Opinião e Análise

Ana Frazão

Já faz algum tempo que foi <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao/governo-bolsonaro-tem-intencao-de-vedar-remocao-de-posts-por-redes-sociais-07052021">divulgada notícia</a> de que o Presidente da República, por meio de decreto, pretende criar o que se vem chamando de “Novo Marco Civil da Internet”, a fim de limitar a ação das plataformas tanto para efeitos de exclusão de perfis, como para efeitos da exclusão de conteúdos dos seus usuários.
A novidade mais recente sobre o assunto foi a publicização da minuta do decreto<a href="applewebdata://F039CB37-CA47-4F74-BB7D-BC8B1C80E3DC#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, de cuja leitura é possível observar que o fio condutor da iniciativa é a ideia de que somente por decisão judicial podem as plataformas digitais excluir, cancelar ou suspender total ou parcialmente as contas de usuários ou os conteúdos postados.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Não é de hoje que existe um verdadeiro embate entre o governo e seus apoiadores e as plataformas digitais no que diz respeito a iniciativas de exclusão de conteúdos considerados como fake news ou desinformação. Basta lembrar que, há poucos dias, o YouTube determinou o apagamento de vários vídeos em que o Presidente defendia a cloroquina no combate ao coronavírus, contra todas as evidências científicas mais recentes<a href="applewebdata://F039CB37-CA47-4F74-BB7D-BC8B1C80E3DC#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Nesse contexto, o primeiro aspecto preocupante da iniciativa presidencial é o fato de que o decreto está indo muito além do que prevê a atual lei, ou seja, o Marco Civil da Internet.</blockquote>
Logo, a se manter o texto como está, não haveria maiores dificuldades em se identificar o vício de inconstitucionalidade formal do ato normativo, na medida em que ele cria novas regras e ainda institui, de forma autônoma, graves penalidades, dentre as quais a de multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico da plataforma no Brasil no seu último exercício.
Não obstante o vício formal, a questão do cancelamento, suspensão ou exclusão de contas ou conteúdos de plataformas digitais envolve importantes e complexas discussões de ordem constitucional e legal, diante da necessidade de se resguardar, de um lado, a liberdade de expressão e, de outro, um fluxo informacional compatível com os demais valores resguardados pelo ordenamento jurídico.
Tais aspectos são fundamentais para a preservação da própria democracia, pois esta pressupõe decisões livres e informadas por parte dos cidadãos, o que, por sua vez, depende de um fluxo informacional com um mínimo de qualidade, preservado minimamente contra iniciativas maliciosas ou manipuladoras que pretendem inventar ou distorcer abusivamente fatos para a obtenção de indevidos benefícios políticos.
Por maior que seja a dificuldade para se mapear os pressupostos e os limites da liberdade de expressão, é fundamental encontrar soluções para a contenção da desinformação e das fake news, especialmente nos casos em que tais condutas podem causar graves danos sociais, tal como ocorre no caso da divulgação de tratamentos médicos contra as evidências científicas e que, além de ineficazes, ainda podem causar graves consequências à saúde daqueles que deles se utilizarem, inclusive com risco de morte.
Daí por que, sob diversos ângulos, várias das situações normalmente enquadradas sob o guarda-chuva das fake news – especialmente aquelas que são intencionalmente divulgadas para enganar o público - não estão nem mesmo amparadas pela liberdade de expressão, mas são decorrência do seu exercício abusivo. Não se pode esquecer que as palavras importam, especialmente no ambiente virtual, em que podem rapidamente cruzar fronteiras e atingir um número considerável de destinatários com grande potencial de danos de diversas espécies, conforme o caso.
Exatamente porque os desafios para o endereçamento do problema são grandes e complexos, uma vez que as fronteiras entre o verdadeiro e o falso e entre o exercício regular e o exercício abusivo da liberdade de expressão podem ser, em diversos casos, bastante tênues, não se pode imaginar que um decreto pretenda resolver o problema, ainda mais por meio de um modelo de comando-controle exercido via punições. Afinal, iniciativas cogentes nesse assunto apenas podem partir da lei, mediante uma discussão ampla e informada, preferencialmente orientada por todos os mecanismos de participação social.
Nesse sentido, para demonstrar que o projeto de decreto não está simplesmente regulamentando o Marco Civil da Internet, é importante lembrar que a regra fundamental sobre as obrigações das plataformas digitais, no que diz respeito à exclusão de conteúdos, é o art. 19, que prevê que o provedor de aplicações de internet “somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente”.
Trata-se, evidentemente, de regra de responsabilidade civil que visa a resguardar as plataformas, ampliando – e não restringindo – a sua autonomia de gerenciamento do fluxo informacional que nelas transita. Para além desse dever e das hipóteses previstas no art. 21, o Marco Civil nada trata sobre o que as plataformas, por iniciativa própria, podem fazer para excluir conteúdos que considerem nocivos ou atentatórios às suas políticas de uso.
