Opinião e Análise

Ana Frazão

Em julho deste ano, o importante jornal The Guardian divulgou o que ficou conhecido como o caso <a href="https://www.theguardian.com/news/series/uber-files">Uber Files</a>, referente ao vazamento de mais de 124 mil documentos da Uber, produzidos entre 2013 a 2017, por meio dos quais se poderia comprovar as diversas estratégias adotadas pela empresa em diversos países.
De forma bem sintética, os documentos vazados, segundo o The Guardian, <a href="https://www.theguardian.com/us-news/2022/jul/11/first-thing-uber-broke-laws-and-secretly-lobbied-governments-leak-reveals">revelariam a história interna</a> de como a big tech desprezou leis e regulações dos países, enganou a polícia, explorou a violência contra os seus motoristas e fez lobby secreto durante a sua agressiva expansão global.
Obviamente que o objetivo do presente artigo não é o demonizar a empresa, até porque não se conhece a sua defesa específica e, por mais que tais práticas tenham ocorrido, certamente a Uber não é a única a adotá-las. O objetivo deste texto é explorar os bastidores de como os atores econômicos se comportam – ou podem se comportar — e mostrar que muitas das entradas e dinâmicas competitivas são motivadas por outros vetores que não propriamente a eficiência ou a inovação.
Dentre os pontos mencionados pelo The Guardian, podem ser destacadas mensagens que apontariam para as seguintes conclusões:
<ul>
<li>os executivos da Uber tinham consciência de que a empresa violava leis. Algumas mensagens inclusive reconhecem que a Uber seria “pirata” ou simplesmente ilegal;</li>
<li>os executivos da Uber mandaram os motoristas da plataforma para um protesto em Paris, mesmo sob o risco conhecido de violência contra eles, em razão dos opositores raivosos que vinham da indústria de táxi;</li>
<li>havia um relacionamento entre Kalanick, o CEO da Uber à época dos fatos, e Emmanuel Macron, por meio do qual o presidente francês secretamente ajudou a companhia na França quando era ministro da Economia;</li>
<li>a Uber subsidiava jornadas, seduzindo motoristas e passageiros para o aplicativo com incentivos e modelos de precificação que seriam insustentáveis;</li>
<li>a Uber pressionava governos para readaptarem as legislações locais e pavimentarem o seu modelo de negócios;</li>
<li>a <a href="https://www.google.com/search?q=the+guardian+uber+paid+academics&amp;rlz=1C1EJFC_enBR867BR868&amp;oq=the+guardian+uber+paid+academics&amp;aqs=chrome..69i57j33i160l2.7678j0j7&amp;sourceid=chrome&amp;ie=UTF-8">Uber pagou importantes acadêmicos</a> para produzir pesquisa que pudesse apoiar as suas pretensões a respeito dos benefícios do seu modelo de negócios<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">]</a>;</li>
<li>a Uber desenvolveu métodos para frustrar iniciativas de enforcement das leis, sendo exemplo o kill switch, por meio do qual, em casos de busca e apreensão contra algum diretor da Uber, o setor de TI já bloqueava o acesso aos principais sistemas de dados da companhia, impedindo que as autoridades pudessem reunir evidências. Isso teria ocorrido, ao que parece, pelo menos 12 vezes em diversos países, como França, Holanda, Bélgica, Índia, Hungria e Romênia.</li>
</ul>
Não se pode ignorar que a regulação pode ser uma indevida barreira de acesso à entrada nos mercados, de forma que é até compreensível quando entrantes adotam estratégias para rever ou alterar a regulação. O grande problema é que, de acordo com o The Guardian, a atuação da Uber ia muito além do que poderia ser considerado um esforço legítimo nesse sentido, uma vez que se travava em várias frentes, muitas das quais envolviam o descumprimento frontal e intencional das regulações e legislações, assim como estratégias para se furtar ao enforcement legal.
Outro dos fios condutores da atuação da Uber, ainda segundo o The Guardian, era a ausência de transparência no seu modus operandi, tendo em vista que a empresa buscava conquistar a opinião pública e mesmo as autoridades com base em fatos não necessariamente fidedignos e estudos acadêmicos pagos.
