Opinião e Análise

Ana Frazão

<p align="justify">A finalidade do presente artigo é demonstrar que o ilícito antitruste decorrente do abuso de propriedade intelectual pode ter origem em disputas privadas entre agentes econômicos específicos, sendo exemplos as situações de agentes que tentam exercer direito de exclusividade decorrente de propriedade intelectual ilegítima contra determinado concorrente ou de agentes que instauram procedimentos administrativos ou judiciais contra um de seus rivais para a obtenção de benefícios indevidos.</p>
<p align="justify">Apesar de a gênese do problema poder ser privada, é importante se atentar para o fato de que tais questões normalmente transcendem aos interesses particulares das partes e ocasionam efeitos para o mercado como um todo, especialmente quando praticadas por agente detentor de posição dominante.</p>
<ul class="jota-article__internal-links">
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</span></a></li>
</ul>
<p align="justify">Diante do caráter erga omnes da propriedade intelectual, esta já tem vocação natural para afetar o mercado. Quando o seu titular goza de posição dominante e ainda se utiliza ou de direitos indevidamente obtidos ou de meios ou estratégias abusivas, a fim de intimidar e coagir determinados concorrentes, é a própria concorrência que acaba sendo afetada.</p>
<p align="justify">Com efeito, em casos assim, é muito comum que a distorção das condições competitivas não se restrinja somente aos rivais diretamente afetados, mas se estenda a todo o mercado, já que tais condutas geram importantes sinalizações e receios para todos os demais concorrentes e também para os entrantes.</p>
<p align="justify">Assim, há de se ter especial cautela com o argumento, muitas vezes utilizado pelos titulares da propriedade intelectual, de que os abusos de propriedade intelectual não constituiriam, como regra, infração à livre concorrência, mas sim questões eminentemente privadas, normalmente restritas apenas aos domínios da concorrência desleal.</p>
<p align="justify">Tal posição ignora igualmente que a própria relação entre a concorrência desleal e o Direito da Concorrência não é estanque. Afinal, a depender da estrutura de mercado e da posição que determinado agente ocupa, condutas vistas tipicamente como atos de concorrência desleal podem configurar igualmente infração à ordem econômica, diante dos danos reais ou potenciais à concorrência.<a href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a> Não é por outra razão que, conforme indica a OCDE, países como o Chile consideram que a concorrência desleal será considerada lesiva à concorrência quando buscar obter, reforçar ou manter posição dominante.<a href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a></p>
<p align="justify">Não é outro o posicionamento do CADE. No âmbito da Averiguação Preliminar nº. 08000.026056/1996-30,<a href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a> ao examinar a prática de preços predatórios pela White Martins Gases Industriais S/A, a autoridade da concorrência verificou a existência de indícios de criação de dificuldades à constituição e ao funcionamento da Oxigases Ltda., exigindo informações mercadológicas da empresa para, posteriormente, oferecer os mesmos produtos a seus clientes por preços mais baixos.</p>
<p align="justify">No caso em questão, a SG, a ProCADE e o MPF posicionaram-se pelo arquivamento, mas o Conselheiro-Relator divergiu dos aludidos pareceres, observando que o fato de determinada conduta caracterizar concorrência desleal não afasta a competência do CADE para julgar a matéria. Além disso, tendo em vista o incontestável poder de mercado da Representada (que à época alcançava market share de 73%), a conduta investigada teria, sem dúvidas, potencial de eliminar a concorrência e colocar em risco a ordem econômica.<a href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a></p>
<p align="justify">Situação semelhante ocorreu no conhecido caso envolvendo as marcas de cerveja Puerto del Sol e Puerto del Mar,<a href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a> quando se alegava que determinada fabricante de cervejas estaria indevidamente reproduzindo marca e anúncios de concorrente. De acordo com o Conselheiro-Relator, não havia comprovação direta do dolo de confusão das aludidas marcas e tampouco a demonstração de efeitos anticoncorrenciais.</p>
