Economia

Novas perspectivas para a regulação jurídica dos mercados – Parte VI

O que ainda temos a aprender com o livro de Heather Boushey, especialmente diante do cenário de crise da Covid-19

Heather Boushey. Foto: Ralph Whitehead/ flickr

Diante da riqueza das discussões suscitadas por Heather Boushey, não foi possível explorar, com a devida atenção, todos os pontos importantes do seu livro no artigo anterior, motivo pelo qual buscarei nesta oportunidade dar continuidade aos principais pontos defendidos pela autora.

Embora não fosse a minha intenção original, foi até bom ter havido a segmentação, já que a segunda parte do livro pode ser abordada diante da recentíssima Medida Provisória 936, de 1º de abril de 2020, que autoriza a suspensão de contratos de trabalho ou a redução de salários. O resultado prático da medida é que, mesmo com os auxílios governamentais, os salários podem ter reduções reais que chegam a 57%, sem que, para isso, haja necessidade de negociação coletiva.

Como se pode concluir a partir do texto de Boushey, a medida provisória é mais um exemplo de política pública que sacrifica o grupo mais fragilizado: o de trabalhadores brasileiros, que já vinham amargando perdas há bastante tempo. As soluções encontradas, além de serem desastrosas para a vida dos trabalhadores, ainda gerarão mais desigualdade, o que não é justificável nem mesmo em um cenário de crise.

Daí por que, neste artigo, tratarei da obra de Boushey procurando estabelecer pontes de contato com a realidade atual da pandemia do coronavírus e das soluções que se cogitam para resolver os principais problemas dela decorrentes. Esclareço, desde já, que as conexões com a realidade brasileira e com a questão da pandemia são da minha exclusiva responsabilidade, já que a autora não tratou diretamente desses problemas.

Como se viu no artigo anterior, na primeira parte do livro, Boushey dedica-se a apreciar como a desigualdade obstrui o crescimento econômico e a regular dinâmica dos mercados. Na segunda parte, o seu objetivo é entender como a desigualdade subverte a dinâmica dos mercados, minando as instituições estatais que lhe dão suporte direto e indireto1.

Um dos exemplos, segundo a autora, é o fato de que a fé cega nos mercados desmantelou uma série de programas que poderiam conter a desigualdade2. E o que isso tem a ver com a pandemia?

Não há dúvidas de que os efeitos de uma crise como a que estamos vivendo seriam muito menores se a maior parte da população brasileira tivesse a condições mínimas para uma vida digna, como habitação, saneamento básico e uma poupança que assegurasse a sobrevivência por um curto período de tempo.

Para Boushey, a extrema desigualdade que estamos vivenciando é decorrência da subversão das instituições públicas, de forma que o policymaking process necessário para dar apoio à economia foi afastado do interesse público e direcionado para promover o rent seeking de agentes econômicos privilegiados, permitindo-lhes obter mais lucros e rendas do que conseguiriam em um mercado realmente competitivo3. Não é uma mera coincidência que, em situações de crise, os ônus das medidas mais drásticas sejam suportados pelas classes pobres e trabalhadoras, até porque a elas resta pouca ou nenhuma representatividade política para pleitear soluções mais justas e condizentes com seus interesses.

Dentre as principais ramificações do rent seeking, Boushey destaca duas4: (i) a manipulação do funcionamento do marketplace, já que a desigualdade econômica confere a alguns agentes econômicos os meios financeiros para assegurar a influência política; e (ii) a interferência indevida nos processos políticos, a fim de favorecer determinados agentes econômicos por diversos maios, que vão desde regras de desoneração tributária até a adaptação de normas regulatórias em favor de interesses específicos.

A partir de um intrincado mecanismo de influências diretas e indiretas, que envolve lobby, doações para campanhas políticas e para organizações não lucrativas com a finalidade de influenciar agências e decisões regulatórias, dentre outras estratégias5, os que estão no topo asseguram a supremacia da sua vontade sempre.

Não é sem razão a conclusão de Lawrence Lessig de que não há democracia quando um sistema não assegura e nem mesmo busca assegurar um mínimo de representatividade a todos6. Aliás, não é mera coincidência que, nesse cenário de pandemia, assistimos diariamente no Brasil diversas autoridades procurando dar justificativas e explicações para o “mercado”, muitas vezes em eventos privados, sem ter qualquer preocupação de dar justificativas para os trabalhadores e para a sociedade civil de forma geral.

Além da perda de representatividade política, outro efeito perverso da extrema desigualdade é, segundo Boushey, o comprometimento do investimento sustentável em bens públicos e serviços de utilidade geral, bem como em iniciativas que dizem respeito à segurança alimentar e à garantia de salários competitivos e benefícios adequados para os trabalhadores7. É por essa razão que os trabalhadores, especialmente os informais, que mal têm condições de sobreviver em cenários de normalidade, ficam em situação ainda mais vulnerável diante de crises, como a gerada pela pandemia.