Obviamente que não há nada de equivocado em pagar acadêmicos para produzir estudos em favor de determinados agentes econômicos. O problema é quando se esconde tal circunstância ou não se lhe atribui a devida publicidade, impedindo que o público possa fazer seus próprios juízos quanto à parcialidade ou não das conclusões apresentadas por um profissional que foi remunerado para tal.
De toda sorte, o caso Uber revela ponto fundamental que muitas vezes passa despercebido pelo mainstream econômico: o fato de que os mercados são também arenas sociais e políticas, de forma que seus atores disputam também por ideias e narrativas, pela persuasão do público – e não necessariamente por meio de um debate minimamente transparente e fidedigno — assim como pela proximidade de legisladores, juízes e reguladores.
Sob essa perspectiva, os mercados de produção de bens e serviços se entrelaçam com diversos outros, tais como os mercados de ideias e os mercados de lobby, acesso e proximidade com autoridades públicas. Até mesmo a produção do direito – normas jurídicas legais e regulamentares em favor de determinado agente econômico – pode ser compreendida a partir da lógica de um pujante mercado, com alta demanda e inúmeras disfuncionalidades.
Tais pontos são ora salientados porque várias das estratégias apontadas pelo The Guardian são igualmente utilizadas por diversos outros players nos mais diversos mercados e constituem, por assim dizer, parte importante daquilo que consideramos uma economia de mercado. Casos como o da Uber nos ajudam a entender que os agentes econômicos não disputam apenas por preço e qualidade em seus mercados finais, assim como não ingressam neles ou neles se estabelecem apenas em razão da sua maior eficiência ou do seu caráter inovador.
A depender das características de determinados mercados, muito mais importante do que a eficiência do agente econômico ou do seu modelo de negócio será a sua proximidade com o poder público e a sua capacidade de persuadir ou mesmo manipular legisladores, reguladores ou mesmo a opinião pública no sentido que seja mais favorável aos seus interesses.
Tais questões precisam ser trazidas para o debate público, pois somente compreenderemos os intrincados e complexos mecanismos de funcionamento de mercados caso tenhamos abertura suficiente para entender os arranjos sociais e os jogos de poder que nele se travam. Daí por que o caso Uber é, na verdade, um pretexto para se analisar as dinâmicas mais amplas que se travam nos mercados.
Ademais, compreendendo-se melhor a realidade dos mercados, fica mais difícil negar a importância do papel da regulação na diferenciação, dentre as diversas estratégias que são colocadas em prática por agentes econômicos, daquelas que são permitidas e compatíveis com a competição pelo mérito e daquelas que, de forma contrária, implicam abusos, fraudes e manipulações inaceitáveis, razão pela qual deveriam ser contidas ou proibidas.
Como <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/capitalismo-de-stakeholders-e-investimentos-esg-28042021">já tive oportunidade de salientar na série que fiz</a> sobre os 50 anos do artigo seminal de Friedman, mesmo a sua defesa ardorosa dos livres mercados era feita a partir da premissa de que a conduta dos agentes deveria se travar em um ambiente de livre e aberta competição, sem espaço para fraudes e manipulações.
Considerando que cada vez mais temos evidências de que esse ambiente idealizado por Friedman, por ser completamente descolado da realidade, precisa ser construído pelo direito, casos como o da Uber nos instigam a pensar sobre o que deve ser feito para assegurar a entrada e a permanência de agentes econômicos no mercado em um ambiente de maior transparência e relações mais adequadas com o poder público, a sociedade e a academia, sem o que dificilmente teremos uma efetiva competição pelo mérito.<a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a>

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JOTA

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