Opinião e Análise

Ana Frazão

Como se viu na <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/perspectivas-das-analises-de-impacto-regulatorio-airs-no-brasil-17022021">coluna anterior</a>, os propósitos das Análises de Impacto Regulatório (AIRs) são de introduzir tecnicidade e racionalidade às decisões regulatórias, pautando-as pelas evidências. Como consequência da sua adoção, espera-se o aumento da transparência, da accountability e do grau de fundamentação da regulação.
Entretanto, a possibilidade de que sejam indevidamente instrumentalizadas em prol de interesses políticos, notadamente os de justificar a agenda de desregulação, sempre permeou as discussões a seu respeito. Aliás, vale lembrar que a introdução das análises de custo-benefício na experiência norte-americana, no governo Reagan, ocorreu precisamente com a finalidade de embasar a política de desregulação.
<a href="http://conteudo.jota.info/aprovometro-jota"><img class="aligncenter wp-image-292714 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/aprovometro.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Como explica Susan-Rose Ackerman<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, o projeto de Reagan era desmantelar o Estado Regulatório, ignorando a regulação social, encorajando a inação das agências reguladoras e imputando ao Estado um altíssimo ônus da prova sempre que quisesse exercer suas competências regulatórias.
<blockquote class="jota-article__eye">Nesse contexto, as AIRs, especialmente na sua modalidade de análises de custo-benefício, foram as soluções encontradas para, valorizando os ônus e os custos da regulação e desconsiderando muitos dos seus benefícios, dar uma roupagem técnica a decisões que eram substancialmente políticas.</blockquote>
É por essa razão que, no contexto norte-americano, as análises de custo-benefício sempre tiveram que conviver com as críticas de que seriam meros disfarces para objetivos políticos ou de que seriam inerentemente antirregulatórias ou eticamente equivocadas<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Verdade seja dita que, embora inicialmente vinculadas à agenda desregulatória republicana implementada pelo governo Reagan, as análises regulatórias de custo-benefício foram igualmente adotadas por governos democratas, sendo o governo Bill Clinton um importante marco nesse sentido<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Com o passar do tempo, as AIRs, especialmente nas modalidades de custo-benefício, tornaram-se realidade na prática regulatória norte-americana, dissociando-se, pelo menos em teoria, dos ideais republicanos ou da agenda de desregulação.
Criou-se, na verdade, ambiente para se sustentar até mesmo a neutralidade e o caráter apolítico das análises de custo-benefício, partindo da premissa de que seriam instrumentos de melhoria regulatória e que, se bem utilizados, poderiam levar tanto à desregulação como ao fortalecimento da regulação.
Não obstante, subsistem consideráveis discussões em torno da pretensão de tecnicidade das análises de custo-benefício. Em estudo empírico de 2006, David Driesen<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> mostra que a neutralidade de tais análises, tão defendida pela indústria e pelos think tanks a ela vinculados, não se confirma, uma vez que tais instrumentos são comumente contrários à proteção do meio ambiente na prática e, em muitos casos, até mesmo na teoria. É isso que explica a sua maciça utilização, no governo Bush, para produzir numerosas mudanças regulatórias contra o meio ambiente, à saúde e à segurança.
Aliás, para Driesen, mesmo antes de Bush, as análises de custo-benefício eram comumente utilizadas para justificar a desregulação, em detrimento do meio ambiente, da saúde e da segurança das pessoas. Daí a sua conclusão: “The most common legal formulation of a cost-benefit test, that the costs should not exceed the benefits of regulation, acts a one-way ratchet, demanding that some regulations become less stringent, but never demanding greater protection of health, safety, or the environment.”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Em seu instigante livro de 2008, Retaking Rationality: How cost-benefit analysis can better protect the environment and our health, os autores Richard Revesz e Michael Livermore<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> reconhecem o caráter anti-ambientalista das análises de custo benefício, mas justificam o resultado com base na aversão que muitos ambientalistas, sindicatos e outros grupos progressistas teriam do instrumento, o que os afastou do necessário debate em torno do aperfeiçoamento das mencionadas análises.