Sob essa perspectiva, o ponto fundamental defendido por Boushey é que precisamos entender as dimensões políticas da desigualdade, pois elas abrangem todas as formas pelas quais a economia é subvertida, impossibilitando que as instituições e o governo possam trabalhar para a maioria8.

Nesse contexto, que ganha força o argumento de que os Estados Unidos estão em vias de se tornarem – se já não se tornaram – uma oligarquia, uma sociedade em que as elites econômicas se tornaram capazes de moldar e manipular o poder político, focando apenas no seu próprio enriquecimento9. Não há dúvidas de que a mesma observação pode ser feita – com ainda maior razão – no caso brasileiro, com o agravante de que o problema “oligárquico” faz parte da nossa história e da nossa realidade.

É por essa razão que Boushey considera imprescindível resgatar os objetivos originais do Direito Antitruste, a fim de contornar a concentração excessiva e os resultados políticos preocupantes daí resultantes10.

Não obstante as dimensões políticas, Boushey mostra que a crescente concentração de poder econômico vem também reduzindo a competição e diminuindo a produtividade, com o comprometimento do crescimento econômico e da estabilidade11. Daí a menção ao trabalho de Saez e seus colegas, os quais propõem uma reestruturação do sistema tributário a partir das evidências de que a tributação menor para o topo não leva aos resultados benéficos que isso sugeriria; pelo contrário, a evidência é de que, quando os ricos pagam menos tributos, são encorajados a agir de formas mais improdutivas12. Muitas dessas conclusões estão consubstanciadas em livro de Emmanuel Saez e Gabriel Zucman cujo título já antecipa as suas conclusões: The Triumph of Injustice: How the Rich Dodge Taxes and How to Make Them Pay (New York, W.W. Norton & Company Inc., 2019).

Ademais, segundo Boushey, o poder econômico sem controle também vem limitando a inovação e o crescimento econômico13, o que mostra que o diagnóstico de Kenneth Arrow – segundo o qual, quanto menor a competição, menor a inovação – é mais acertado para a época atual do que o de Schumpeter – segundo a qual o poder de monopólio poderia estimular a inovação, assegurando ao monopolista maiores recompensas e maior poder financeiro para fazer investimentos em longo prazo14.

Segundo Boushey, as evidências mostram que a concentração de mercado nos Estados Unidos está mais impedindo do que incentivando investimentos em P&D15. Nesse sentido, são citados estudos que mostram que (i) monopolistas são menos prováveis de querer mudar tecnologia, porque a transição é custosa e (ii) os preços aumentam significativamente depois de fusões e aquisições horizontais, enquanto não há evidência de que a produtividade cresce nas novas firmas assim criadas16.

Ainda sobre o tema, Boushey faz referência às pesquisas de German Gutierrez e Thomas Philippon, que apontam para o fato de que a maior concentração – incluindo a common ownership -, associada ao short-termism, leva à diminuição do crescimento econômico, dos salários e do investimento, mesmo tendo as empresas muito dinheiro para investir17.

Por essas razões, argumenta Boushey que a concentração de mercado está beneficiando apenas o topo, mas não os demais, até porque está relacionada igualmente à diminuição dos salários18.

Com efeito, ao invés de alocar lucros em novos investimentos para assegurar o futuro crescimento da empresa ou pagar salários mais dignos, os grandes agentes econômicos estão comprando de volta suas ações (buy backs) e pagando grandes dividendos e remunerações aos CEOS às custas do achatamento dos salários dos empregados, com a consequente exacerbação da desigualdade econômica19.

Nesse sentido, as pesquisas de Gutierrez e Philippon mostram que os pagamentos dos CEOs estão crescendo muito mais do que a produtividade, o que é uma das razões que explica o crescimento dos rendimentos dos 0,1% mais rico20. Aliás, sobre o tema, Boushey lembra que Piketty, no seu livro Capital no Século XXI, já havia mostrado que o aumento do pagamento dos CEOS não pode ser justificado a partir do produto marginal do seu trabalho, motivo pelo qual está mais próximo de um verdadeiro rentseeking21.

Já os trabalhadores passam a estar sujeitos ao poder de monopsônio dos empregadores22, o qual, segundo Alan Krueger, tem sido utilizado para suprimir salários, até diante da erosão das forças que tradicionalmente o contrabalançou, como os sindicatos23. É por essa razão que Boushey menciona o trabalho de Naidu, Weyl e Eric Posner que, partindo da evidência de que as fusões subvertem o poder de mercado em relação aos empregados, propõem que as operações sejam analisadas também a partir dos potenciais efeitos nos mercados do trabalho, da mesma forma como se analisa os seus efeitos sobre produtos e serviços24.

