Ana Frazão
Advogada. Professora associada de Direito Civil, Comercial e Econômico da UnB. Ex-Conselheira do CADE.
A pergunta que motivou o título da presente coluna, que remete ao receio de que o capitalismo possa consumir a democracia, foi formulada a partir de pensamento de Martin Wolf, comentarista econômico chefe do Financial Times em recente entrevista no podcast Economics & Beyond with Rob Johnson sobre o seu novo livro, "The Crisis of Democratic Capitalism" (Penguin Press, 2023). Antecipo que, para o autor, o capitalismo pode, sim, consumir a democracia.
Ainda não tive tempo de ler o recém-lançado livro – o que farei em breve –, mas a entrevista já antecipa parte das preocupações de Wolf. Aliás, muitas delas já haviam sido delineadas por ele ao participar do meu podcast Direito e Economia, no episódio cujo título é "Covid-19, Capitalismo e Democracia".
Para Wolf, vivemos uma crise simultânea da democracia e do capitalismo, sendo a eleição de Donald Trump, um líder populista e demagogo, uma consequência desse processo. Daí por que precisamos refletir sobre as reais causas da dupla crise e sobre como reencontrar um novo equilíbrio entre democracia e capitalismo.
O próprio Wolf assume que, como muitos outros economistas, vivenciou o seu “momento liberal” no contexto de declínio do keynesianismo a partir da década de 1970. Ele também chegou a pensar que o maior problema econômico era um Estado interventor, assim como ele também chegou a adotar a premissa de que precisávamos de mais livres mercados e mais livre concorrência. Entretanto, o passar das décadas mostrou o equívoco dessa aposta, uma vez que a desregulação dos mercados não veio acompanhada dos benefícios que seriam esperados e ainda gerou inúmeros efeitos nefastos, como aumento da instabilidade macroeconômica e da desigualdade.
Entretanto, a eleição de Trump correspondeu a verdadeiro ponto de inflexão, por ser a comprovação evidente de que os efeitos das políticas econômicas neoliberais eram muito mais graves, na medida em que estavam passando a comprometer a própria estabilidade política, abalando consideravelmente a confiança das pessoas no capitalismo. Não é sem razão que candidatos que conseguem se posicionar no debate político como sendo contrários ao “sistema” ou mesmo como outsiders, como é o caso de Trump, passam a ter um grande apelo popular.
Para Wolf, esse estado de coisas decorre do reconhecimento, por parte significativa da população, de que o arranjo entre capitalismo e democracia simplesmente não está funcionando, dando ensejo a um sistema que, por funcionar apenas para os mais ricos, torna-se uma verdadeira plutocracia.
Ainda segundo Wolf, a crise de 2008 evidenciou todas as mazelas do atual capitalismo, confirmando a sua estrutura plutocrática, uma vez que o socorro financeiro jamais poderia ter beneficiado os que criaram o problema e dele obtiveram vantagens enquanto penalizava exatamente os mais pobres e menos favorecidos. Não obstante, foi exatamente o que ocorreu, já que a política do bail out do governo norte-americano injetou dinheiro público para beneficiar as instituições financeiras, sem maiores preocupações com a responsabilização criminal e civil dos envolvidos, enquanto os pobres perdiam suas casas.
Consequentemente, o episódio deixou claro que o cumprimento dos contratos, o pacta sunt servanda, um dos mais importantes pilares do capitalismo, pode ser flexibilizado em prol dos mais ricos, enquanto é exigido irrestritamente dos mais pobres, mesmo que ao preço de perderem o seu teto. Com efeito, para os grandes agentes econômicos, notadamente as grandes instituições financeiras e os too big to fail, não houve maiores problemas em se ignorar o pacta e socorrê-los com dinheiro público.
Tal postura foi a prova cabal de que o sistema ou não funciona adequadamente ou funciona apenas para proteger os ricos. Daí por que, segundo Wolf, a crise financeira de 2008 não levou apenas ao derretimento do sistema financeiro: ela teve como uma de suas principais consequências o derretimento da confiança no governo, na expertise regulatória e no próprio regime capitalista. A crise mostrou a incúria simultânea tanto das elites financeiras como do Estado, razão pela qual não se pode afastar a relação direta entre esse fenômeno e a eleição de alguém com o perfil de Trump.
É precisamente esse o contexto em que Wolf nos alerta para o fato de que o capitalismo desenfreado pode consumir a democracia – o que já estaria ocorrendo nos Estados Unidos – e que o consumo da democracia pode levar ao fim do próprio capitalismo, já que este precisa de uma série de garantias e de uma rule of law, calcada em determinados direitos e liberdades, que apenas podem ser asseguradas por meio de um regime democrático.
Segundo Wolf, é fantasiosa a pretensão das elites de conseguirem um ditador “sob medida”, cujo papel seja apenas o de garantir a segurança para que possam fazer o que quiserem na arena econômica. Por mais que essa aliança já tenha sido experimentada no passado, de que é exemplo o pacto entre supostos “liberais” e Pinochet no Chile, Wolf insiste no argumento de que a presença de um autocrata demagogo no poder é uma ameaça ao próprio capitalismo.
Afinal, ditaduras e autocracias não combinam com a proteção da confiança, com a rule of law e com a previsibilidade e segurança que são fundamentais para um regime de mercado, que necessariamente tem por pressuposto uma ordem jurídica racional e adequada, blindada contra o arbítrio ou as idiossincrasias do titular do poder político.
As próprias revoluções liberais são a prova de que é necessário conter o poder político desmedido para o estabelecimento de um efetivo regime de mercado. Mais do que isso, a construção paulatina dos direitos fundamentais ao longo da história mostra a convergência entre a contenção do poder político e o reforço das liberdades individuais, por um lado, com a proteção do comércio e das atividades econômicas, por outro lado, sendo a famosa Magna Carta inglesa um exemplo paradigmático nesse sentido.
Daí por que Wolf entende que não há outro caminho para a manutenção do capitalismo que não por meio do fortalecimento da própria democracia. Consequentemente, os livres mercados terão que ser contidos e temperados pelo Estado para prover instrumentos fundamentais de direitos e segurança para todos os seus cidadãos.
A ideia de que tais objetivos poderão ser atingidos sem o Estado, podendo vir exclusivamente dos mercados ou da benevolência dos ricos, é uma grande fantasia que, para Wolf, não guarda nenhuma correspondência com a realidade. Daí por que esforços precisam ser realizados para que, por meio do Estado, se reencontre o necessário equilíbrio entre democracia e capitalismo.
As sábias palavras de Wolf obviamente não se restringem ao contexto americano, ainda mais quando se sabe que a erosão das democracias vem ocorrendo em diversos países e com impressionante mimetismo. Para mim, são especialmente importantes para o atual contexto brasileiro, ainda mais depois do famigerado 8 de janeiro.
É importante estarmos atentos ao fato de que a economia é política e que a degradação do capitalismo e a degradação da democracia podem ser processos que, longe de ser distintos, apresentam causalidades semelhantes e ainda se retroalimentam.