Aliás, considerando que tais plataformas não são agentes neutros na gestão de conteúdos, é realmente importante que organizem estruturas de governança privada sobre o que pode ou não trafegar em seus domínios, a fim de conciliar a liberdade de expressão dos usuários com os demais valores protegidos pelo ordenamento jurídico e por elas próprias. Daí por que, repete-se, não há uma única regra do Marco Civil que proíba os provedores de aplicação de suprimir, unilateralmente, conteúdos que sejam considerados inadequados.
Na verdade, como já se teve oportunidade de sustentar em artigo anterior<a href="applewebdata://F039CB37-CA47-4F74-BB7D-BC8B1C80E3DC#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, as plataformas não somente podem como devem excluir conteúdos além das hipóteses de decisão judicial previstas pelo art. 19 do Marco Civil, até porque este artigo precisa ser também interpretado em conformidade com a Constituição, o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, dentre outros. Todos esses diplomas normativos apontam para a necessidade de que a questão a responsabilidade civil das plataformas seja vista igualmente a partir da perspectiva do dever de cuidado exigido em cada hipótese, inclusive para o fim de tratar com maior rigor os casos claramente abusivos, em relação aos quais se exigiria a exclusão de conteúdos independentemente de ordem judicial.
Também naquela oportunidade<a href="applewebdata://F039CB37-CA47-4F74-BB7D-BC8B1C80E3DC#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> se mostrou que o dever de cuidado que se impõe às plataformas decorre igualmente do princípio da boa-fé objetiva, que se projeta na própria arquitetura da plataforma, ou seja, o seu design e a compatibilidade deste com padrões mínimos de accountability e de cuidado. Em outras palavras, se a plataforma digital exerce gestão, moderação ou controle de conteúdos, precisa adotar os deveres de cuidado necessários, razoáveis e proporcionais, o que pode exigir a exclusão de perfis ou conteúdos que possam causar danos a terceiros.
Todas essas reflexões caminham no sentido de que o dever de cuidado que se espera das plataformas pode e deve ir além da obrigação contida no art. 19 do Marco Civil. De forma contrária, a minuta de decreto vai de encontro à responsabilidade que se espera das plataformas digitais na atualidade, na medida em que pretende restringir e condicionar a sua atuação à prévia existência de decisão judicial, o que não é compatível com o potencial de riscos e danos a terceiros.
De fato, por mais que a minuta de decreto contemple várias exceções – algumas até desnecessárias porque já previstas no próprio artigo 21 do Marco Civil ou em outras legislações -, nenhuma delas se refere à questão da desinformação sobre assuntos relevantes e que podem causar grandes danos aos cidadãos brasileiros.
De toda sorte, independentemente do êxito ou não do decreto, reportagem da Folha de São Paulo de 29.05.2021, intitulada “Bolsonaristas montam ofensiva por blindagem nas redes sociais em 2022. Ao menos 12 projetos na Câmara proíbem empresas de remover conteúdo sem autorização judicial”, mostra a existência de inúmeros projetos com o mesmo objetivo da minuta de decreto, informando que a própria AGU já sugeriu ao presidente que use lei ordinária ou medida provisória para afastar eventual questionamento judicial.
Dessa maneira, tudo leva a crer que se trata de questão que não restará sepultada mesmo que o decreto não vingue. É curioso também notar que, na mesma edição da Folha de 29.05.2021, a reportagem “Liberdade de imprensa está sob ataque, afirmam especialistas. Repórteres e colunistas sofrem intimidações de bolsonaristas e autoridades”, mostra como a iniciativa de reduzir o autocontrole das plataformas é conjugada com uma crescente hostilização da atividade jornalística.
As duas estratégias são perigosos ataques contra o ambiente democrático, pois uma imprensa livre e respeitada é um dos pilares da democracia. Assim, sem imprensa livre e de qualidade e sem poder de reação por parte das plataformas digitais sobre o fluxo informacional que nelas transita, cria-se ambiente propício para o “vale-tudo” informacional e para a total subversão da democracia pela mentira.
Verdade seja dita que se espera das plataformas digitais que cumpram tal “poder-dever” de curadoria e gerenciamento de conteúdos por meio de regras claras, impessoais, justas e consistentes, que atendam aos parâmetros de transparência e accountability. Foi muito significativa, nesse sentido, a recente decisão do Oversight Board do Facebook – a chamada “Suprema Corte” do Facebook - a respeito da exclusão do ex-presidente Trump.
Como explicou a imprensa<a href="applewebdata://F039CB37-CA47-4F74-BB7D-BC8B1C80E3DC#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, no dia 5 de maio, o Oversight Board considerou que a decisão do Facebook de suspender as contas de Trump foi correta, mas que fazer isso por tempo indefinido seria inapropriado. Em essência, o Oversight Board retornou o problema para o Facebook, afirmando que a plataforma deveria ter regras mais claras e penalidades mais consistentes e atribuindo prazo de seis meses para que houvesse uma decisão final a respeito do caso Trump.       O Oversight Board ainda pediu ao Facebook que revisse seu papel sobre condutas anteriores que ajudaram a divulgar as mentiras de Trump sobre a fraude das eleições de novembro e mesmo para fomentar o levante do início de janeiro perante o Congresso.