Fica claro, portanto, que não há como resolver o problema da desigualdade sem endereçar a questão dos trabalhadores, o que exige o incremento do poder de negociação deles, o fim de tratamentos abusivos por parte dos empregadores, o encorajamento da ação coletiva e a facilitação da organização em sindicatos25.

Aliás, é importante destacar que Boushey tem especial preocupação com a questão dos sindicatos, por entender que a causa de restaurar o poder de barganha dos empregados, embora justa e necessária, ainda não ganhou o devido apoio da comunidade jurídica26.

Voltando ao contexto brasileiro, que é muito semelhante ao americano nesse ponto, não é nenhuma surpresa que a Medida Provisória 936 tenha dispensado a participação dos sindicatos para a implementação das suas medidas. Isolado e sem proteção, o trabalhador não tem a quem recorrer nem em situações de normalidade nem em situações de crise.

Outro ponto importante abordado por Boushey, especialmente na última parte do livro, é como a desigualdade distorce a economia. É a visão míope decorrente da equivocada teoria de Say, de que toda oferta gera sua demanda, que motiva políticas como as de Trump, no sentido de que tudo que o governo precisa fazer é assegurar que os empreendedores tenham dinheiro, motivo pelo qual os cortes na tributação são vistos como meios para o investimento em novos produtos e serviços e, consequentemente, para o crescimento econômico27.

Entretanto, a ideia de que negócios “não sentam sobre dinheiro” vem sendo desmentida pela realidade, pois, na atualidade, é o que está ocorrendo: na década passada, o investimento decresceu enquanto os lucros cresceram28. Afinal, se uma parte substancial da sociedade não tem dinheiro, não têm obviamente como gastar, o que gera um desincentivo para o aumento da oferta29.

Nesse sentido, Boushey traz evidências empíricas de que o número de consumidores que não têm dinheiro para gastar ou estão tomando empréstimos para comprar o que precisam é crescente, o que leva à conclusão de que a progressiva desigualdade econômica não só desestabiliza o gasto, como reduz o gasto estável, o que distorce a economia como um todo30. Afinal, ao mesmo tempo em que a grande desigualdade aumenta a poupança disponível31, o cenário dela decorrente é de pouco consumo por parte das classes baixas e muito dinheiro nas mãos do topo, mas que não é investido32.

Segundo Boushey, são muitos os estudos recentes que, confirmando a posição de Keynes, em detrimento da de Friedman, destacam o papel do consumo para o investimento, sob o argumento trivial de que, sem consumidores com dinheiro no bolso prontos para gastar, simplesmente não há incentivo para investir33.

Por outro lado, o crescimento econômico a partir do crédito aumenta a instabilidade econômica e leva a perdas de oportunidades econômicas, implicações macroeconômicas da crescente desigualdade que têm sido ignoradas por muito tempo mas, com base nesse novo conjunto de pesquisa empírica, podem ser vistas como um fator chave para afetar tanto o crescimento econômico como a estabilidade34.

É por essa razão que são inadequadas soluções que, a exemplo do que foi implementado pela Medida Provisória 936, não se preocupam com o poder de compra das pessoas e com a manutenção da demanda. Por mais que manter salários possa envolver altos custos imediatos – a justificarem, conforme o caso e mediante algumas contrapartidas, a participação do Estado na assunção de tais custos -, pode ser fator indispensável para a recuperação mais rápida da economia no médio prazo. De forma contrária, acabar com o poder de compra dos trabalhadores aumentará a desigualdade e trará óbices para o crescimento cujos efeitos perdurarão por muito tempo depois da pandemia.

Por fim, Boushey dedica-se, no último capítulo do livro, a demonstrar o desacerto da tese de que a desregulação estimula o crescimento e cria empregos. Tomando por base o setor financeiro, a autora mostra que, apesar de um dos resultados da desregulação ter sido o aumento imediato dos empréstimos pelos bancos, o crescimento daí decorrente não se mostrou forte nem estável35. Na verdade, os efeitos da desregulação financeira, somados aos da desigualdade, não levaram ao investimento produtivo, o que levou à situação inusual de uma economia com muita poupança, mas sem fluxo suficiente para as mãos das famílias fora do topo36.

O que os estudos mostram é que houve uma visão errônea da estrutura de incentivo para o investimento: a presunção de que os que controlam a oferta irão direcioná-la para os investimentos que sejam melhores para a economia geral não tem sido confirmada pela realidade37. Daí por que a mera desregulação da economia, que foi um dos objetivos da famosa Lei de Liberdade Econômica no Brasil, pode não levar ao crescimento e ainda ser um fator de aumento da desigualdade.

