Pandemia

Impactos da Covid-19 sobre os contratos

Breves reflexões sobre soluções já existentes no direito brasileiro e as propostas pelo PL 1.179/2020

Foto: Itamar Aguiar/Palácio Piratini/Fotos Públicas

Parece haver poucas dúvidas de que a pandemia da Covid-19 é um fato imprevisível, seja em relação à sua existência, seja em relação às suas consequências. Por mais que já se cogitasse da possibilidade de alguma pandemia nos próximos tempos, nos termos de previsões ou especulações de cientistas e mesmo de políticos, é fato que, do ponto de vista das expectativas socialmente compartilhadas, não se imaginava uma pandemia com as atuais proporções e que pudesse trazer impactos tão relevantes nas dimensões pessoais, sociais, econômicas e políticas.

É no contexto dessas preocupações que o presente artigo buscará mapear os reais impactos da pandemia sobre os contratos, mostrando as alternativas que o sistema jurídico brasileiro detém para lidar com o problema, assim como as modificações pontuais que pretendem ser implementadas pelo Projeto de Lei n 1.179/20201.

Inicia-se o exame do tema com a lembrança de que a principal função econômica do contrato, especialmente dos contratos de troca ou intercâmbio – aqueles em que os interesses das partes são contrapostos e, exatamente por isso, são harmonizados por meio do contrato – é garantir segurança e previsibilidade às partes. É por essa razão que o pacta sunt servanda é tão importante nos contratos paritários, o que faz com que as possibilidades de revisão e resolução sejam vistas como excepcionais.

Mesmo nos contratos híbridos ou relacionais, categoria na qual se encontra a maior parte dos contratos empresariais de longa duração, embora a lógica de segurança e previsibilidade seja substituída pela lógica da flexibilidade e da adaptabilidade, normalmente implementada por meio de contratos intencionalmente incompletos, espera-se que os mecanismos de governança previstos pelas partes possam assegurar a adaptação do contrato a novos fatos que comprometam a alocação de riscos inicialmente definida pelas partes. Essa adaptação contratual pode ocorrer por meio de diversas alternativas, que vão desde o dever de renegociar até mesmo a participação de um terceiro, como um expert, um mediador ou um árbitro, a quem caberá readequar o vínculo contratual.

O que precisa ser ressaltado é que, como o dever de cooperação nos contratos híbridos ou relacionais faz parte do próprio objeto contratual, todos os esforços devem ser feitos para a manutenção do vínculo, ainda que com as devidas modificações. Consequentemente, embora não se observe incondicionalmente o princípio do pacta sunt servanda, há que se conter o oportunismo excessivo e se assegurar, dentro do possível, a continuidade do pacto, ainda que por meio da sua revisão ou adaptação.

Dessa maneira, a resolução ou o descumprimento também devem ser vistos como soluções excepcionais em relação aos contratos relacionais ou híbridos, motivo pelo qual, diante de uma pandemia que possa alterar substancialmente as expectativas das partes em relação ao contrato, não há dúvidas de que a melhor alternativa seria a revisão consensual do contrato, seja pela atuação direta das partes, seja pela atuação de um terceiro ou de mecanismo de governança externo.

Mesmo nos contratos paritários de troca ou intercâmbio, a solução consensual também seria a melhor opção. Afinal, ainda que não apresentem o mesmo grau de cooperação dos contratos híbridos – já que, em relação aos contratos de troca ou intercâmbio, a cooperação não é objeto do contrato, mas sim dever lateral que decorre da boa-fé objetiva -, a busca da renegociação voluntária pode se mostrar solução mais adequada do que a sujeição aos riscos de uma ação de revisão judicial provocada por uma das partes.

Entretanto, não sendo possível o consenso, o ordenamento jurídico disponibiliza vários mecanismos diretos e indiretos para enfrentar os impactos da pandemia sobre os contratos. Comecemos a mencionar os mecanismos diretos, tais como os previstos nos arts. 317, 393 e 478, do Código Civil e, após a Lei de Liberdade Econômica, também os arts. 113, § 1º, V, e 421-A, II.

Os arts. 317 e 478 tratam de eventos imprevisíveis que ocasionam o desbalanceamento dos contratos.

Tal ponto é importante, por enfatizar que a imprevisibilidade, sozinha, não é, como regra, causa de revisão ou resolução de contratos, mas precisa ser acompanhada de circunstâncias que apontem para o desequilíbrio contratual.

A diferença é que a desproporção, no caso do art. 317, é vista sob a ótica do devedor, enquanto que, sob a ótica do art. 478, envolve um juízo relacional entre credor e devedor, na medida em que o evento deve trazer onerosidade excessiva para uma das partes em detrimento da extrema vantagem da outra. É por essa razão, inclusive, que se entende que o art. 478 não acolheu propriamente a teoria da imprevisão, já que é necessário que do fato imprevisível decorra igualmente o evidente desbalanceamento do contrato.

