Opinião e Análise

Ana Frazão

Especialmente a partir das décadas finais do século passado, observa-se movimento constante de desverticalização e fragmentação da atividade empresarial. Consequentemente, atividades que antes eram internalizadas e integradas na estrutura hierárquica da empresa são hoje transferidas a parceiros contratuais por meio de arranjos cada vez mais diversificados e sofisticados.
Se, do ponto de vista econômico, tal processo pode ser justificado à luz da redução dos custos de transação, do ponto de vista jurídico, as crescentes parcerias e compartilhamentos de atividades entre diferentes agentes econômicos, dentre as quais a terceirização é uma importante alternativa, gera inúmeros desafios jurídicos, especialmente no que diz respeito à alocação de riscos e responsabilidades.
<div id="pro-saude-f7f3db38760a00af503e" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('pro-saude-f7f3db38760a00af503e', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
Com efeito, no que diz respeito às relações empresariais, não há maiores dúvidas no sentido de que deve prevalecer a maior liberdade possível na alocação de riscos e responsabilidades, valorizando-se a criatividade e a eficiência dos agentes econômicos nas distintas formas pelas quais tentam equilibrar e compor seus interesses.
O maior problema diz respeito aos efeitos das referidas alocações de riscos e responsabilidades sobre terceiros, especialmente diante das áreas de regulação dura, que se aplicam de forma cogente, seja porque protegem interesses de vulneráveis – como o Direito do Consumidor e o Direito do Trabalho - , seja porque protegem interesses difusos relevantes – como é o caso do Direito Ambiental e do Direito da Concorrência.
Em relação a tais áreas, prevalece a necessidade de se atentar à primazia da realidade sobre a forma bem como à necessidade de se encontrar um equilíbrio entre poder e responsabilidade. Em outras palavras, é importante que a ampla utilização da possibilidade de contratar nos mercados e de terceirizar atividades que fazem parte do risco da empresa possam ser acompanhadas das responsabilidades compatíveis.
Se assim não ocorrer, arranjos privados poderão subverter as estruturas protetivas previstas pelas áreas de regulação dura, podendo ser utilizados para criar as situações que Teubner<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> chama de “irresponsabilidade organizada”, ou seja, aquelas situações em que os atores econômicos conseguem exercer poder sem ter as devidas responsabilidades. Em tais cenários, criam-se incentivos para investimentos excessivamente arriscados ou oportunistas, que podem gerar graves externalidades negativas e danos a terceiros.
Tais discussões ocuparam o centro do debate após o assassinato de João Alberto de Freitas em um estabelecimento do Carrefour, documentado em vídeo aterrorizador a que toda a nação teve acesso. Como se sabe, a segurança do supermercado onde ocorreu o evento era terceirizada, o que não impediu o Carrefour de, como era devido, assumir a sua própria responsabilidade pelo evento.
Com efeito, em declaração dada à imprensa na semana passada, o vice-presidente do Carrefour no Brasil, Stephano Engelhard, afirmou, a respeito da terceirização, que “Pode ser uma empresa terceirizada, mas a responsabilidade é nossa”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Mais do que isso, o fato serviu como base para o grupo optar pelo fim da terceirização dos serviços de segurança nas unidades do conglomerado<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Sem prejuízo de que a decisão pelo fim da terceirização possa ter sido igualmente motivada por questões nobres e vinculadas à proteção da vida humana, tudo leva a crer que também foi pensada a partir da lógica econômica, tendo em vista que os fatos recentes podem mostrar que há determinados riscos e danos – tais como os decorrentes de um assassinato brutal totalmente desnecessário e evitável, com todos os abalos econômicos e reputacionais daí decorrentes – que talvez sejam subestimados nos cálculos iniciais em prol da terceirização.
O evento ainda propicia a oportunidade para se refletir sobre a circunstância de que nem tudo está submetido à lógica do custo-benefício, havendo determinados riscos que não podem e não devem ser assumidos. É precisamente o caso concreto, em que se trata de assassinato que poderia ter sido prevenido caso os seguranças tivessem recebido o devido treinamento, entendessem o sentido da sua função e tivessem conhecimento sobre as políticas de segurança e sobre os valores da própria tomadora de serviços.
Não obstante, independentemente da reação do Carrefour, há que se aproveitar a oportunidade para se refletir sobre a alocação de riscos e responsabilidades em casos assim. De fato, tal discussão transcende o caso concreto, ainda mais diante do fato de que a terceirização de serviços é cada vez mais utilizada na seara empresarial, principalmente depois da decisão do Supremo Tribunal Federal que julgou constitucional a terceirização de atividades-fim.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Em casos assim, diante de consumidores, além das regras específicas do Código de Defesa de Consumidor, há bons fundamentos para justificar a responsabilidade da tomadora de serviços também com base na relação de preposição entre os empregados da empresa terceirizada e a empresa tomadora de serviços.
