da oposição, conforme o caso) e exerceria influência sobre os assuntos de sua alçada.
Ora, é natural e esperado que o presidente de uma Casa Legislativa assim proceda. Sequer do ponto de vista normativo poderia ser diferente. Ou, por acaso, é possível imaginar neutralidade de um presidente da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal? Isso seria negar a própria natureza política dos parlamentos e da atividade legislativa.
O presidente da Câmara dos Deputados é um agente político dotado de legitimidade representativa conferida por seus eleitores e também por seus pares, responsável pela prática de atos que, além de jurídicos, são políticos, e que terão impacto em outro Poder do Estado e na condução das políticas de governo.
O presidente da Câmara dos Deputados não é equiparável, portanto, a um servidor público que desempenha funções estritamente administrativas e opera por atos vinculados. É verdade que não se trata de um poder absoluto (o conferido pelo art. 218 do RICD), mas há sim juízo de conveniência e oportunidade política quanto ao momento, por mais que os juristas tenham dificuldades de lidar com isso.
É por todo o exposto que, acaso venha a ser dada, a decisão no MS nº 38.034 (e o mesmo raciocínio vale para a ADPF nº 867, noticiada aqui) seria tão teratológica quanto a que determinou a criação da CPI da Pandemia (MS nº 37.760), em que, na prática, sem qualquer base em sua própria jurisprudência, o STF substituiu o lugar do presidente do Senado Federal e esvaziou o poder de agenda da Casa Legislativa para acordar o momento de leitura do requerimento e instalação do referido colegiado investigativo. O tema foi tratado aqui.
Em resumo, a dinâmica sobre a admissibilidade das denúncias de impeachment até pode ser objeto de reformas regimentais, desde que oriundas do seio do próprio Poder Legislativo, jamais a partir de uma decisão do STF.
Outra iniciativa que acaba aproximando o impeachment da incapacidade moral peruana é o Projeto de Resolução da Câmara – PRC nº 49/2021, da deputada Adriana Ventura em coautoria com os deputados Paulo Ganime, Alexis Fonteyne, Tiago Mitraud e Vinicius Poit, todos do Partido Novo.
Pela proposta, pretende-se acrescentar o § 2º-A ao art. 218 do RICD para fixar o prazo máximo de 60 dias (30 dias, prorrogáveis por igual período), para que o presidente da Câmara decida fundamentadamente sobre o recebimento ou não da denúncia.
O PRC pretende adicionar, ainda, o § 2º-B, pelo qual a assinatura da maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados (ou seja, 257 deputados) tem o efeito de “receber” a denúncia automaticamente, de modo que esse “apoio” parlamentar seria o suficiente para iniciar a tramitação, enviando-se o processo já para a Comissão Especial do art. 19 da Lei nº 1.079/50, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento.
É duvidosa a constitucionalidade desse § 2º-B, que parece pretender conferir às denúncias de impeachment um efeito semelhante ao que o STF atribuiu aos requerimentos de criação de CPIs, fazendo-as operar de “pleno direito”, esvaziando o poder de agenda para a definição das prioridades nos processos decisórios legislativos.
É difícil prever se tais iniciativas parlamentares contam com o apoio necessário para serem aprovadas (seja a PEC, seja o PRC). O mais provável é que não, já que, se houvesse a maioria parlamentar necessária, nem o próprio presidente da Câmara conseguiria resistir às pressões, e as forças recairiam para a admissibilidade das próprias denúncias de impeachment, sem a necessidade de mudar o procedimento para facilitar o rito e, assim, viabilizar a tramitação desses pedidos represados.
No entanto, como sabido, dado o processo decisório do STF como é, uma simples decisão (inclusive monocrática) pode acabar tendo o mesmo efeito das propostas comentadas acima e mudar toda a dinâmica do processo político brasileiro em matéria de remoção do presidente da República (mas, claro, sem a legitimidade parlamentar). Por mais que o impeachment brasileiro seja mais demorado que a declaração de incapacidade moral peruana, na prática, serão poucas as diferenças entre os dois institutos se o STF intervir na questão.