Já o art. 393, do Código Civil, muito “em moda” recentemente, na medida em que vem sendo apontado como solução para vários contratos que vêm sendo afetados pela pandemia, trata do caso fortuito ou da força maior como excludentes de responsabilidade do devedor. Embora não haja diferenciação prática entre as duas hipóteses – na verdade, a maior parte da doutrina considera caso fortuito e força maior como sinônimos -, tem-se aí situação que justifica o não cumprimento do contrato em razão mais da irresistibilidade do que propriamente da imprevisibilidade dos fatos.

Ainda merecem ser citados o art. 113, § 1º, V, segundo o qual “A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração” e o art. 421-A, II, ao assegurar que “a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada”.

Por mais que o subsequente inciso III determine que “a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”, tem-se que a interpretação sistemática entre os dois incisos pode levar à conclusão de que um abalo evidente à alocação de riscos definida pelas partes corresponde a uma das hipóteses excepcionais a justificar a revisão contratual, ainda que para o escopo limitado de recompor o equilíbrio inicialmente definido pelas partes. Consequentemente, abre-se a possibilidade para discussões relacionadas ao restabelecimento da alocação originária de riscos ou mesmo da base do negócio jurídico.

Além das soluções diretas, o ordenamento jurídico brasileiro ainda conta com inúmeras soluções que decorrem das cláusulas gerais da função social do contrato, da boa-fé objetiva e da vedação ao abuso de direito, as quais, isolada ou conjuntamente, podem ser utilizadas para conter comportamentos excessivamente oportunistas, bem como dão margem à incorporação de diversas discussões relevantes, tais como a exceção da ruína, a frustração do fim do contrato, dentre outras.

Logo, é fato que o ordenamento jurídico brasileiro conta com uma gama de soluções para resolver as distintas consequências da pandemia sobre os contratos, ainda que possa haver dúvidas e mesmo divergências em relação a várias das alternativas mencionadas, até porque estas nem sempre estão unidas por um fio condutor comum.

Entretanto, se há um ponto sobre o qual existe considerável convergência é o fato de que todas essas soluções precisam considerar as peculiaridades do caso concreto. Isso afasta preliminarmente a ideia de que a pandemia possa ser um fato que impacta ou desequilibra todos os contratos na mesma extensão e, exatamente por isso, justificaria de forma apriorística o descumprimento das obrigações ou a resolução ou a revisão do contrato.

Daí os cuidados que se deve ter com soluções amplas e generalizantes. Mesmo a breve experiência que já estamos tendo com a pandemia mostra que os seus impactos realmente divergem conforme o tipo e as circunstâncias dos contratos, assim como em razão das variáveis externas – como os casos em relação aos quais se cogita da aplicação da teoria do fato do príncipe. Em vários casos, a impossibilidade de cumprimento da prestação é apenas momentânea, o que igualmente não justificaria soluções extremas, como a resolução.

Todas essas questões mostram a cautela que deve orientar o tratamento do tema, até porque o pior cenário seria aquele em que a pandemia levasse a descumprimento maciço e indiscriminado de contratos, o que contribuiria para o próprio colapso da economia.

É no cenário acima descrito que se deve analisar a necessidade, a oportunidade e o acerto do Projeto de Lei nº 1.179/2020, ao tentar disciplinar os efeitos da pandemia sobre os contratos, buscando evitar a judicialização excessiva.

Inicialmente, é importante advertir que a intervenção do legislador, em situações de crise, deve ser pontual, provisória e ocorrer apenas quando o sistema jurídico efetivamente não dispõe das devidas soluções para o problema. Os riscos de legislações aprovadas em regime de urgência ou no afogadilho, sem as devidas reflexões ou mesmo as necessárias análises de impacto, não são desprezíveis. Sob essa perspectiva, pelo menos o projeto teve a cautela de se restringir a apresentar soluções pontuais e temporárias.

Resta saber, então, se tais soluções são realmente adequadas e podem contribuir para oferecer segurança jurídica, reduzir o oportunismo e evitar a judicialização excessiva.

Nesse sentido, prevê o art. 6º que “As consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.”

Ora, ao mencionar a inexistência de efeitos jurídicos retroativos, o artigo já traz dificuldade interpretativa inicial, que é a de saber de que retroatividade se trata, matéria que é extremamente controversa, não só diante dos inúmeros tipos de retroatividade – máxima, média ou mínima -, bem como de quais seriam os efeitos práticos de cada uma delas.

A interpretação que poderia parecer mais coerente – a de que, em contratos de execução sucessiva ou continuada, as prestações vencidas antes da pandemia estariam obviamente resguardadas contra todos os efeitos da crise – é, todavia, contrariada pela justificativa que consta do relatório votado pelo Senado. Segundo o relatório, a finalidade do art. 6º foi criar marco temporal – o dia 20 de março de 2020, estabelecido, no art. 1º, parágrafo único, como o “termo inicial dos eventos derivados da pandemia do coronavírus (Covid-19)” – a fim de determinar que os contratos celebrados antes dele não estariam sujeitos aos efeitos da pandemia e deveriam ser cumpridos tal como foram acordados.