Verdade seja dita que, em uma das primeiras vezes em que se pronunciou sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> declarou que, na terceirização de serviços, como os empregados da terceirizada não devem estar sujeitos ao poder de direção da tomadora e como a delegação apenas poderia ocorrer em relação às atividades-meio, não se cogitaria da preposição. Sob esse entendimento, haveria incompatibilidade entre terceirização e preposição, até porque quem terceiriza não pode manter os funcionários da terceirizada sob sua subordinação jurídica.
Trata-se de conclusão complicada porque a direção ou a vigilância que caracterizam a preposição não se restringem à subordinação típica da relação de emprego. Tanto é assim que a própria Relatora do caso supramencionado, dois anos antes, havia entendido que “O fato do suposto causador do ato ilícito ser funcionário terceirizado não exime a tomadora do serviço de sua eventual responsabilidade”, uma vez que “A jurisprudência do STJ entende como preposto aquele que possui relação de dependência ou presta serviço sob o interesse de outrem.”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">Em outras palavras, é a possibilidade de dirigir ou pelo menos supervisionar o preposto– e não a subordinação – o elemento caracterizador da relação de preposição.</blockquote>
Não é sem razão que, em pronunciamento relativamente recente, o Superior Tribunal de Justiça, em caso semelhante ao caso Carrefour – pois dizia respeito a danos provocados por vigilantes de empresa de segurança terceirizada - reiterou o entendimento de que a empresa tomadora de serviços é responsável pelos atos dos empregados da terceirizada, nos termos da seguinte ementa:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO CONTRA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO DE FERROVIAS. DANOS PROVOCADOS POR ARMA DE FOGO DISPARADA POR VIGILANTES DE EMPRESA DE SEGURANÇA TERCEIRIZADA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA CONTRATANTE POR ATO ILÍCITO DOS PREPOSTOS TERCEIRIZADOS. DECISÃO MANTIDA. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
<ol>
<li>É responsável pela reparação civil, ainda que não haja culpa de sua parte, "o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele" (CC/2002, arts. 932, III, e 933).</li>
<li>Na linha da jurisprudência desta Corte Superior, para o reconhecimento do vínculo de preposição é suficiente a relação de dependência ou que alguém preste serviço sob o interesse e o comando de outrem, o que abrange a relação jurídica entre as sociedades empresárias contratada e tomadora de serviços terceirizados. As ações dos empregados da contratada, diretamente envolvidos na prestação dos serviços abrangidos no contrato de terceirização, quer sejam de atividade-fim, quer sejam de atividade-meio, ensejam a responsabilidade civil da tomadora, solidariamente com a contratada.</li>
<li>Na hipótese, a concessionária de serviço público de ferrovias responde objetiva e solidariamente pelo ato ilícito praticado pelos prepostos da empresa de segurança terceirizada, em razão de culpa in eligendo (resultante da escolha), pois foi aquela quem escolheu contratar a sociedade empresária terceirizada, assumindo os riscos dessa contratação, bem como em razão de culpa in vigilando (resultante da falta de vigilância), porquanto tinha o dever de verificar constantemente se os prepostos da empresa contratada estavam agindo de maneira adequada no desempenho de suas funções. Precedentes.</li>
<li>Agravo interno a que se nega provimento.</li>
</ol>
(AgInt no AREsp 1347178/PR, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 02/04/2019, DJe 24/04/2019)
Trata-se de acórdão importantíssimo por diversos fundamentos, inclusive por ser posterior à decisão do Supremo Tribunal Federal que julgou constitucional a terceirização mesmo de atividades-fim, mantendo, entretanto, a responsabilidade subsidiária da tomadora de serviços pelos atos da terceirizada na esfera trabalhista. Não é sem razão que a tese acolhida foi a de que “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Portanto, de acordo com o próprio Supremo Tribunal Federal, a terceirização não pode ser pensada como uma forma de transferência total do risco da atividade – e das responsabilidades a ela inerentes - para a empresa terceirizada, sendo obrigatório o reconhecimento da responsabilidade subsidiária da tomadora de serviços na esfera trabalhista.
Nesse contexto, a relevância do acórdão do Superior Tribunal de Justiça supramencionado decorre de vários fatores:
(i) em primeiro lugar, do fato de ter aplicado a diretriz consubstanciada no julgamento do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a terceirização não pode ser uma forma de transferência total do risco empresarial para a terceirizada;
(ii) em segundo lugar, por ter reconhecido, como regra geral, a existência de preposição independentemente de a atividade terceirizada ser de fim ou de meio;
(iii) em terceiro lugar, por ter deixado claro que, na terceirização, por se tratar de preposição indireta, a razão de ser da responsabilidade do tomador de serviços é a culpa in eligendo ou in vigilando no que diz respeito aos prepostos, em um entendimento diverso do decorrente do art. 942, II, do Código Civil, aplicável aos casos de prepostos diretos.
Em outras palavras, foi considerado que não seria possível a total transferência do risco empresarial para a empresa terceirizada, seja porque esta exerce atividades sob os comandos ou vigilância da empresa tomadora, seja porque esta deve assumir pelo menos parte dos riscos inerentes à terceirização.
