Opinião e Análise

Ana Frazão

No <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/incertezas-radicais-impactos-analise-economica-10112021">artigo anterior</a>, procurei mostrar, a partir do exame da obra "Radical Uncertainty", de John Kay e Mervin King, as limitações das análises econômicas preditivas que contam com métodos quantitativos, como estatísticas e cálculos probabilísticos. Dando sequência ao exame da obra, me dedicarei a abordar, no presente artigo, a defesa que os autores fazem das narrativas para a compreensão dos problemas humanos e sociais.
Para Kay e King, a crença de que todas as decisões podem ser expressas como problemas matemáticos e resolvidas por computadores desconsidera a importância da criatividade e da imaginação<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Como nem todo conhecimento relevante é quantitativo, é comum que haja modelos e avaliações técnicas atuariais que consistem em verdadeiras “cornucópias” de números inventados para suprir as lacunas de conhecimento<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
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Daí porque o raciocínio matemático, mesmo aquele desenvolvido por computadores cada vez mais potentes, não dispensa a devida complementação com outros tipos de julgamentos:
<blockquote class="jota-article__citation">"But mathematical reasoning applies only to a small world and not to the large world in which we actually live, and it is not clear how the computer would learn what was 'rational' in that world. Computers can perform many tasks more quickly and reliably than humans, and we should use them for those tasks. But a computer would not have resolved the issues faced by Napoleon and Obama, and gave the wrong answer to the Viniar problem." <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"For too long, the type of intelligence that is necessary to cope with a world of radical uncertainty has been underestimated and undernourished."<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"Judgment cannot be avoided in a world of radical uncertainty.”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"We have no need to fear computers; we should use them. To do that requires judgment."<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"Human intelligence and artificial intelligence are different, and the latter enhances rather than replaces the former.”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a></blockquote>
Por todas essas razões, Kay e King resgatam a importância das narrativas – the narrative paradigm – para a compreensão do passado, do presente e do futuro, ressaltando dois pontos fundamentais: (i) os homens adquirem conhecimento por meio de comunicação e aprendizado<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> e (ii) valores, intenções e condutas consideradas violadoras de normas invocam conceitos que são mais difíceis de ser expressados em linguagem matemática<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
No caso de julgamentos jurídicos, a importância da narrativa é ainda mais relevante, pois a justiça é administrada com base em casos individuais, de modo que as evidências estatísticas, na ausência de uma narrativa, nunca serão suficientes<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Acresce que as narrativas são os meios pelos quais os seres humanos ordenam seus pensamentos, compreendem o sentido das evidências que lhe são dadas e buscam pelas melhores explicações<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Ao destacarem a importância das narrativas, os autores advertem que nem todas as narrativas podem ser aceitas e que nem todas têm a mesma hierarquia, já que narrativas são mais ou menos úteis a depender do atendimento de determinados fatores, como credibilidade, coerência e consistência, vista esta última como a congruência com as provas disponíveis.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
Sob essa perspectiva, desde que devidamente selecionadas e combinadas com outros métodos, inclusive os quantitativos, as narrativas podem e devem ser utilizadas como excelentes instrumentos para a compreensão do mundo social:
<blockquote class="jota-article__citation">"The public role of the social scientists is to provide the necessary information to enable politicians, public servants, business people and ordinary families, who are required to act under conditions of radical uncertainty, to make decisions. To fulfil that mission, the social scientist can help by explaining 'what is going on here' – providing a narrative which is coherent and credible and which establishes the context within which decisions are to be taken. These narratives include stories – literary fictions. Or numbers – constructs from big or small data sets, such a statistics on the economy or the results of social surveys. Or models – those small-world accounts which have the appearance of exact solutions. In economics, business and finance, all these types of reasoning will frequently be relevant."</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"The selection of relevant narratives is problem – and context – especific, so that the choice of fictions, numbers and models requires the exercise of judgment in relation to both problem and context. The narratives we seek to construct are neither true nor false, but helpful or unhelpful. This exercise of judgment in the selection of narratives is ecletic and pragmatic." <a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a></blockquote>
Diante da importância da multidisciplinaridade para as narrativas, Kay e King enfatizam a importância de se explorar os conhecimentos das distintas escolas da economia e advertem para o fato de que devem ficar sob suspeita aquelas escolas que se propõem a oferecer um amplo leque de respostas para problemas baseados em premissas apriorísticas e gerais sobre o mundo<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
Ainda segundo os autores, outra característica importante dos julgamentos humanos – que não pode ser reproduzida por análises quantitativas nem mesmo por algoritmos – é a capacidade de emoldurar (framing), o que pode dar ensejo a diferentes narrativas conforme a moldura de que se parte:
<blockquote class="jota-article__citation">“But even to frame a problem requires skill and judgment.” “Framing begins by identifying critical factors and assembling relevant data. It envolves applying experience of how these factors have interacted in the past, and making an assessment of how they might interact in the future.”</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">“The role of the economist, like that of other social scientists, is to frame the economic and social issues that political and business leaders face when confronted by radical uncertainty.”<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a></blockquote>