No Brasil, também já é considerável o número de decisões judiciais que revertem exclusões ou bloqueios de usuários por parte de plataformas, sob os mais diversos motivos, muitos dos quais se referem ao arbítrio das plataformas ou à falta de regras claras e de procedimentos que assegurem a informação e o direito de defesa por parte dos usuários.
Com efeito, em muitos casos, o acesso a plataformas dominantes ou mesmo monopolistas – ou quase-monopolistas - tornou-se praticamente um elemento de cidadania digital, razão pela qual a exclusão pode equivaler a uma espécie de banimento, com graves prejuízos para os usuários. Daí surgirem discussões sobre a eficácia horizontal de direitos fundamentais a casos assim, especialmente no que diz respeito à observância do devido processo legal e do contraditório.
Soma-se a isso a discussão sobre em que medida perfis em plataformas e vários dos seus atributos – como conteúdos, listas de contatos ou seguidores, dentre outros – não deveriam ser considerados bens digitais de titularidade dos usuários, o que seria mais uma razão para justificar que procedimentos de exclusão fossem feitos de maneira criteriosa e em observância aos direitos constitucionais e legais dos usuários.
Tais aspectos são ora mencionados para se mostrar que, diante da complexidade do problema, há que se buscar soluções que fujam aos extremos de se impedir a curadoria de conteúdos por parte das plataformas, como pretende a minuta do decreto, ou de se entender que as plataformas podem fazer o que bem entenderem. Há que se buscar soluções que enderecem, de forma mais adequada, os problemas em questão, criando um equilíbrio entre todos os interesses em conflito.
Tudo leva a crer, inclusive, que a solução para problema sob exame exige um arranjo mais cuidadoso que combine o aprimoramento tanto da legislação como da autorregulação das plataformas.
O que não se pode admitir é que, por meio de um decreto ou mesmo de projetos de lei enviesados, se tente resolver questão com tal magnitude e complexidade por meio da consideração exclusiva de interesses eleitorais imediatistas, abrindo o campo para a disseminação ainda maior da desinformação e da mentira, em prejuízo da democracia e de toda a sociedade brasileira.
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<a href="applewebdata://F039CB37-CA47-4F74-BB7D-BC8B1C80E3DC#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A tramitação da iniciativa pode ser encontrada no Processo SEI 53115.012742/2021-90. <a href="https://sei.mctic.gov.br/sei/modulos/pesquisa-mctic/md_pesq_processo_exibir.php?ygkBjeFCv38mx8ijeaSoR2ZKelR6yhZfu3Ulo1YmRPsL4oLnGXscMggy1nOfEh1CcReBJnW0dtlNdmY1lT7zF3IrbvhsLZnO5IEM7YLNiGcVoosW1bUCIeaSwaJUwfRn" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://sei.mctic.gov.br/sei/modulos/pesquisa-mctic/md_pesq_processo_exibir.php?ygkBjeFCv38mx8ijeaSoR2ZKelR6yhZfu3Ulo1YmRPsL4oLnGXscMggy1nOfEh1CcReBJnW0dtlNdmY1lT7zF3IrbvhsLZnO5IEM7YLNiGcVoosW1bUCIeaSwaJUwfRn</a>
<a href="applewebdata://F039CB37-CA47-4F74-BB7D-BC8B1C80E3DC#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/05/27/limpa-no-youtube-videos-em-que-bolsonaro-defende-cloroquina-sao-apagados.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/05/27/limpa-no-youtube-videos-em-que-bolsonaro-defende-cloroquina-sao-apagados.htm</a>
<a href="applewebdata://F039CB37-CA47-4F74-BB7D-BC8B1C80E3DC#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> FRAZÃO, Ana; MEDEIROS, Ana Rafaela. Responsabilidade civil dos provedores de internet: a liberdade de expressão e o art. 19 do Marco Civil. https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/340656/responsabilidade-civil-dos-provedores-de-internet
<a href="applewebdata://F039CB37-CA47-4F74-BB7D-BC8B1C80E3DC#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> FRAZÃO, Ana; MEDEIROS, Ana Rafaela. Responsabilidade civil dos provedores de internet: a liberdade de expressão e o art. 19 do Marco Civil. <a href="https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/340656/responsabilidade-civil-dos-provedores-de-internet" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/340656/responsabilidade-civil-dos-provedores-de-internet</a>
<a href="applewebdata://F039CB37-CA47-4F74-BB7D-BC8B1C80E3DC#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> The Economist. Facebook and Donald Trump. Speechless. <a href="https://www.economist.com/united-states/2021/05/06/facebooks-oversight-board-says-that-donald-trump-can-be-kept-off-the-platform-for-now" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.economist.com/united-states/2021/05/06/facebooks-oversight-board-says-that-donald-trump-can-be-kept-off-the-platform-for-now</a>

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JOTA

A inadequação e os riscos de se impedir que plataformas digitais cumpram o seu papel de fazer uma eficiente curadoria de conteúdos