Consequentemente, em razão da falta de equilíbrio político e de representação de diversos setores sociais na construção das análises de custo-benefício, estas acabaram sendo capturadas pela indústria, do que resultou a sua utilização para fins antirregulatórios. Entretanto, os autores entendem que tais análises são necessárias e que não conflitam aprioristicamente com a proteção do meio ambiente, desde que sejam utilizadas e aperfeiçoadas para abarcar esse tipo de proteção<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Como se pode observar, mesmo entendendo que as análises de custo-benefício não são destinadas apenas à desregulação, os autores reconhecem que acabaram tomando esse perfil na prática norte-americana, apontando inclusive para a necessária representação e participação social caso se queira alterar o preocupante cenário.
O aspecto da participação social será retomado mais adiante, ao longo da série, mas, por ora, importa destacar que a obra de Revesz e Livermore aponta para o que pode ser uma dissonância entre a teoria, em que as AIRs são pensadas como instrumentos técnicos em prol da qualidade da regulação, e a prática, em que as AIRs, por questões políticas ou de captura por poderosos agentes econômicos, acabam sendo utilizadas prioritariamente para a desregulação, mesmo que às custas de danos ao meio ambiente e a outros valores sociais importantes.
De toda sorte, fica muito claro que, a depender do perfil do governo, os riscos da politização excessiva das AIRs aumentam. Não é sem razão que, em sua nova obra Reviving rationality: saving cost-benefit analysis for the sake of the environment and our health, Revesz e Livermore<a style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> denunciam os danos à regulação que foram praticados durante o governo Trump, muitas vezes com a chancela das análises de custo-benefício.
Segundo os autores, Trump desestabilizou toda a ideia de racionalidade e de regulação baseada em evidências. Um exemplo seria a questão dos benefícios indiretos, que, embora sejam imprescindíveis para qualquer análise de custo-benefício, foram considerados pelo governo Trump apenas quando o propósito era justificar a desregulação, mas ignorados quando justificariam a regulação.
Em outras palavras, no seu novo livro, Revesz e Livermore, mesmo sendo árduos defensores das análises de custo-benefício, mostram os riscos da sua instrumentalização indevida e da sua utilização para encobrir uma agenda política a favor da desregulação, mesmo quando contrária às evidências e mesmo quando gere danos ao meio ambiente e à saúde.
<blockquote class="jota-article__eye">Seria grande ingenuidade imaginar que tais riscos não estariam presentes no Brasil, não apenas em razão do perfil do governo, mas sobretudo em razão do contexto em que as AIRs foram introduzidas em nossa realidade.</blockquote>
A esse respeito, não se pode esquecer que o Decreto 10.411/2020 regulamenta não apenas a Lei das Agências, mas também a chamada Lei de Liberdade Econômica que, já em seu título, deixa claro o seu propósito de instituir garantias de livre mercado e adota como princípios, dentre outros, a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas (art. 2º, III).
Não obstante as discussões sobre a própria constitucionalidade de tais dispositivos, o fato é que a AIR, se pensada sob a perspectiva de livre mercado e de intervenção subsidiária e excepcional do Estado, apresenta grande potencial de utilização somente em favor da desregulação.
Tais riscos aumentam quando se observa que o Decreto 10.411/2020, como já visto no artigo anterior, desconsidera que a AIR precisa incluir todos os impactos da regulação, o que abrange obviamente os impactos sociais e ambientais. Não obstante, estes não foram nem mesmo mencionados pela regulamentação, na contramão da experiência internacional sobre o tema, que considera tais impactos não apenas imprescindíveis, como ainda merecedores de uma abordagem integrada<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Por outro lado, a opção de admitir que a desregulação não venha acompanhada da respectiva AIR não encontra qualquer tipo de justificativa plausível, a não ser que se trate de justificar a desregulação a qualquer preço. Sobre o tema, Noll e Grab<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> deixam claro que a ideia