Pandemia

Novas perspectivas para a regulação jurídica dos mercados – Parte VII

O que temos a aprender com o livro The Narrow Corridor. States, Societies and the Fate of Liberty, de Daron Acemoglu e James Robinson

Daron Acemoglu. Wikimedia commons

Dando continuidade à série sobre os livros recentes que merecem ser lidos por todos aqueles que se preocupam com a regulação jurídica dos mercados, é indispensável a referência à obra The Narrow Corridor. States, Societies and the Fate of Liberty, de Daron Acemoglu e James Robinson (New York, Penguin Press, 2019), cujas lições são ainda mais importantes em tempos de crise como o presente.

Antes de examinar propriamente o livro, é importante destacar que ele não deixa de ser uma continuidade da famosa obra Why Nations Fail, oportunidade em que Acemoglu e Robinson procuraram demonstrar que o crescimento e o progresso das nações dependem sobretudo da existência de instituições econômicas e políticas inclusivas.

Sob essa perspectiva, os autores concluíram que prosperidade e pobreza não são fatos preordenados, baseados na cultura, na geografia ou no conhecimento, mas sim são resultados do horizonte institucional de cada país, moldado pela história ao longo dos séculos.

As instituições econômicas compreenderiam os sistemas e regulações que dirigem o comportamento econômico, o que inclui leis de propriedade, fortalecimento de serviços e acesso a crédito. Tais instituições são inclusivas quando estimulam o sucesso econômico e são desenhadas para encorajar a participação em atividades econômicas, já que as pessoas precisam saber que os esforços do seu trabalho duro e inovador serão remunerados e a riqueza deles decorrente será preservada. Em sentido oposto, as instituições são extrativistas quando não recompensam os esforços individuais e desviam rendas de uns para benefício de outros.

Ponto fundamental para a compreensão da abordagem institucional proposta por Acemoglu e Robinson é que as instituições econômicas inclusivas precisam ser apoiadas em instituições políticas igualmente inclusivas, caracterizadas pelo pluralismo, pela centralização e pela prevalência da rule of law, a fim de assegurar representatividade para todos os grupos, evitando que uns lutem contra os outros por superioridade.

Outro aspecto importante da primeira obra, especialmente para países como o Brasil, é ressaltar que as instituições extrativistas costumam deixar um duro legado, criando ciclos viciosos de pobreza e impedindo o crescimento sustentável. Entretanto, uma das principais mensagens de Why Nations Fail é a de que é possível, embora difícil, quebrar tais ciclos viciosos de pobreza.

No livro The Narrow Corridor, Acemoglu e Robinson mantêm a preocupação com o viés institucional para analisar aquele que é o objeto principal da obra: a liberdade, direito que apenas pode surgir e florescer em um contexto em que tanto o estado como a sociedade sejam fortes[1].

Um estado forte é importante para controlar a violência, assegurar o enforcement das leis e prover serviços públicos que são fundamentais para que as pessoas possam fazer suas escolhas e persegui-las[2]. De outra parte, uma sociedade forte é importante para controlar e limitar o poder do estado, mantendo-o “algemado”: daí a idéia de Shackled Leviathan[3].

Vale ressaltar que os autores partem de uma noção material – e não meramente formal – da liberdade, entendendo que somente é livre aquele que não está sujeito a nenhum tipo de ameaça, coação ou subjugação vinda de pessoas, grupos ou organizações. Da mesma forma, não há liberdade efetiva quando conflitos são resolvidos (i) pela força ou pela sua ameaça ou (ii) por relações de poder desiguais. Só existe liberdade quando não há dominância, qualquer que seja a sua fonte, pública ou privada[4].

A partir dessa perspectiva, os autores propiciam ao leitor uma rica incursão em inúmeros exemplos concretos, a fim de mostrar os resultados de diversos arranjos políticos e culturais ao longo da história e de como é delicado e difícil encontrar – e sobretudo manter – a liberdade a partir do equilíbrio entre uma sociedade forte e um estado forte.

