Opinião e Análise

Ana Frazão

Na série sobre discriminação algorítmica<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, eu já havia mencionado várias vezes a excelente obra de John Kay e Mervin King cujo título é "Radical Uncertainty: Decision-making beyond the numbers"<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Entretanto, a reflexão proposta pelos autores é tão rica e provocativa que merece uma abordagem individualizada. Afinal, ela é um importante contraponto à pretensão atual de controle do fenômeno econômico, o que se reflete na premissa de que é possível se utilizar de análises probabilísticas, estatísticas e econômicas para se chegar a predições com alto grau de acurácia.
Para Kay e King, a maior prova do desacerto de tal premissa é a crise econômica de 2007/2008, gerada a partir de modelos de risco utilizados pelo Goldman Sachs e outras empresas financeiras que não só se mostraram equivocados, como deram causa à crise e ainda tiveram a consequência nefasta de transferir o risco das mãos dos que poderiam lidar com ele para aqueles que nem mesmo podiam minimamente compreendê-lo<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias"><img class="aligncenter cta-tributos size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/cta-jota-pro-tributos.png" width="688" height="688" /></a>Entretanto, embora a crise de 2007/2008 tenha escancarado as falhas das análises preditivas, Kay e King denunciam que pouco foi feito a partir daí, uma vez que os economistas continuam relutantes para aceitar que seu arcabouço intelectual precisa de revisão<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Segundo os autores, parte do problema decorre da confusão entre riscos e incertezas, cujas distinções há muito já haviam sido esclarecidas por importantes economistas como Knight e Keynes: enquanto os primeiros são previsíveis, mensuráveis e controláveis, as segundas não são previsíveis, fazendo parte do mundo do inimaginável: we simply don’t know. Logo, as incertezas não podem ser resolvidas pelo aprendizado ou por uma distribuição probabilística de resultados:
<blockquote class="jota-article__citation">"Radical uncertainty cannot be described in the probabilistic terms applicable to a game of chance. It is not that we do not know what will happen. We often do not even know the kinds of things that might happen". <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a></blockquote>
Ocorre que tal distinção acabou sendo ignorada ou negligenciada por economistas, agentes econômicos e formuladores de políticas públicas. Ao invés de reconhecerem as incertezas radicais, para o fim de adotarem estratégias robustas para muitos futuros alternativos, parte significativa da atividade econômica continua se regendo por modelos que pressupõem um conhecimento do futuro que não existe e jamais existirá.
Com efeito, negócios e finanças são "não estacionários": longe de serem governados por leis cientificas imutáveis, caracterizam-se por intensa dinamicidade e variabilidade<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Parte dessas características decorre da reflexividade do conhecimento econômico, ou seja, do fato de que as relações econômicas são também fruto das crenças dos agentes econômicos a respeito delas, o que tem um papel central nos seus comportamentos.
É precisamente a reflexividade do fenômeno econômico que impede a segurança das análises econômicas:
<blockquote class="jota-article__citation">"The sociologist Robert K. Merton identified reflexivity as a distinctive property of social systems - the system itself is influenced by our beliefs about it."<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"Reflexivity undermines security. This was the essence of 'Goodhart's Law' - any business or government policy which assumed stationary of social and economic relationships was likely to fail because its implementation would alter the behavior of those affected and therefore destroy that stationarity.""<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"And because beliefs influence behavior the economic system is forever changing."<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"Meteorologists and their prognostications, however, have no influence over whether or not it will rain tomorrow. Probabilities become less useful when human behavior is relevant to outcomes."<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a></blockquote>
Em decorrência, inferências estatísticas convencionais ou quantificações de probabilidades apresentam muitas limitações quando são utilizadas para fenômenos humanos altamente dinâmicos, mutáveis e ainda sujeitos às incertezas radicais:
