Opinião e Análise

Ricardo Alberto Kanayama

Separar o público do privado é um problema de longa data no Brasil. Se a Lei 8.112/1990 proíbe os servidores federais de receberem presentes de qualquer espécie (artigo 117, XII), há outras normas – pouco claras – que, ao invés de estabelecer uma proibição geral, tentam regulamentar a prática. Interpretá-las não é tarefa simples. E este será o desafio do Tribunal de Contas da União (TCU) no caso das joias e armas dadas por autoridades estrangeiras ao ex-presidente Jair Bolsonaro.   
Antes de determinar, cautelarmente, que o ex-presidente entregue os bens recebidos à Secretaria-Geral da Presidência da República (<a href="https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/*/NUMACORDAO%253A443%2520ANOACORDAO%253A2023/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0/%2520">Ac. 443/2023-Plenário</a>), o TCU já tinha enfrentado a questão de fundo duas vezes. 
Primeiro, em caso envolvendo bens recebidos pelos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff no exercício de seus respectivos mandatos (<a href="https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/*/NUMACORDAO%253A2255%2520ANOACORDAO%253A2016/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0/%2520">Ac. 2255/2016-Plenário</a>). Segundo, no caso da comitiva brasileira que recebeu relógios do governo do Qatar (<a href="https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/*/NUMACORDAO%253A326%2520ANOACORDAO%253A2023/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0/%2520">Ac. 326/2023-Plenário</a>). 
Embora os dois casos tenham chegado à mesma conclusão – presentes recebidos de autoridades estrangeiras por agentes públicos não devem ser incorporados aos seus acervos privados, pois são patrimônio da União –, os argumentos usados foram diferentes.  
No caso de 2016, o TCU fez uma auditoria patrimonial para averiguar o destino dos bens que haviam desaparecido dos palácios presidenciais. Para responder a quem pertenceriam os presentes dados por autoridades estrangeiras, aplicou a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8394.htm">Lei 8.394/1991</a> e o <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4344.htm">Decreto 4.344/2002</a>, que tratam dos acervos documentais privados dos presidentes.  
Embora as normas disponham que “documentos bibliográficos” recebidos em “Visitas Oficiais” ou “Viagens de Estado” não fazem parte do acervo privado do mandatário (artigo 3º, par. único, II, Decreto), o TCU concluiu que qualquer tipo de presente é bem público (não só documentos), pois “os presentes são recebidos pelos presidentes brasileiros, em razão da natureza pública e representativa do cargo que ocupam e não como mecanismo de obtenção de receita ou acumulação de patrimônio”. Acrescentou que a troca de presentes é feita com recursos públicos e até exemplificou a falta de razoabilidade de um chefe de estado ficar com “uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso”.  
Já no caso recente da comitiva do Qatar, objeto de representação após <a href="https://www.jota.info/jotinhas/comitiva-presidencial-aceitou-relogios-cartier-e-hublot-como-presentes-do-qatar-03032022">notícia do </a><a href="https://www.jota.info/jotinhas/comitiva-presidencial-aceitou-relogios-cartier-e-hublot-como-presentes-do-qatar-03032022">JOTA</a>, o TCU enfrentou a questão a partir da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12813.htm">Lei 12.813/2013</a> e do <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Decreto/D10889.htm">Decreto 10.889/2021</a>, que tratam do conflito de interesses, bem como do <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Codigos/codi_conduta/Cod_conduta.htm">Código de Ética da Alta Administração Federal</a> e da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/codigos/codi_conduta/resolucao3.htm">Resolução 03/2000</a> (Comissão de Ética Pública-CEP), que versam sobre o recebimento de presentes e brindes. 
A CEP havia concluído[1], por maioria, não haver conflito de interesse no recebimento dos presentes de autoridades estrangeiras, pois isso seria admitido, excepcionalmente, “nos casos protocolares em que houver reciprocidade ou em razão do exercício de funções diplomáticas” (artigo 2º, II, Resolução). O TCU, por sua vez, entendeu que o alto valor dos presentes não se enquadraria nesta exceção e que a retenção pelo agente ofenderia os princípios da moralidade e da razoabilidade.  
O caso de Bolsonaro ainda depende de esclarecimentos para determinar como será a sua responsabilização em cada esfera. Porém, diante da confusão normativa, já se vê o desafio do TCU para garantir que o que deveria ser público não seja apropriado pelo privado.
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[1] A decisão da Comissão de Ética Pública da Presidência da República no SEI 00191.000169/2020-11, de Relatoria do Conselheiro Gustavo do Vale Rocha, está disponível no processo do TCU, TC 004.528/2022-0.

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JOTA

Como interpretar as normas sobre presentes dados por autoridades estrangeiras a agentes públicos?  

O desafio do TCU no caso das joias

Caso das joias de Bolsonaro e o TCU: como interpretar as normas sobre presentes dados por autoridades estrangeiras a agentes públicos?