<blockquote class="jota-article__eye">Ora, é essencial que a disciplina dos prepostos ofereça respostas adequadas às novas formas de organização de cooperação e de trabalho que surgem na atualidade, a fim de se evitar a irresponsabilidade organizada.</blockquote>
É inequívoco que, na terceirização, as atividades da terceirizada ocorrem não somente no interesse econômico e em benefício da tomadora, mas também mediante o comando desta, ainda que de forma indireta, ou pelo menos sob a sua necessária vigilância ou supervisão. Daí por que não somente a terceirizada como também os empregados desta podem ser vistos como prepostos – ainda que indiretos - da empresa tomadora de serviços, até porque, à luz da teoria da aparência, normalmente são vistos como uma longa manus desta.
Dessa maneira, afastar a relação de preposição que se estabelece nos casos de terceirização seria desconsiderar a dinamicidade da realidade, com grandes riscos de se produzirem graves desequilíbrios no que diz respeito à alocação de riscos. Tal preocupação é ainda maior nos casos de terceirização de atividades-fim, em que as diretrizes a serem seguidas pelos prepostos corresponderão aos objetivos primários do empresário. Em muitos casos, a única diferença entre o terceirizado e o empregado comum seria o vínculo jurídico ao qual se submetem, não havendo qualquer distinção entre as atividades e ordens às quais podem estar sujeitos, sendo que muitas vezes trabalham no mesmo ambiente e de forma coordenada.
Vale ressaltar que a responsabilidade subsidiária da tomadora de serviços a que se refere o Supremo Tribunal Federal no julgamento supramencionado é a responsabilidade contratual trabalhista que a tomadora de serviços mantém em relação aos empregados da terceirizada. Contudo, tratando-se de responsabilidade extracontratual por ato ilícito praticado por empregado da terceirizada que seja considerado preposto da tomadora, há boas razões para considerar que se trata de responsabilidade solidária, nos termos do art. 942, caput e parágrafo único, do Código Civil.
Como já se viu, no precedente do Superior Tribunal de Justiça acima mencionado, a natureza da responsabilidade da tomadora de serviços foi afastada da regra geral da responsabilidade objetiva prevista pelo art. 932, III, do Código Civil, estando lastreada na culpa in eligendo ou in vigilando. Portanto, houve tentativa de adaptação do regime de responsabilidade da tomadora de serviços às peculiaridades do fenômeno econômico.
De toda sorte, o que importa destacar é que, ao fim e ao cabo, deve existir alguma forma efetiva de responsabilidade perante terceiros. Ainda que o tipo e a extensão da responsabilidade sejam temas que estejam a merecer maiores reflexões e desdobramentos futuros, é fundamental que seja reconhecida a relação de preposição, ao menos com base no dever de vigilância e supervisão que cabe à tomadora de serviços, o que já é um grande passo para evitar a irresponsabilidade organizada a que se refere Teubner.
Sob essa perspectiva, não se pode negar que, por meio do reconhecimento da relação de preposição em tais casos e da atribuição da correspondente responsabilidade à tomadora de serviços, tem-se que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem procurando encontrar um ponto de equilíbrio entre a liberdade de iniciativa dos agentes econômicos, que os permite adotar diversos mecanismos de terceirização de suas atividades-meio e suas atividades-fim, e a necessária responsabilidade pelos danos causados a terceiros.
<hr />
O episódio 46 do podcast Sem Precedentes discute se o contrato de trabalho intermitente é ou não constitucional. Ouça:
https://youtu.be/o8E3sXtx7j0
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A preocupação com o fenômeno da irresponsabilidade organizada é um dos fios condutores da obra Networks as connected contracts (TEUBNER, Gunther. Oregon: Hart Publishing, 2011).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/12/04/o-carrefour-errou-diz-executivo-da-rede.ghtml
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ttps://www.google.com/search?q=carrefour+anuncia+fim+da+terceiriza%C3%A7%C3%A3o+de+seguran%C3%A7a&amp;oq=carrefour+anuncia+fim+da+terceiriza%C3%A7%C3%A3o+de+seguran%C3%A7a&amp;aqs=chrome..69i57.7404j0j4&amp;sourceid=chrome&amp;ie=UTF-8
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> STF, RE 958252, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-199  DIVULG 12-09-2019  PUBLIC 13-09-2019.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> STJ, 3ª T., REsp 1.171.939/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 7.12.2010, publ. DJ 15.12.2010.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> STJ, REsp 904.127/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/09/2008, DJe 03/10/2008.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> STF, RE 958252, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-199  DIVULG 12-09-2019  PUBLIC 13-09-2019.

racismo carrefour

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

O recente caso Carrefour e a necessidade de uma maior reflexão sobre a alocação de riscos e responsabilidades

Responsabilidade dos agentes econômicos pertencentes à mesma cadeia produtiva

O recente caso Carrefour e a necessidade de uma maior reflexão sobre a alocação de riscos e responsabilidades