<blockquote class="jota-article__citation">"And because what we observe is not the outcome of a stationary process, conventional statistical inference rarely applies and forecasts are often based on shifting sands." <a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"While there are some problems for which the quantification  of probabilities is an indispensable guide to solutions, most decisions in business, finance, politics and personal development, and their outcomes, are too complex and imprecisely defined to be approached in this way. They are subject to radical uncertainty." <a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a></blockquote>
Esse é o argumento principal do livro de Kay e King, ao mostrarem que tais metodologias quantitativas, ao pretenderem predizer o futuro com acurácia, são incompatíveis com as incertezas que caracterizam o mundo real:
<blockquote class="jota-article__citation">"The appeal of probability theory is understandable. But we suspect the reason that such mathematics was, as we shall see, not developed until the seventeenth century is that few real-world problems can properly be represented in this way. The most compelling extension of probabilistic reasoning is to situations where the possible outcomes are well defined, the underlying processes which give rise to them change little over time, and there is a wealth history of information.”<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">“Probabilistic reasoning may appear beautiful and appealing, but sadly its applicability to real-world problems is limited.”<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a></blockquote>
Já no que diz respeito ao raciocínio estatístico em sentido amplo, Kay e King igualmente destacam as suas limitações em relação aos assuntos humanos, a começar pelo fato de que a injustiça contra indivíduos é inerente à chamada “discriminação estatística”, que consiste no julgamento das pessoas com base nas características gerais dos grupos a que pertencem<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>. Acresce que, mesmo com o big data, as estatísticas nos levam a aprender mais sobre correlações do que sobre causalidades, o que acaba criando novas oportunidades para discriminações estatísticas e novos perigos para a sua utilização.<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>
Não obstante, a advertência central apontada por Kay e King é que as incertezas radicais e o caráter mutável dos comportamentos humanos têm sido ignorados sistematicamente por modelos que partem da premissa de que todos os acontecimentos humanos podem ser descritos a partir de estatísticas ou distribuições probabilísticas<a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>.
Em casos assim, a sedução pela beleza e pela simplicidade da matemática acaba fazendo com que os economistas esqueçam que a aplicabilidade do raciocínio probabilístico ao mundo real é limitada<a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a>. Por essa razão, a moderna macroeconomia, ao desconsiderar as incertezas radicais, está condenada a uma posição próxima da irrelevância para se entender a crise financeira global<a href="#_ftn19" name="_ftnref19">[19]</a>.
Além das limitações naturais dos modelos econômicos, muitas vezes eles são usados abusivamente, o que potencializa ainda mais as suas fragilidades. Dentre os exemplos citados pelos autores, estão o (i) o preenchimento de lacunas de conhecimento por meio da invenção de números, muitos deles deixados para a discricionariedade dos programadores, (ii) a presunção, quase sempre sem qualquer justificação, da estacionariedade dos processos econômicos e (iii) ausência de multidisciplinaridade.
Aliás, sobre a multidisciplinaridade, apontam Kay e King que modelos econômicos são incapazes de lidar com eventos únicos, como guerras ou crises<a href="#_ftn20" name="_ftnref20">[20]</a>, destacando que as mais úteis contribuições para a compreensão das crises, incluindo as financeiras, não decorreram de modelos econômicos formais mas sim de estudos históricos<a href="#_ftn21" name="_ftnref21">[21]</a>.
Daí o grande equívoco de se achar que os modelos econômicos podem descrever o mundo como ele realmente é:
<blockquote class="jota-article__citation">"The useful purpose of modelling is to find 'small world' problems  which iluminate part of the large world of radical uncertainty."<a href="#_ftn22" name="_ftnref22">[22]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"In the end, a model is useful only if the person using it understands that it does not represent 'the world as it really is', but is a tool for exploring ways in which a decision might or might not go wrong."<a href="#_ftn23" name="_ftnref23">[23]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"The map is not the territory" <a href="#_ftn24" name="_ftnref24">[24]</a>(390)</blockquote>
