Opinião e Análise

Ricardo Alberto Kanayama

Município que utiliza os valores recebidos do Fundo Nacional de Saúde (FNS) em ações diferentes das previstas (os "blocos de financiamento"), ainda que dentro da área da saúde, deve devolver tais valores? Ou seja, o desvio de objeto na saúde constitui débito do Município?
A Lei Complementar 141/2012 determina que se houver aplicação dos recursos em objeto de saúde diverso do originalmente pactuado, a entidade repassadora deve dar ciência ao TCU para que o ente recebedor devolva os valores (art. 27). Diante disso, o entendimento do TCU é de que o desvio de objeto, ainda que não tão grave quanto o desvio de finalidade ou o dano ao erário, constitui débito do Município (<a href="https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/">Acórdão 1.072/2017</a>).
<div id="pro-poder-analise-politica-duplicado-4a97710080f7d951df05" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('pro-poder-analise-politica-duplicado-4a97710080f7d951df05', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
Para o TCU, o desvio de objeto "representa ofensa ao interesse jurídico material da União em ver implementada uma determinada estratégia de saúde" e pensar diferente "poderia estimular os Municípios a gerir as parcelas oriundas do FNS como se fossem recursos próprios, desonerando seus próprios orçamentos, mantendo não realizadas as políticas de responsabilidade da União" (Acórdão 1.391/2019).
Contudo, o TCU ainda tem se defrontado com fatos anteriores à LC 141/2012. Nestes casos, suas decisões oscilam, mas geralmente o Tribunal afasta o débito, pois ora entende que a LC 141/2012 não pode retroagir (Acórdão 8.498/2020), ora considera que a norma de 2017 do Ministério da Saúde extinguiu os antigos "blocos de financiamento", tornando o desvio de objeto irrelevante (Acórdão 1.037/2019).
Recentemente, o Acórdão 1.045/2020 trouxe novo argumento à questão. O Ministro Benjamin Zymler, relator, aplicou explicitamente o artigo 20, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) para concluir não haver débito do Município quando há desvio de objeto antes da LC 141/2012.
Segundo ele, a devolução de valores, após o transcurso do tempo, pode ser tanto uma medida desnecessária – pode não haver mais demanda na área na qual se deixou de aplicar os recursos ou ela pode não ser mais uma prioridade da Administração – quanto contraproducente – o eventual remanejamento de recursos "representaria obrigação dissociada da análise das reais necessidades da população local, com impacto no planejamento das ações de saúde". Não haveria, portanto, interesse público a justificá-la.
A decisão considerou outras possíveis consequências práticas. Primeiro, impor um débito "pode interferir de forma inadequada no uso efetivo dos recursos atualmente disponíveis para tão importante área e afetar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual de saúde". Segundo, o débito puniria o atual (bom) gestor que nenhuma relação tem com os fatos do passado, prejudicando a realização das metas planejadas e, consequentemente, o atendimento à população. E, terceiro, o débito poderia servir como instrumento político para que um gestor prejudicasse seu sucessor.
O entendimento merece elogios ao incorporar na análise as consequências práticas, podendo ser aplicado a casos posteriores à LC 141/2012. Sem dúvida, um passo importante do TCU no tema.
<hr />
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
<hr />

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Tribunal aplica o art. 20 da LINDB para não impor débito a município

O TCU considerando as consequências práticas da sua decisão

Tribunal aplica o art. 20 da LINDB para não impor débito a município