Entretanto, a experiência histórica é utilizada igualmente para demonstrar que os países não necessariamente devem seguir o mesmo caminho para encontrar esse equilíbrio. De outro lado, por mais que a história importe, os autores advertem para o fato de que ela não pode ser vista como destino, diante das inúmeras possibilidades de ação coletiva e coalizões que podem remoldar a trajetória da sociedade[5].

O que não pode ser negligenciado é que o reconhecimento da liberdade emerge de um processo confuso, que não pode ser facilmente desenhado ou previsto, nem mesmo assegurado por um sistema de freios e contrapesos. Por essa razão é que é indispensável a vigilância da sociedade[6], já que o despotismo está no DNA do estado[7].

Outra conclusão importante dos autores é que existe uma relação intrínseca entre liberdade, prosperidade e crescimento econômico. Afinal, a prosperidade e o crescimento econômico originam-se de princípios básicos, que incluem incentivos para as pessoas investirem, experimentarem e inovarem. Tais incentivos dependem do Estado, sem o qual não há um direito para adjudicar disputas nem proteção para os direitos de propriedade que se situam no conflito[8].

Todavia, a prosperidade e o crescimento econômico não repousam apenas em direitos de propriedade seguros, mas dependem criticamente de amplas oportunidades econômicas. Por essa razão, é necessário que as oportunidades sejam ampla e justamente distribuídas na sociedade, a fim de que quem quer que tenha uma boa ideia para inovar ou investir em algo valioso tenha a chance de executá-la e receber as recompensas. Consequentemente, a liberdade no domínio econômico requer que o campo do jogo seja nivelado e acessível a todos[9].

Mais do que isso, instituições econômicas inclusivas apenas se prolongam no tempo se forem apoiadas por instituições políticas igualmente inclusivas, ou seja, que evitem a monopolização do poder político por um pequeno segmento da sociedade[10].

Nesse ponto, Acemoglu e Robinson reconhecem que a arquitetura conceitual desenvolvida em The Narrow Corridor expande o que foi desenvolvido em Why Nations Fail, já que o Schackled Leviathan não é apenas a culminação das instituições políticas necessárias para instituições econômicas inclusivas; mais do que isso, ele depende criticamente da habilidade da sociedade de conter o estado e as elites políticas[11].

Daí o papel central de normas que ajudam a sociedade a se organizar e se engajar na política e, se necessário, se rebelar contra o estado e contra as elites. Por mais que o Estado precise ser forte para aplicar a lei, resolver conflitos, prover serviços públicos e apoiar as instituições econômicas que criam oportunidades econômicas e incentivos, isso precisa ser mesclado com a habilidade da sociedade de controlá-lo[12].

Segundo os autores, provavelmente o mais brilhante insight de Hayek foi que o balanço entre o estado e o mercado não é apenas uma questão econômica; é também uma questão política. O desafio vital é assegurar que o estado possa aumentar sua capacidade para fazer frente às novas necessidades da sociedade, mas ainda assim permaneça constrito (“algemado”), o que requer novos caminhos pelos quais a sociedade é empoderada para monitorar e controlar o estado e as elites. Tal ponto está bem sintetizado na seguinte frase: “In fact, a lot of human progress depends on the state`s role and capacity advancing to meet new challenges while society also becomes more powerful and vigilant.[13]

Voltando a Hayek, Acemoglu e Robinson mostram que o autor austríaco não era contra toda intervenção governamental ou seguro social; na verdade, entendia que um mínimo de bens essenciais deveria ser assegurado a todos[14]. Todavia, seu temor contra o estado despótico era tão grande que o fazia crer que o único caminho para evitar tal destino seria a reafirmação da sociedade contra os poderes do estado e da dominância[15].

Entretanto, o erro de Hayek foi não ter visto a necessidade de o estado exercer um papel na redistribuição, criar uma rede de segurança social e regular uma economia cada vez mais complexa. Da mesma forma, não percebeu que, para manter o equilíbrio entre estado e sociedade, é preciso mudar sempre[16].