Kay e King ainda advertem que, além das vantagens e benefícios das narrativas, há outro ponto fundamental a ser considerado: simplesmente não conseguimos viver sem elas. Para os autores, a própria inferência <a name="_ftnref1"></a>estatística é – e precisa continuar sendo – uma opinião, até porque escolher as informações relevantes para uma decisão é uma importante forma de julgamento<a name="_ftnref2"></a><a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>.
O mesmo ocorreria, de certa forma, com as análises de <a name="_ftnref3"></a>custo-benefício ou as chamadas políticas baseadas em evidência, que, em muitos casos, apresentam uma aparência de objetividade tão somente para encobrir más decisões que foram tomadas com base em outros fundamentos<a name="_ftnref4"></a>:
<blockquote class="jota-article__citation">“We observe an obsession with cost-benefit analysis, or 'impact assessment' or even the 'business case' for major government decisions. Enthusiasm for 'evidence based policy' is seen as the hallmark of sophisticated decision-making. The problem is not so much that these models give rise to bad decisions but that they provide supposedly objective cover for bad decisions which have been made on quite different grounds."<a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a></blockquote>
Em razão de todas essas premissas, Kay e King concluem que as narrativas são o mais importante mecanismo de que dispomos para organizar nosso conhecimento imperfeito, o que já afastaria a possibilidade de delegarmos todas as decisões importantes para computadores, pelo simples fato de que eles não sabem elaborar narrativas:
<blockquote class="jota-article__citation">"Narratives reasoning is the most powerful mechanism available for organizing our imperfect knowledge. Understanding the complex world is a matter of constructing the best explanation – a narrative account – from a myriad of little details and the knowledge of context derived from personal experience and the experience of others."<a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"Computers don't do narratives. Computers don’t do empathy."<a href="#_ftn19" name="_ftnref19">[19]</a></blockquote>
Outra importante conclusão de Kay e King é a da importância do caráter colaborativo do processo decisório e do pluralismo metodológico para as decisões complexas em um cenário de incertezas radicais:
<blockquote class="jota-article__citation">"Decision-making under radical uncertainty requires a multiplicity of skills, and rarely will all these skills be found in a single individual. Successful leaders have benefited from advisers who could assist in problem framing."</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"Successful decision-making under uncertainty is a collaborative process."</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"(...) where we are constantly confronted with unique situations, we need a pluralism of approaches and models."</blockquote>
Como se pode observar, a ideia central do livro não é defender a inutilidade da matemática ou dos métodos quantitativos, mas sim reconhecer suas limitações e o fato de que não são suficientes para explicar o que se passa no mundo sem as devidas complementações:
<blockquote class="jota-article__citation">"We should not give up modelling or the use of mathematics in making decisions; rather we should recognize what models can and cannot do to illuminate a problem, and accept that there is no standardized spreadsheet framework which can answer the question 'What is going on here?' Evidence-based policy has become policy-based evidence, eroding the confidence of the public in 'evidence'. Political debates increasingly reflect an unseemly media battle between unsubstantiated assertions rather than a dispassionate argument of pros and cons, or a genuine attempt to find out 'what is going on here '.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"We have described value at risk modelling undertaken in banks, and the actuarial appraisal of pension schemes, both encouraged by regulatory agencies. These exercises were at best useless an in some cases considerably worse than useless. But the use of irrelevant and incomprehensible black-box models continues. And these exercises are not confined to government; many large firms use similar procedures internally for planning or investment appraisal."<a href="#_ftn20" name="_ftnref20">[20]</a></blockquote>
Outra importante lição de Kay e King é ressaltar o perigo da falsa segurança que decorre dos métodos preditivos quantitativos, o que nos impossibilita de adotar posturas mais cautelosas quando se está diante de incertezas radicais:
<blockquote class="jota-article__citation">"Good strategies for a radical uncertainty world acknowledge that we do not know what the future will hold. Such strategies identify reference narratives, visualise alternative future scenarios, and ensure that plans are robust and resilient to a range of plausible alternatives."<a href="#_ftn21" name="_ftnref21">[21]</a></blockquote>
Como ficou claro tanto na crise financeira de 2008 como agora na crise das cadeias globais em virtude da pandemia da Covid-19, é mais do que urgente que modelos e decisões adotados tanto na esfera privada como na pública possam ser mais robustos e resilientes, o que apenas ocorrerá se houver maior humildade quanto à nossa capacidade de prever o futuro e maior preocupação não somente em relação ao que sabemos – os riscos – como também em relação àquilo que não sabemos – as incertezas.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a>KAY, John; KING, Mervin. Radical Uncertainty. Decision-making beyond the numbers. New York: W.W.Norton &amp; Company, 2020, p. 47.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Op.cit, p. 404.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Op.cit., pp. 175-176.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Op.cit., p. 176.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Op.cit., p. 176.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Op.cit., p. 176.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Op.cit., p. 176.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Op.cit., p. 178.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Op.cit., p. 188.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Op.cit., pp. 210-211.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Op.cit., p. 211.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Op.cit., p. 212.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Op.cit., p. 397.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Op.cit., p. 397.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Op.cit., p. 398.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> Op.cit., p. 100.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> Op.cit., p. 404.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> Op.cit., p. 410.
<a href="#_ftnref19" name="_ftn19">[19]</a> Op.cit., p. 411.
<a href="#_ftnref20" name="_ftn20">[20]</a> Op.cit.,p. 405.
<a href="#_ftnref21" name="_ftn21">[21]</a> Op.cit., p. 424

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