Opinião e Análise

Ana Frazão

Recentemente, a Meta, dona do Facebook, <a href="https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2022/08/15/dona-do-facebook-processa-empresas-brasileiras-por-venda-de-seguidores-no-instagram.ghtml">processou empresas brasileiras</a> por venda de seguidores, comentários, curtidas e visualizações no Instagram, sob o fundamento de que tais práticas seriam contra as políticas da empresa e seus termos de uso.  
Não obstante, os negócios de fazendas de cliques ou engajamento falso vêm movimentando uma grande indústria, razão pela qual, na ocasião da propositura das ações mencionadas, a <a href="https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2022/08/15/dona-do-facebook-processa-empresas-brasileiras-por-venda-de-seguidores-no-instagram.ghtml">Meta informou que estava desativando outras contas</a> que prometem engajamento falso e que já notificara mais de 40 empresas brasileiras por esse tipo de prática no Instagram e no Facebook. 
Essa é apenas uma das estratégias associadas ao que se chama de marketing 4.0, que pode envolver iniciativas ainda mais agressivas, como subverter ou fraudar sistemas de avaliação, bem como adotar estratégias de comunicação claramente mentirosas e artificiais para os mais diversos fins, muitos dos quais envolvem ludibriar intencionalmente consumidores, empregados – inclusive para a fim de desmobilização de greves e outros movimentos — e a própria opinião pública. 
Tais casos mostram o quanto o fluxo informacional tem sido disfuncional no ambiente digital, o que suscita preocupações que vão muito além da violação dos termos de uso das plataformas. A inquietação principal é com a estruturação de um verdadeiro mercado de reputações que, longe de refletir o mérito dos agentes econômicos, parece estar operando na base do vale tudo. Afinal, a simulação, a mentira e a fraude tornaram-se estratégias usuais para convencer consumidores, trabalhadores e a opinião pública a respeito da respeitabilidade dos agentes econômicos. 
Não é de hoje que se apontam os problemas relacionados aos mercados de ideias e de fabricação de consensos, assim como não são recentes os desafios específicos do fluxo informacional no ambiente digital, especialmente a partir do momento em que as plataformas digitais se tornaram as praças públicas da vida contemporânea. Tal cenário vem propiciando inúmeras possibilidades para distorcer e manipular a opinião pública para os mais diversos fins, que vão dos políticos aos econômicos. 
Dessa maneira, o problema das fake news e da desinformação projeta-se muito além da política e da ciência; apresenta igualmente um importante alcance comercial, esfera em que também estão presentes inúmeras estratégias de manipulação. Muitas delas, além de cruzarem os limites da ética e da legalidade, têm como resultado final o de distorcer por completo o ambiente informacional. 
Não se pode esquecer que uma das faces mais importantes de uma sociedade movida a dados e de vigilância é ser também uma sociedade de perfis, rankings, classificações e sistemas de avaliações. Tais referenciais reduzem complexidade e ajudam as pessoas na difícil tarefa de lidar com o excesso de informações e de possibilidades de interações econômicas e não econômicas. 
Em outras palavras, perfis, rankings, classificações e sistemas de avaliação são – ou pelo menos deveriam ser — importantes ferramentas para endereçar o problema da interação entre desconhecidos, em relação aos quais a ausência de confiança pode ser um obstáculo intransponível para o estabelecimento qualquer tipo de relacionamento. Consequentemente, se minimamente adequados e fidedignos, tais sistemas, no que diz respeito aos contratos e principalmente aos contratos de consumo, podem ser importantes mecanismos de redução de assimetrias informacionais e dos custos de transação daí decorrentes. 
Essa é a razão pela qual plataformas que intermedeiam serviços sempre contam com sistemas de avaliações dos ofertantes e, em alguns casos, contam igualmente com sistemas de avaliações dos próprios usuários, como é o caso da Uber. Paralelamente aos sistemas próprios de avaliação das plataformas, surgem também outras iniciativas para ranquear e avaliar agentes econômicos, de que são exemplos os sites de reclamação dos consumidores. O resultado final é a existência de um complexo e relativamente abrangente ecossistema de avaliação, da qual passa a depender a reputação e as oportunidades de negócio daqueles que estão sujeitos aos referidos julgamentos. 
Mesmo nas plataformas de redes sociais – que, a rigor, não fazem a intermediação direta de serviços, tendo como o core do seu modelo de negócios o matchmaking entre usuários e anunciantes – os participantes estão sujeitos a critérios de avaliação que, embora não sejam tão explícitos como uma nota ou uma classificação, igualmente refletem o quanto são admirados pelo público, tais como o número de seguidores, o número de curtidas e visualizações dos conteúdos postados ou as interações dos usuários, o que inclui compartilhamentos e comentários. 