Além do papel estruturante do estado sobre a economia, já mencionado anteriormente, Acemoglu e Robinson dão diversos exemplos da necessidade da intervenção estatal sobre os mercados, dentre os quais para (i) endereçar as externalidades, como é o caso da poluição, (ii) assegurar os bens públicos, dos quais todos obtêm benefícios, como a infraestrutura ou a defesa nacional, (iii) enfrentar situações de informação assimétrica e (iv) evitar que monopólios cobrem preços excessivos ou entrem em atividades predatórias contra competidores[17].

Entretanto, os autores vão além, para defender que a intervenção governamental é também necessária para a segurança social e para a redistribuição com a finalidade de limitar a desigualdade[18]. Afinal, sem isso, não se tem como nivelar o campo e assegurar a equitativa distribuição de oportunidades econômicas para todos.

Para tal propósito, com base na experiência sueca, Acemoglu e Robinson consideram um equívoco confiar apenas na política tributária e na redistribuição direta. Entendem preferível desenhar instituições do mercado de trabalho que diretamente movam a economia em direção a uma distribuição mais equitativamente compartilhada dos ganhos decorrentes do crescimento econômico, tais como iniciativas para que trabalhadores se engajem em acordos coletivos, legislação em favor do salário mínimo e outras políticas que aumentem a sua remuneração[19].

Daí concluírem que a coalizão da social democracia na Suécia foi construída em modelo no qual os sindicatos e o estado diretamente regulavam o mercado de trabalho, o que gerava maiores salários para os empregados e menor necessidade de redistribuição pelos donos do capital[20].

Outro ponto importante é que Acemoglu e Robinson também defendem a intervenção do estado na economia para o fim de reequilibrar o poder político dos agentes envolvidos. Disso decorre a preocupação com a manutenção e o fortalecimento dos sindicatos que, para Acemoglu e Robinson, são centrais para manter o equilíbrio parcial de poder entre negócios organizados e o trabalho. Na verdade, foi o declínio do poder dos sindicatos ao longo das últimas décadas que modificou o equilíbrio de poder na sociedade americana em favor das grandes companhias[21].

Na parte final do livro, os autores ainda se debruçam mais especificamente sobre o problema do aumento da desigualdade, traduzido no aumento crescente da remuneração dos que estão no topo às custas da estagnação dos rendimentos dos que estão na parte inferior da pirâmide social[22]. Se a concentração do sistema financeiro tem levado à assunção de riscos excessivos e a grandes ineficiências[23], o aumento da concentração em outras áreas têm sido decisivo para o aumento da desigualdade, até por ter como consequência o achatamento dos salários dos trabalhadores[24].

Outro grave problema decorrente da desigualdade é a perda da confiança nas instituições, o que compromete o próprio Shackled Leviathan, cuja existência depende de a sociedade acreditar nas instituições que o apoiam e estiver disposta a protegê-las contra o poder do estado e contra as elites[25].

Entretanto, o aumento da desigualdade, a diminuição do emprego e os enormes lucros do setor financeiro e das grandes empresas sem regulação estimulam na sociedade o sentimento de que a economia é fraudada contrariamente aos interesses da maioria e de que o sistema político é cúmplice nesse processo[26].

Aliás, os autores chamam a atenção para o fato de que a desigualdade, o desemprego, a baixa produtividade e a perda de confiança nas instituições estão entre os fatores que tornaram o período da Grande Depressão tão fértil para a instabilidade política[27].

Novamente voltando ao exemplo da Suécia, os autores apontam que os efeitos da Grande Depressão foram bem contornados a partir de uma resposta assentada em três pilares: (i) o projeto como um todo estava construído sobre uma ampla coalizão composta de trabalhadores, fazendeiros e empresários, (ii) houve a adoção de um leque de respostas econômicas, tanto de curto prazo como institucionais, a fim de estimular a economia, assim como reformas para redistribuir renda entre os desempregados e (iii) havia um pilar político, traduzido na existência de poderosos controles sociais tanto sobre o estado como sobre a relação entre as elites políticas e as elites econômicas[28].

