Opinião e Análise

Ana Frazão

Como se viu ao longo dos artigos da presente série, as análises quantitativas, em razão das suas inúmeras limitações, não substituem nem são incompatíveis com outros tipos de análises. Pelo contrário, mesmo quando são bem estruturadas e bem executadas, dependem da necessária complementaridade com outras metodologias.
Mais do que isso, as Análises de Impacto Regulatório (AIRs) precisam dialogar com julgamentos políticos e jurídicos, até para a interpretação e valoração dos seus resultados à luz das normas jurídicas pertinentes e para a escolha dentre as alternativas possíveis.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
Como bem sintetizou Hannah Arendt<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, há que se tomar um certo cuidado com a linguagem matemática, pois esta não pode ser reconvertida em palavras, de forma que a sua utilização nos assuntos humanos gera um perigoso impasse, até porque “tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido.” Daí por que é fundamental que outras análises possam auxiliar na interpretação e nas discussões a respeito dos números, conciliando os seus resultados com outras variáveis igualmente importantes para a tomada da decisão.
Aliás, é esta a principal ideia de Jerry Muller no seu excelente livro The tyranny of metrics<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>: não é possível substituir julgamentos complexos por métricas, assim como é falsa a premissa de que apenas com métricas pode haver accountability e transparência.
Com efeito, segundo o autor, além de as coisas mais importantes não poderem ser mensuradas, os julgamentos são fundamentais não apenas para decidir o que e como será mensurado, mas sobretudo para avaliar a importância relativa do que está sendo mensurado, os resultados da mensuração e a sua compatibilidade com os aspectos qualitativos e valorativos.
Outro alerta de Jerry Muller<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> é a necessidade de controlar o viés de ultraconfiança que pode resultar da idolatria da métrica, o que propicia a tendência de adoção de uma visão excessivamente simplificada do problema, desconsiderando os seus aspectos mais complexos. Isso sem falar nas inúmeras deturpações das métricas, o que potencializa ainda mais os riscos da sua utilização, especialmente quando não há as devidas complementações.
Apenas a título de exemplo, vale a pena mencionar o problema que as métricas vêm enfrentando no tocante aos investimentos ESG (Enviromental, Social and Governance). Em recente artigo publicado no Valor Econômico, cujo título é bastante sugestivo -ESG não é matemática (e isso pode ser bom para o Brasil) -, Fábio Alperowitch<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> aponta que, em razão das dificuldades de mensuração de variáveis tão complexas, não há qualquer alinhamento entre as notas atribuídas pelas três maiores agências de rating ESG do planeta (MSCI, Sustainalytics e RepRisk).
Dentre os fatores supostamente justificadores da mencionada divergência, encontra-se a circunstância de que, além de os dados utilizados nas métricas serem seletivos – o que faz com que empresas mais transparentes possam ser até prejudicadas -, questões complexas, como as de diversidade de gênero e raça, são extremamente difíceis de serem convertidas em números. Daí o pensamento do autor:
“Na ânsia desvairada de traduzir tudo em números, o mercado peca e perde a essência do que seja a boa prática ESG, que reside na cultura corporativa amparada à ética, boa governança e respeito aos múltiplos stakeholders. Isso não significa que não tenhamos que medir e reportar. Muito pelo contrário, métricas são essenciais, bem como o reporte profundo, denso e transparente. Sem métrica, não há avanço na prática. Mas a extrapolação do uso da métrica para além do que a métrica se propõe a fazer põe em risco a própria adoção da filosofia”.
Como se pode observar, trata-se de mais uma lição que ressalta o papel da complementaridade entre as métricas e outros tipos de julgamento que possam compensar várias das dificuldades e limitações das primeiras. Aliás, tal conclusão é igualmente compartilhada pela OCDE, que ressalta a necessidade de que fatores qualitativos importantes não podem ser subordinados aos fatores quantitativos, sobretudo em se tratando de países em desenvolvimento<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>:
“58. Quantitative benefit-cost analysis usually needs to be supplemented with other methods. Qualities like efficiency or fairness effects often cannot be plausibly expressed in monetary terms, or even quantified at all. This does not equate to a lack of importance. In situations where such qualitative factors are widely recognized as important, RIA guidelines should take care not to subordinate them to quantitative factors.”