E, mais uma vez se referindo ao big data, os autores advertem para a circunstância de que as dificuldades e perigos para se estabelecer inferências causais podem até aumentar:
<blockquote class="jota-article__citation">"Decisions about politics, finance and business should be made in the light of the best and most extensive data. But while data are essential, it is necessary to be careful in making inferences, and especially causal inferences, about the world based on data alone. The availability of what are now called 'big data' - the very large databases permitted by the power of modern computers - increases these dangers. The existence of a historic data set does not yield a basis for calculating a future probability distribution".<a href="#_ftn25" name="_ftnref25">[25]</a></blockquote>
Obviamente que Kay e King não são contrários à utilização de análises probabilísticas e estatísticas nem muito menos de modelos econômicos que incorporem essas metodologias. A preocupação dos autores é com a pretensão de matematização absoluta do mundo – o que é impossível, especialmente quando se está diante de assuntos humanos complexos, dinâmicos e sujeitos a diversas variáveis e igualmente à reflexividade - e com a fetichização dessas metodologias quantitativas.
Com efeito, o problema maior do nosso tempo decorre da crença de que tais metodologias ou modelos são capazes de levar a resultados fidedignos, tanto em termos de representação de mundo, como em termos de prognoses ou predições que possam orientar com segurança a ação de agentes econômicos e também de legisladores e formuladores de políticas públicas.
É essa crença exagerada na capacidade preditiva das análises quantitativas que acaba levando à postura arrogante de não considerar outros cenários que não aqueles descritos pela metodologia, o que produz decisões – tanto por parte do mercado, como por parte de legisladores e reguladores - extremamente frágeis, pouco ou nada resilientes a riscos não previstos e muito menos às incertezas radicais. Daí resultados como a crise de 2007/2008.
Esse tipo de postura, na verdade, não somente ignora os reducionismos e as limitações das referidas análises quantitativas, como inclusive impede que outras áreas do saber e outras formas de raciocínio sejam utilizadas na difícil tarefa de ter que lidar com as incertezas radicais, aspecto que será mais bem explorado no próximo artigo.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> FRAZÃO, Ana. Discriminação algorítmica. Jota. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/discriminacao-algoritmica-16062021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/discriminacao-algoritmica-16062021</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> KAY, John; KING, Mervin. Radical Uncertainty. Decision-making beyond the numbers. New York: W.W.Norton &amp; Company, 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Op.cit., p. 6.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Op.cit., p. 12.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Op.cit., p. 14.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Op.cit., pp. 15-16.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Op.cit., pp. 35-36.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Op.cit., p. 36.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Op.cit., p. 36.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Op.cit., p. 43.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Op.cit., p. 16.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Op.cit., p. 22.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Op.cit., p. 42.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Op.cit., p. 44.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Op.cit., pp. 207-208.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> Op.cit., p. 208.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> Op.cit., p. 42.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> Op.cit., pp. 42-44.
<a href="#_ftnref19" name="_ftn19">[19]</a> Op.cit., p. 356.
<a href="#_ftnref20" name="_ftn20">[20]</a> Op.cit., p. 339.
<a href="#_ftnref21" name="_ftn21">[21]</a> Op.cit., p. 356.
<a href="#_ftnref22" name="_ftn22">[22]</a> Opp.cit., p. 376.
<a href="#_ftnref23" name="_ftn23">[23]</a> Op.cit., p. 377
<a href="#_ftnref24" name="_ftn24">[24]</a> Op.cit., p. 390.
<a href="#_ftnref25" name="_ftn25">[25]</a> Op.cit., pp. 389-390.

economia

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JOTA

Refletindo sobre o papel dos cálculos probabilísticos a partir da obra 'Radical Uncertainty'

As incertezas radicais e seus impactos sobre a análise econômica

Refletindo sobre o papel dos cálculos probabilísticos a partir da obra 'Radical Uncertainty'