Semelhantes desafios devem ser enfrentados na atualidade e eles não serão vencidos se a sociedade e o estado não conseguirem cumprir o seu papel, o que requer a implementação de algumas medidas fundamentais, tais como (i) reduzir contribuições para campanhas eleitorais e limitar o impacto do lobby, investindo em instrumentos de transparência nas relações entre empresas, lobistas e políticos, (ii) aumentar a autonomia do serviço público civil, reduzindo a habilidade de novas administrações fazerem indicações políticas para as altas posições de agências governamentais, a fim de prevenir a captura e (iii) aumentar a mobilização da sociedade[29].

Fica muito claro, portanto, que a liberdade econômica pressupõe a liberdade política, razão pela qual é necessário um duro trabalho de mobilização social, o que requer, dentre outras medidas, assegurar representatividade a atores coletivos, como os sindicatos[30], e implantar uma concepção inclusiva e efetiva de liberdade e de direitos, incluindo minorias. Nas palavras dos autores[31]: “Human progress depends on the expansion of the state`s capacity to meet new challenges and combat all dominances, old and new, but that won`t happen unless society demands it and mobilizes to defend everybody`s rights. There is nothing easy or authomatic about that, but it can and does happen.”

Como se pode observar, assim como os autores anteriores que orientaram a presente sequência de artigos, a obra de Acemoglu e Robinson também representa uma importante crítica ao mainstream econômico, seja em relação às suas premissas, seja em relação aos seus efeitos nefastos sobre democracia e sobre o aumento da desigualdade econômica e política.

Mais do que isso, a obra de Acemoglu e Robinson mostra a relevância do Estado e da regulação jurídica para uma série de propósitos, muitos dos quais vão muito além da abordagem econômica tradicional, pois abrangem os objetivos de assegurar acesso equitativo a oportunidades econômicas, reduzir a desigualdade e restaurar o equilíbrio político.

Se há riscos decorrentes do crescimento exagerado do poder estatal, estes devem ser enfrentados por meio da mobilização social e não por meio da ampla desregulação ou do desmantelamento ou esvaziamento do estado, alternativas que são contrárias ao projeto de liberdade material para todos.

É por essa razão que, em países como o Brasil, onde ainda estamos muito distantes do equilíbrio entre estado e sociedade proposto por Acemoglu e Robinson, situações de crise podem ajustar o pêndulo para aumentar ainda mais o desequilíbrio, empurrando-nos para o autoritarismo estatal ou sujeitando-nos à prevalência incondicional do interesse de determinadas elites políticas ou econômicas. O resultado prático provável de ambos os cenários é manutenção ou mesmo o fortalecimento de instituições econômicas e políticas extrativistas.

Não há dúvidas de que, em tempos de crise, a vigilância a que se referem Acemoglu e Robinson precisa ser redobrada, a fim de que as medidas a serem tomadas para contornar os problemas atuais sejam inclusivas, buscando extinguir ou pelo menos mitigar qualquer forma de dominância pública ou privada.

 


[1] Op.cit., pp. xi-xiv.

[2] Op.cit., p. xv.

[3] Op.cit., p. xv.

[4] Op.cit., p. 7.

[5] Op.cit., p. 67.

[6] Op.cit., pp. 67-68.

[7] Op.cit., p. 72.

[8] Op.cit., p. 144.

[9] Op.cit., p. 144.

[10] Op.cit., p. 145.

[11] Op.cit., pp. 145-146.

[12] Op.cit., p. 146.

[13] Op.cit., p. 466.

[14] Op.cit., p. 465.

[15] Op.cit., p. 466.

[16] Op.cit., pp. 466-467.

[17] Op.cit., pp. 472-475

[18] Op.cit., p. 475.

[19] Op.cit., p. 475.

[20] Op.cit., p. 475.

[21] Op.cit., p. 475

[22] Op.cit., pp. 477-479.

[23] Op.cit., p. 480.

[24] Op.cit., pp. 481-482.

[25] Op.cit., pp. 482-483.

[26] Op.cit., pp. 482-483.

[27] Op.cit., p. 483.

[28] Op.cit., p. 484.

[29] Op.cit., p. 487.

[30] Op.cit., p. 492.

[31] Op.cit., p. 494.