Não obstante as considerações já feitas ao longo da série, vale a pena destacar, já no encaminhamento para o desfecho do assunto, quatro conclusões finais, que são imprescindíveis para a compreensão do papel e do alcance das AIRs no direito brasileiro.
Em primeiro lugar, é importante entender exatamente o que se busca por meio de uma regulação por evidências. Valorizar o necessário aspecto técnico da regulação não implica dizer que as escolhas regulatórias sejam apenas técnicas, ignorando os necessários juízos políticos, jurídicos e valorativos que também são necessários.
Com efeito, os critérios com base nos quais devem ser decididas as escolhas regulatórias não podem ficar restritos a um pequeno grupo de experts, como nos alerta Celso Campilongo<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>:
“Numa sociedade que alça a ciência e a tecnologia aos postos de árbitros dos comportamentos, a transformação de questões políticas em temas “técnicos” – e, portanto, que escapam ao âmbito usual dos “interesses gerais da cidade” como dizia Platão – pode representar a completa inversão dos processos democráticos. O movimento da democracia é ascendente: do povo em direção à autoridade. A tecnocracia pressupõe o inverso: dos técnicos à maioria. A democracia implica participação e discussão horizontal e inclusiva. A decisão técnica é vertical e exclusiva, tomada pelos que monopolizam “o discurso competente” dos saberes científicos. Daí nova hesitação: democracia majoritária ou tecnocracia elitista?”
Aliás, essa visão exclusivamente técnica das escolhas regulatórias – o chamado tecnicismo – é tradicionalmente considerada como um dos maiores inimigos da democracia, como adverte Robert Dahl<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>:
“A afirmação de que o governo deve ser entregue a especialistas profundamente empenhados em governar para o bem geral e superiores a todos em seus conhecimentos dos meios para obtê-lo – os tutores, como Platão os chamava – sempre foi o mais importante rival das idéias democráticas. Os defensores da tutela atacam a democracia num ponto aparentemente vulnerável: eles simplesmente negam que as pessoas comuns tenham competência para se governar.”
<blockquote class="jota-article__eye">Dessa maneira, pautar a escolha das políticas regulatórias nas evidências e na ciência não significa abrir não de todo o espaço de deliberação que pode e deve existir, inclusive a partir das opiniões dos experts.</blockquote>
Afinal, mesmo nas ciências da natureza, em relação às quais há maior espaço para a utilização das metodologias empíricas, pode haver grandes divergências entre os experts, assim como vários meios ou alternativas para alcançar os objetivos por eles definidos. Nas ciências humanas e nos assuntos econômicos, soma-se a tais dificuldades o fato de que a expertise precisa ser devidamente contextualizada diante do grau ainda maior de dificuldade para se estabelecer relações causais.
De toda sorte, não se pode ignorar que a regulação apresenta também um evidente componente político e jurídico, o qual deve ser delicadamente equilibrado com os componentes técnicos. Daí por que a ideia de regulação por evidências não pode ser entendida como o mero tecnicismo ou a supressão dos necessários juízos políticos e jurídicos que caracterizam a regulação.
Não é sem razão que Justin Parkhust, no seu instigante livro The politics of evidence: from evidence-based policy to the good governance of evidence<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, mostra os riscos de que a regulação por evidências tanto padeça de problemas técnicos, afastando-se da fidelidade científica, como de um déficit democrático. Daí sustentar o autor a necessidade de um arranjo institucional que possa assegurar, ao mesmo tempo, acurácia científica e incorporação da representação democrática nos processos regulatórios<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>:
“This involves the institutionalization of structures, rules, processes and practice that work to ensure that rigorous, valid and relevant bodies of evidence are utilized through transparent and deliberative processes to inform decisions that ultimately remain representative of, and accountable to, local populations. Achieving this would constitute an important step towards, establishing the good governance of evidence and could help to better realise the full potential of evidence to accomplish our collective social policy goals.”