de avaliação de impactos econômicos e cálculos de custo benefício são igualmente relevantes para suspender ou repelir uma regulação preexistente, enfatizando, a partir da jurisprudência da Suprema Corte americana, que a avaliação dos custos regulatórios precisa incluir os danos à saúde humana, à segurança e ao meio ambiente<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Logo, a falta de cuidado com que o Decreto 10.411/2020 trata de tais temas, associada ao perfil do atual governo e a inúmeras tentativas de tentar “passar a boiada” em favor da desregulação são claros sinais de que a adoção das AIRs precisa ser acompanhada de muitos cuidados, ainda mais diante da excessiva discricionariedade que se lhe emprestou.
Basta mencionar o inusitado art. 21, do Decreto 10.4111/2020, segundo o qual “a inobservância ao disposto neste Decreto não constitui escusa válida para o descumprimento da norma editada e nem acarreta a invalidade da norma editada”.
Tal norma pode dar margem à interpretação de que, mesmo diante de eventual AIR que aponte para os benefícios da regulação, possa haver a revogação desta, sem que haja qualquer comprometimento à validade do ato revogador.
Na verdade, como já se viu do artigo anterior, o Decreto admite a dispensa da AIR sempre que se tratar de ato que diminua os custos regulatórios (art. 4º, VII), os quais são vistos apenas pela restrita ótica dos agentes econômicos regulados, dos usuários e do próprio regulador (art. 2º, IV). Consequentemente, a desregulação poderia ser implementada mesmo sem AIR ou sem qualquer preocupação mais significativa com os impactos sociais e ambientais da desregulação.
Assim, no atual contexto, são fundados os riscos de que as AIRs, longe de cumprirem o seu importante papel de introduzir tecnicidade e racionalidade às decisões regulatórias, tornem-se meros instrumentos de chancela da agenda de desregulação do governo.
Além de tais riscos, há ainda uma gama considerável de preocupações que se levantam sobre o tema, como os próximos artigos da série passarão a abordar.
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O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:
https://youtu.be/9Tv7gNDT4Rw
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Deregulation and Reregulation: Rhetoric and Reality. Journal of Law &amp; Politics. Vol. VI, 1990, pp. 287-291.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Ver Stuart Shapiro, The Evolution of Cost-Benefit Analysis in U.S. Regulatory Decisionmaking. Jerusalem Papers in Regulation &amp; Governance. Working Paper n. 5, May 2010. https://ideas.repec.org/h/elg/eechap/13210_28.html
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Robert W. Hahn and Cass R. Sunstein A New Executive Order for Improving Federal Regulation? Deeper and Wider Cost-Benefit Analysis. John M. Olin Program in Law and Economics Working Paper No. 150, 2002. https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=&amp;httpsredir=1&amp;article=1009&amp;context=law_and_economics
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> David M. Driesen, "Is Cost-Benefit Analysis Neutral?" (2006). College of Law - Faculty Scholarship. 17.
https://surface.syr.edu/lawpub/17
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Idem.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Retaking Rationality: How cost-benefit analysis can better protect the environment and our health, Oxford University Press, 2011.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Idem.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Reviving rationality: saving cost-benefit analysis for the sake of the environment and our health. OUP USA, 2021.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Roel Slootweg, Frank Vanclay and Marlies van Schooten. Function evaluation as a framework for the  integration of social and environmental impact assessment. https://www.researchgate.net/publication/247896926_Function_evaluation_as_a_framework_for_the_integration_of_social_and_environmental_impact_assessment.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Bethany A. Davis Noll &amp; Denise A. Grab. Deregulation: process and procedures that govern agency decisionmaking in an era of rollbacks. https://policyintegrity.org/files/publications/Energy_Law_Journal_Deregulation_DG_BDN.pdf
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Op.cit., p. 292.

concessão

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JOTA

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