Para que não haja dúvidas sobre a intenção do legislador, destaca-se o seguinte trecho do relatório do Parecer nº 18, de 2020, que apresenta o texto que foi votado pelo Senado:

A pandemia é o clássico exemplo do que dispõe o art.393 do Código Civil. Ocorre, porém, que ela não pode ser utilizada para obstar o cumprimento de obrigações firmadas em contratos anteriores a 20 de março de 2020, marco escolhido neste projeto para delimitar objetivamente o início dos efeitos jurídicos da pandemia. Esse é o objetivo explícito do art.6º do projeto, quando nega qualquer eficácia retroativa à pandemia. Busca-se evitar, assim, uma explosão de demandas atuais por dívidas pretéritas, favorecendo-se comportamentos oportunistas em tempos de crise. Além disso, a ocorrência da pandemia não pode ser usada, de modo generalizado, para desonerar as partes de suas obrigações. Há diferentes efeitos da pandemia em cada relação contratual, o que pode inclusive não se enquadrar totalmente no conceito de caso fortuito. Caberá à Justiça avaliar se houve ou não essa incidência direta nas relações jurídico-negociais impugnadas.” (grifos nossos)

Tal solução, além de não poder ser extraída claramente do texto da norma, leva a complicações adicionais, seja em razão do caráter relativamente arbitrário do marco temporal do dia 20 de março, seja em razão de que, a prevalecer a mens legislatoris, se estará diante de solução injustificável e injusta. Afinal, é imperioso que os contratos anteriores à pandemia possam utilizar-se das soluções usuais do sistema – tais como os arts. 317, 393, 421-A, II, e 478, do Código Civil – sempre que presentes os seus pressupostos.

Com efeito, é precisamente em relação aos contratos anteriores à pandemia que esta pode ser vista como um fato imprevisível ou de força maior. Já no tocante aos contratos posteriores à pandemia, pelo menos o evento é certo, ainda que as consequências sejam imprevisíveis.

Por outro lado, ainda que se despreze a mens legislatoris, continuarão as divergências a respeito do que pode ou não ser considerado retroatividade, quais os efeitos práticos disso, ainda mais diante da multiplicidade de relações contratuais que estarão sob esse critério. Cita-se, como exemplo, os contratos de longa duração cujas etapas estão intrinsecamente conectadas umas às outras, de forma que o desbalanceamento em uma delas pode implicar o desbalanceamento de todo o programa contratual, motivo pelo qual não se teria como segmentar o passado e o futuro de forma simples.

Se o art. 6º apresenta dificuldades, isso também ocorre com o art. 7º, segundo o qual “Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário.”

Embora a intenção do projeto tenha sido trazer para a lei entendimento jurisprudencial já consolidado em outras crises que já vivemos, considerando os impactos da atual pandemia, os quais, até o momento, não podem ser nem mesmo vislumbrados, indaga-se em que medida é legítimo equipará-la antecipadamente a eventos anteriores.

Para muitos, dentre os quais o próprio FMI2, a atual pandemia é a crise econômica mais grave desde a Grande Depressão dos anos 30, cujos efeitos ainda são impossíveis de serem vislumbrados. Logo, não parece prudente querer antecipar um futuro que continua a ser absolutamente incerto e em relação ao qual a experiência do passado pode se mostrar absolutamente impertinente.

Assim, conclui-se que os arts. 6º e 7º, apesar da legítima intenção de buscarem segurança jurídica e evitarem o oportunismo excessivo, acabam propondo critérios e diferenciações que não se mostram os mais adequados, engessam o tratamento do tema e ainda poderão suscitar grandes controvérsias e a judicialização daí decorrente. Nesse cenário, melhor seria deixar que os problemas fossem resolvidos pelas já existentes soluções previstas pelo ordenamento jurídico, diante das especificidades de cada caso concreto.

Ao se arvorar a resolver antecipadamente os problemas contratuais da Covid-19, o projeto ainda estimula a cultura de soluções centralizadas pelo Estado, perdendo a oportunidade de criar incentivos ou sinalizações em favor das soluções consensuais, em relação às quais vários consectários de importantes cláusulas gerais, como o dever de renegociar, já oferecem importante suporte.

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1 Vale ressaltar que o artigo foi finalizado no dia 15.04.2020, quando o projeto de lei, já tendo sido aprovado pelo Senado, aguardava a aprovação pela Câmara dos Deputados. Dessa maneira, o artigo baseou-se na redação aprovada pelo Senado, com base no parecer da Senadora Simone Tebet.