É por essas razões que as AIRs jamais poderão ser consideradas, sozinhas, os únicos elementos de motivação de uma alternativa regulatória. Pelo contrário, os aspectos quantitativos por ela traduzidos precisarão ser analisados em conjunto com os aspectos qualitativos, normalmente relacionados às escolhas políticas e aos necessários raciocínios jurídicos, para os quais a participação social é fundamental.
Em segundo lugar, é importante destacar que os julgamentos políticos e jurídicos a que se fez referência são fundamentais igualmente para que seja possível contornar alguns dos vieses interpretativos que podem surgir diante de análises quantitativas e numéricas, especialmente quando guiadas por metodologias econômicas.
Dentre os inúmeros vieses preocupantes, dois são especialmente significativos. O primeiro diz respeito ao fato de que números e métricas, principalmente quando se referem a vidas humanas, podem causar o indesejável efeito de anestesiamento do intérprete. É por essa razão que recente estudo publicado na Nature<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> mostra que, embora nos sintamos dispostos a agir por apenas uma vítima, paradoxalmente perdemos o senso de responsabilidade e a própria habilidade de empatia quanto o número de vítimas aumenta. Em outras palavras, a despersonalização traduzida nos números tem impactos importantes na forma como compreendemos e reagimos a esse tipo de informação.
Consequentemente, análises econômicas que convertem vidas em números ou quantificam prejuízos individuais de forma agregada podem não ser devidamente compreendidas em termos do seu impacto total, já que as suas consequências podem repercutir menos para o intérprete do que se ele estivesse vendo o problema a partir da perspectiva de uma só pessoa que seria afetada pela estratégia regulatória.
O segundo viés diz respeito ao fato de que muitas metodologias econômicas acabam levando a um resultado mais “pró-mercado” ou em prol da desregulação, o que foi de certa forma realçado ao longo da série, por meio da opinião de autores que ressaltam que as AIRs, no contexto norte-americano, têm sido utilizadas mais para a implementação da agenda de desregulação do que propriamente para uma avaliação isenta sobre a necessidade ou não de regulação.
Aliás, recente estudo da ProMarket ressalta que o fenômeno ocorre mesmo no âmbito do Poder Judiciário, apontando que juízes que usam mais raciocínios econômicos tendem a julgar mais favoravelmente em favor dos interesses dos agentes econômicos<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Assim, é fundamental que várias das premissas e das limitações das metodologias quantitativas sejam devidamente equilibradas e contrabalançadas com outros tipos de raciocínios e julgamentos que compensem eventuais vieses e limitações, complementando adequadamente tais análises.
No próximo e último artigo da presente série, serão exploradas as outras duas importantes questões sobre o tema: (i) a necessária conciliação entre a análise econômica e a análise jurídica e (ii) a própria compreensão do que pode ser considerado consequencialismo e como este pode ser incorporado ao direito brasileiro em conformidade às normas jurídicas.
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O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute a crise militar e seu impacto no Supremo Tribunal Federal. Ouça:
https://youtu.be/WAU2xWiR5DQ
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<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2001, pp. 14-15.
<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> MULLER, Jerry Z. The tyranny of metrics. New Jersey: Princeton University Press, 2018.
<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Op.cit.
<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Valor Econômico. Edição de 19.03.2021.
<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Regulatory Impact Analysis in OECD Countries Challenges for developing countries. https://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/35258511.pdf.
<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 47.
<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Universidade de Brasília, 2001, pp. 83-84.
<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> PARKHURST, Justin. The Politics of Evidence. From evidence-based policy to the good governance of evidence. New York: Routledge, 2017. Versão Kindle.
<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Op.cit.
<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> YE, Zheng; HELDMANN, Marcus; SLOVIC, Paul; MÜNTE, Thomas F. Brain imaging evidence for why we are numbed by numbers. Nature Scientific Reports (2020) 10:9270. https://www.nature.com/articles/s41598-020-66234-z.pdf
<a href="applewebdata://1F7CFCB8-7B29-4506-89F6-07891C8B6C84#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> CAO, Siying. Judges Who Use Economic Reasoning in Court Decisions Rule In Favor of Business More Often. ProMarket. https://promarket.org/2020/12/03/judges-who-use-economic-reasoning-in-court-decisions-rule-in-favor-of-business-more-often/

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JOTA

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