Opinião e Análise

Ana Frazão

Parte significativa da defesa dos livres mercados ancora-se na soberania do consumidor, que exerceria um importante papel para assegurar o equilíbrio de mercado. Afinal, além do papel que o consumidor teria para orientar escolhas das empresas sobre o que produzir e ofertar, a sua possibilidade de reagir, em tempo adequado, contra condutas abusivas seria uma espécie de antídoto natural para a contenção de práticas ilícitas ou excessivamente oportunistas.
A lógica do argumento é relativamente simples: diante de qualquer iniciativa expropriatória ou que busque assegurar vantagens indevidas para as empresas, em detrimento dos consumidores, basta que estes desviem sua demanda para outros agentes.
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Dessa maneira, o consumidor funcionaria como um verdadeiro controle para o bom funcionamento do mercado, de forma a restringir os incentivos para que as empresas abusem de seu poder, pois o preço a pagar seria a própria perda do consumidor, o que não seria racional para os agentes econômicos.
Ocorre que a ideia de soberania do consumidor pode funcionar muito bem na teoria, mas não na prática. Afinal, foi construída a partir de pressupostos idealizados que são completamente descolados do mundo real: liberdade do consumidor, racionalidade do consumidor, acesso à informação, mercados competitivos e ausência de custos de troca ou migração (os chamados switching costs).
Embora todos esses pressupostos tenham que estar presentes, simultaneamente, para que efetivamente se possa cogitar a soberania do consumidor, o que se observa é que, na realidade, não raro se está diante de mercados em relação aos quais não é possível encontrar nem mesmo um pressuposto isolado.
Comecemos com a liberdade do consumidor. Há muito que se discute que, em razão de diversas estratégias de propaganda, o consumidor não tem condições de exercer livremente suas escolhas. Com a crescente utilização de técnicas de neuromarketing e outras que procuram atingir o subconsciente dos consumidores, cada vez mais é difícil se falar em livre arbítrio.
A literatura sobre o assunto é vasta, mas poderia ser destacada a obra de Adrian Kuenzler, cujo título já deixa clara a preocupação do autor: "Restoring consumer sovereignty: how markets manipulate us and what the law can do about it"<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Para o autor:
<blockquote class="jota-article__citation">“Since economists and lawyers have been reluctant until recently to accept the power of the subconscious and have instead assumed that people make decisions in their own best interests by consciously weighting the relevant factors against each other, they have neglected the role that preference manipulation in such an economy may play. If the subconscious is as powerful as modern psychologists contend, economists and legal scholars must rethink that assumption.”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">“The basic challenge for regulators and courts to make markets work effectively in such an environment will be to restore the sphere of sovereignty and control of the consumer by making available an adequate amount of countervailing power with respect to the manipulation of consumer preferences. In the real world, the use of subconscious appeal in commercial marketing and the malleability of consumer preferences distorts this picture considerably”.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a></blockquote>
Acresce que, como já se demonstrou há bastante tempo, é fantasiosa a ideia de que as pessoas contratam o que querem, como querem, quando querem e com quem querem, assim como é bastante reducionista pensar no contrato apenas sob a ótica de livre instrumento de alocação de riscos entre as partes a respeito dos seus interesses patrimoniais.
De fato, na vida real, são muitos os casos em que os consumidores contratam porque precisam, já que os aspectos mais substanciais da sua vida dependem daquela contratação. Daí toda a discussão sobre os contratos necessários e sobre como a assimetria de poder entre os contratantes em tais situações deve exigir uma proteção diferenciada da parte vulnerável, ou seja, do consumidor.
Dentre inúmeros outros exemplos de situações nas quais a liberdade para alocação de riscos é questionável, podem ser destacados os contratos cujos objetos estão relacionados a situações existenciais indisponíveis, que podem e devem merecer uma tutela específica.
Assim, conforme o mercado ou o tipo de contrato, é bastante duvidoso que os consumidores sejam realmente livres, possam efetivamente dispor do que estão contratando, possuam algum tipo de poder de barganha e possam exercer, com um mínimo de autonomia, as faculdades que decorrem do contrato.
No que se refere ao pressuposto da racionalidade, este também vem sendo crescentemente colocado em xeque pela economia comportamental e outras áreas que procuram mostrar o quanto as pessoas normais se distanciam do modelo do homo economicus, ou seja, do agente racional maximizador de utilidades pessoais.
Consequentemente, em razão das inúmeras limitações de racionalidade, simplesmente não é esperado nem plausível que, em muitas situações, os consumidores possam perceber ou identificar os ilícitos e abusos a que estão sendo submetidos e muito menos que possam reagir a eles. O problema potencializa-se em contratos complexos, de longo prazo ou cativos.
Tal aspecto está intimamente relacionado a outro importante pilar da soberania do consumidor, que é o acesso às informações necessárias e adequadas, sem o que não é possível a tomada de qualquer decisão racional. Entretanto, no mundo real, é muito comum que a assimetria informacional simplesmente impeça que consumidores possam agir racionalmente, ainda quando possam fazê-lo.
Mais do que isso, em muitos casos, os consumidores são submetidos a estratégias de fraudes e manipulações informacionais por parte das empresas, o que dificulta – quando não impossibilita – a tomada de uma decisão racional, dentro do que seja possível.
A importância da vedação de tais estratégias é de tal importância que o próprio Friedman, ao definir os chamados “livres mercados”, nos quais o único objetivo das empresas seria a busca do lucro, fez questão de ressalvar que tal propósito apenas seria justificável em um ambiente isento de fraudes e manipulações, requisito que precisaria conviver igualmente com competição livre e aberta e de acordo com as regras do jogo<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Consequentemente, a ausência de fraudes e manipulações está diretamente relacionada ao próprio exercício da liberdade econômica dos consumidores, assim como a de qualquer outro agente econômico. Daí por que, como afirmam Akerlof e Shiller<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, sem a necessária regulação, a liberdade econômica dos mais fortes se transforma facilmente na liberdade de enganar os mais fracos:
<blockquote class="jota-article__citation">“When there are completely free markets, there is not only freedom to choose; there is also freedom to phish.”</blockquote>
Não é sem razão que Akerlof e Shiller defendem a importância da regulação estatal para proteger os consumidores, entendendo que o mantra de que o governo é o problema é em si mesmo um engodo<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>:
<blockquote class="jota-article__citation">“It is easy to believe that government is the problem (no qualification): if one thinks that markets work perfectly as long as people are free to choose. But with externalities, with an unfair distribution of income, and with phishing for phools, markets do not work perfectly. In that case, there is potential role for government. The Age of Reform had shown that government, used effectively, can be genuinely beneficial."</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"New Story - that government is the problem - is itself a phish for phools.”</blockquote>
Quanto à questão da competição livre e aberta a que se refere o próprio Friedman, trata-se de pressuposto fundamental para a soberania do consumidor, pois de nada adianta que o consumidor possa identificar abusos das empresas e querer reagir a eles quando não há outras opções no mercado ou quando existem apenas opções limitadas, muitas vezes com as mesmas vicissitudes da sua alternativa atual.
Contudo, o pressuposto da competitividade é cada vez mais distante do mundo real, marcado por mercados crescentemente concentrados ou mesmo por situações de monopólios ou quase monopólios. Em muitos casos, ainda que insatisfeito, o consumidor simplesmente não tem para onde migrar ou não tem opção que lhe assegure um maior grau de qualidade ou um menor grau de abusividade, já que não é raro que haja alinhamento de condutas entre empresas em mercados altamente concentrados.
É importante lembrar que a própria existência de posição dominante já coloca em risco a soberania do consumidor, uma vez que o agente que a detém pode interferir unilateralmente no mercado. Em outras palavras, a própria noção de posição dominante põe em destaque o grau considerável de independência do agente econômico que a detém, o que já indica um poderoso contraponto à soberania do consumidor.
Por fim, mesmo naqueles casos em que o consumidor tem informações e racionalidade para identificar o abuso e há concorrentes para os quais pode desviar a sua demanda, há a questão dos custos de mudança (switching costs), verificáveis em inúmeros mercados nos quais a reação do consumidor, ainda que possível, é demorada, difícil e custosa. Em muitas situações, ainda mais diante da assimetria informacional, mesmo o consumidor insatisfeito pode enfrentar várias dificuldades para deixar de ser cliente da mesma empresa ou ter tantos receios com a troca que acaba optando por não seguir em frente.
Todos esses aspectos mostram que, entre o mundo ideal no qual o pressuposto da soberania do consumidor foi intelectualmente plasmado e o mundo real existe uma distância tão grande que, em muitos casos, falar em soberania do consumidor, mais do que uma falácia, pode ser uma verdadeira negação da realidade.
Vale ressaltar que tal conclusão antecede ao aumento de complexidade característico dos mercados digitais, já tendo sido muito bem retratada na crítica de Kahneman a Friedman a partir do pressuposto da racionalidade das pessoas:
“Tal como interpretado pela importante escola econômica de Chicago, a fé na racionalidade humana está estreitamente ligada a uma ideologia em que é desnecessário e até imoral proteger as pessoas contra suas escolhas. Pessoas racionais devem ser livres, e devem ser responsáveis por cuidar de si mesmas. Milton Friedman, o principal pensador dessa escola, expressou sua visão no título de um de seus mais populares livros: Liberdade de escolher.” <a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
“Há então muita coisa em jogo no debate entre a escola de Chicago e os economistas comportamentais, que rejeitam a forma extrema do modelo de agente racional. Liberdade não é um valor contestado; todos os participantes no debate são a favor disso. Mas a vida é mais complexa para os economistas comportamentais do que para os adeptos ferrenhos da racionalidade humana.”<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
“A decisão de proteger ou não os indivíduos contra seus erros apresenta desse modo um dilema para os economistas comportamentais. Os economistas da escola de Chicago não enfrentam esse problema, pois os agentes racionais não cometem enganos. Para os defensores dessa escola, a liberdade não apresenta custo algum.”<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Como se pode observar, Kahneman não discute a importância da liberdade. Apenas ressalta que a mesma liberdade que é alcançada facilmente no mundo ideal de Friedman encontra muitas dificuldades concretas para ser exercida no mundo real.
Todos esses aspectos mostram o quanto a soberania do consumidor pode ser enganosa e o quanto é necessário avançar sobre soluções regulatórias que possam efetivamente proteger os consumidores, os quais se encontram ainda mais vulneráveis na economia digital, como se verá no próximo artigo desta série.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> KUENZLER, Adrian. Restoring consumer sovereignty: how markets manipulate us and what the law can do about it. New York: Oxford University Press, 2017.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Op.cit., p. xxix.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Idem.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ver FRAZÃO, Ana. Capitalismo de stakeholders e investimentos ESG. Considerações sobre o tema após 50 anos da publicação do artigo seminal de Milton Friedman. Série publicada no Jota. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/capitalismo-de-stakeholders-e-investimentos-esg-28042021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/capitalismo-de-stakeholders-e-investimentos-esg-28042021</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> AKERLOF, George; SHILLER, Robert. Phishing for Phools. The economics of manipulation and deception. New Jersey: Princeton University Press, 2015.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Op.cit., p. 152.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar. Duas formas de pensar. Tradução de Cassio Leite. São Paulo: Objetiva, 2011, p. 514.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Op.cit., p. 515.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Op.cit., p. 516.

consumidor

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