Independentemente da possibilidade de manipulação de tais critérios, o ambiente digital hoje já é suficientemente opaco e obscuro para possibilitar que os consumidores possam realmente avaliar a reputação dos agentes econômicos que lhes oferecem produtos e serviços. Para além dos critérios desconhecidos por meio dos quais as plataformas selecionam o conteúdo personalizado que será enviado para cada usuário, em muitos casos, como ocorre com os influencers, o destinatário nem mesmo tem como distinguir o que é publicidade ou não, havendo inúmeras estratégias para a propaganda velada ou disfarçada.  
O problema torna-se ainda mais dramático quando agentes econômicos podem interferir diretamente em sistemas de avaliações ou mesmo corromper tais critérios, tal como ocorre na compra de seguidores e curtidas, prática que não tem outra finalidade senão a de simular uma respeitabilidade ou admiração que aquele agente econômico não tem na realidade. 
Daí a necessidade premente de iniciativas que, a exemplo do <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/pl-das-fake-news-entenda-o-que-e-seu-impacto-e-as-principais-criticas-18042022">PL das Fake News</a>, tentem assegurar maior transparência para o fluxo informacional da internet, possibilitando ao menos identificar conteúdos patrocinados e publicitários, bem como interações inautênticas, como as promovidas pelos chamados bots ou falsos perfis. 
Entretanto, a ausência de uma regulação específica não quer dizer que esse tipo de situação esteja em uma espécie de vácuo legislativo. Pelo contrário, deve ser apreciado à luz das regras jurídicas cabíveis e dos preceitos éticos que devem orientar agentes econômicos nas áreas de publicidade e comunicação social. 
Dentre as inúmeras regras legais que podem ser trazidas para a presente discussão, encontram-se 1) o Código de Defesa do Consumidor, que contém disciplina contra a publicidade enganosa e abusiva, 2) a cláusula geral da boa-fé objetiva, que se aplica igualmente na fase pré-contratual e está fortemente atrelada à proteção da confiança, razão pela qual tem no dever de informar um dos seus principais deveres anexos e 3) a Lei de Propriedade Industrial, que prevê como concorrência desleal atribuir-se, como meio de propaganda, reconhecimento ou distinção que não obteve. 
O que se verifica, portanto, é que o “vale-tudo” em que o mercado de reputações se encontra envolve a negligência não apenas com a ética e com o respeito aos consumidores, mas também com diversas leis que coíbem esse tipo de prática. Como resultado final, ou se compra a reputação – por meio da aquisição de seguidores, curtidas e interações — ou, especialmente nos casos em que não se consegue comprar a reputação, parte-se para a construção fraudulenta da respeitabilidade dos agentes econômicos a partir da simulação e da mentira. 
Além dos efeitos nefastos sobre o fluxo informacional, o mercado de reputações com esse nível de impede as escolhas minimamente racionais e informadas por parte dos consumidores, fazendo com que a competição pelo mérito que deveria existir seja substituída pela competição em torno da construção artificial de reputações, ainda que ao preço de violações éticas e jurídicas. 
Vale ressaltar que a questão é também econômica. Mercados não podem funcionar adequadamente sem o mínimo de informação fidedigna e ainda mais quando esta é objeto de manipulação direta por parte dos agentes econômicos. Sob essa perspectiva, não estão presentes os pressupostos que mesmo libertários como Friedman consideram essenciais para o livre mercado: competição baseada no mérito, sem espaço para fraudes e manipulações.  
Essa é uma das razões que acentua a imensa vulnerabilidade dos consumidores no meio digital e a total falácia da soberania do consumidor no contexto do marketing 4.0. Daí por que não se trata de um problema apenas das plataformas, mas sim de todos nós. 
Por mais que sejam bem-vindas iniciativas como a da Meta, as instituições formais e a sociedade civil devem se engajar na luta por um ambiente informacional livre de mentiras, simulações e fraudes.  
Mesmo nas relações de mercado, precisamos resgatar a importância da reputação, como um valor que deve ser conquistado legitimamente, em decorrência do mérito do agente econômico. Consequentemente, reputações não deveriam nem estar à venda nem ser objeto de aquisição por meio de corrupção de critérios de avaliações e de mentiras e tentativas de manipulação da opinião pública.

mercados digitais

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JOTA

O marketing 4.0 e o 'vale-tudo' para construir artificialmente reputações

Mercados de reputação

Por mais que sejam bem-vindas iniciativas como a da Meta, a sociedade civil deve se engajar por um ambiente informacional livre de mentiras