Com efeito, Boushey mostra que, quando maior a desigualdade, mais capital torna-se disponível para investimento, mas, ao mesmo tempo, nenhuma demanda adicional se materializa, assim como nenhum bem ou serviço adicional é vendido38.

No final, a alta desigualdade resulta em pouco consumo ou muita dívida, sendo que nenhuma dessas situações encoraja um crescimento forte e estável39.

Tais consequências, segundo Boushey, haviam sido previstas por Keynes, segundo o qual, no longo prazo, a alta desigualdade leva ao resultado perverso de se ter mais poupança disponível para o investimento mas menos incentivo para investir40.

Daí por que a desregulação do setor financeiro pode ser mais bem compreendida sob a perspectiva do poder de mercado das instituições financeiras, que o utilizaram para reescrever as regras do jogo, a fim de pudessem ganhar mais com menos riscos, enquanto se aumentou o risco de todos os outros41. Daí as explicações para a distorção do crédito e a grande recessão, evento que mostra como a dívida pode ser perigosa42.

Em resumo, a desigualdade econômica significa muita poupança, mas poucas oportunidades atrativas para investimentos rentáveis, o que desestimula o crescimento a longo prazo43. Não é sem razão que, segundo Krugman, as persistentes quedas de demanda não são superadas nem mesmo com uma política de taxas de juros próximas de zero44.

Com isso, fica claro que, sem resolver o problema da desigualdade, não há como se pensar em crescimento econômico nem em estabilidade45. Além de ser um grande equívoco achar que os livres mercados irão entregar resultados ótimos46, Boushey defende a tese de que precisa haver uma mudança fundamental no papel do governo, a fim de assegurar que trabalhadores e suas famílias também participem do crescimento econômico47. Daí defender a importância do Antitruste para tais propósios, das legislações que conferem ao trabalhadores maior poder de barganha e dos seguros contra a insegurança econômica48.

No mesmo sentido dos autores aqui já explorados nessa série, Boushey também mostra a necessidade de incluir mais vozes no debate econômico, a fim de que ele seja ampliado para endereçar o interesse de todos, o que não acontece na atualidade, em que a maioria dos experts engajados na discussão pública são enviesados e representam aqueles que estão no topo49.

Como se pode ver, as observações da autora não poderiam ser mais pertinentes para a realidade brasileira, ainda mais no atual cenário de crise. Ao mostrar que não existe tradeoff entre crescimento econômico e redução da desigualdade – pelo contrário, um não existe sem outro -, a obra de Boushey nos instiga a pensar na importância da redução da desigualdade e da manutenção do poder de compra dos trabalhadores e da população em geral, a fim de manter uma demanda sustentável para reduzir, dentro do possível, os efeitos adversos da pandemia no presente e ajudar a criar uma base sólida para o crescimento no futuro.

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1 Unbound: How inequality constricts our economy and what we can do about it (Cambridge: Harvard University Press, 2019, p. 85.

2 Op.cit., p. 85.

3 Op.cit., pp. 85-86.

4 Op.cit., p. 86.

5 Op.cit., p. 137-138.

6 Republic, Lost. The corruption of equality and the steps to end it. New York: Twelve, 2015.

7 Op.cit., p. 86.

8 Op.cit., p. 86.

9 Op.cit., p. 86.

10 Op.cit., pp. 116-117.

11 Op.cit., p. 86.

12 Op.cit., p. 87.

13 Op.cit., p. 89.

14 Op.cit., p. 122.

15 Op.cit., p. 123.

16 Op.cit., p. 123.

17 Op.cit., pp. 123-124.

18 Op.cit., pp. 126-127.

19 Op.cit., pp. 127-128.

20 Op.cit., pp. 128-129.

21 Op.cit., p. 129.

22 Op.cit., pp. 129-130.

23 Op.cit., pp. 130-134.

24 Op.cit., p. 136.

25 Op.cit., p. 137.

26 Op.cit., p. 137.

27 Op.cit., p. 139.

28 Op.cit., p. 139.

29 Op.cit., p. 140.

30 Op.cit., p. 140.

31 Op.cit., p. 141.

32 Op.cit., p. 141.

33 Op.cit., pp. 148-152.

34 Op.cit., p. 141.

35 Op.cit., p. 169.

36 Op.cit., p. 169.

37 Op.cit., p. 169.

38 Op.cit., p. 170.

39 Op.cit., p. 170.

40 Op.cit., p. 170.

41 Op.cit., p. 170.

42 Op.cit., p. 171-175.

43 Op.cit., p. 179.

44 Op.cit., p. 180.

45 Op.cit., p. 191.

46 Op.cit., p. 191.

47 Op.cit., p. 192.

48 Op.cit., pp. 192-193.

49 Op.cit., pp. 205-206.