<p align="justify">Todavia, voto-vista desta articulista ressaltou que não se pode descartar a potencialidade de efeitos anticompetitivos de prática de concorrência desleal perpetrada por empresa com clara posição dominante, ainda que tenha sido afastada, no mérito, a existência do ilícito concorrencial.</p>
<p align="justify"><a name="_GoBack"></a> Além disso, precedentes como o Processo Administrativo nº. 08012.003918/2055-15<a href="#sdfootnote6sym" name="sdfootnote6anc">6</a> demonstram que determinados players, muitas vezes abrigados no argumento de que sua conduta estaria restrita ao âmbito privado, procuram lograr êxito em suas estratégias contra concorrentes em virtude de suas vantagens como incumbentes do mercado, tendo acesso privilegiado a informações e recursos que agentes com menor participação.</p>
<p align="justify">É inafastável, assim, a conclusão de que a propriedade intelectual de quem é titular de posição dominante tem o condão de levantar fundadas preocupações concorrenciais sobre questões que, somente em análise superficial, podem parecer meramente privadas.</p>
<p align="justify">Na verdade, diversos autores pontuam, que, havendo posição dominante, o recurso à propriedade intelectual serve de poderoso instrumento para a perpetuação de monopólios, situação que agrava ainda mais casos envolvendo direitos de exclusividade ilegítimos.<a href="#sdfootnote7sym" name="sdfootnote7anc">7</a></p>
<p align="justify">Por óbvio, conforme apontam Ghidini e outros, não se está aqui pretendendo afastar a competência do INPI ou mesmo do Poder Judiciário para sanar determinadas ilicitudes relativas à concessão indevida da propriedade intelectual ou de abusos decorrentes da propriedade intelectualmente legitimamente obtida. Simplesmente se quer demonstrar que tais situações podem também dar margem a ilícitos antitruste, marcados pelo abuso de posição dominante<a href="#sdfootnote8sym" name="sdfootnote8anc">8</a> ou pela sham litigation.<a href="#sdfootnote9sym" name="sdfootnote9anc">9</a></p>
<p align="justify">Logo, sem prejuízo dos desdobramentos privados entre os agentes afetados, é inegável que o abuso de propriedade intelectual, especialmente quando praticado por titular de posição dominante, costuma ter significativa dimensão concorrencial, a exigir especial atenção e cautela por parte das autoridades antitruste.</p>
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<div id="sdfootnote1">
<p lang="x-none" align="justify"><a href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> FRAZÃO, Op. cit., p. 429.</p>
</div>
<div id="sdfootnote2">
<p lang="x-none" align="justify"><a href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> OCDE. <span lang="en-US">Competition Law and Policy in Chile 2011. </span>Disponível em: &lt;http://www.oecd.org/daf/competition/47950954.pdf&gt;. Acesso em: 2 maio 2018.</p>
</div>
<div id="sdfootnote3">
<p lang="x-none" align="justify"><a href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> CADE, AP 08000.026056/1996-30, Rel. Cons. Luiz Carlos Delorme Prado, julg. 31.1.2007.</p>
</div>
<div id="sdfootnote4">
<p lang="x-none" align="justify"><a href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> Ao final, o procedimento foi arquivado em virtude da ausência de evidências de que a Representada houvesse utilizado informações mercadológicas contra a concorrente.</p>
</div>
<div id="sdfootnote5">
<p lang="x-none" align="justify"><a href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a> CADE, PA 08012.008554/2008-93, Rel. Cons. Ricardo Machado Ruiz, julg. 6.8.2014.</p>
</div>
<div id="sdfootnote6">
<p align="justify"><a href="#sdfootnote6anc" name="sdfootnote6sym">6</a> CADE, PA 08012.003918/2005-14, Rel. Cons. Conselheiro Márcio de Oliveira Jr., julg. 11.5.2015.</p>
</div>
<div id="sdfootnote7">
<p lang="x-none" align="justify"><a href="#sdfootnote7anc" name="sdfootnote7sym">7</a><span lang="en-US"> Ver GILBERT, Richard J.; NEWBERY, David M. G. Preemptive patenting and the persistence of monopoly. </span><span lang="en-US">The American economy review. </span><span lang="en-US">v. 72, n. 3, pp. 514-526, jun. 1982.</span></p>
</div>
<div id="sdfootnote8">
<p lang="x-none" align="justify"><a href="#sdfootnote8anc" name="sdfootnote8sym">8</a><span lang="en-US"> GHIDINI; CAVANI; PISERÀ, Op. cit., p. 150. Ver também: HEMPHILL, C. Scott. Intellectual property and competition law. In: FREYFUSS, Rochelle; PILA, Justine. </span><span lang="en-US">The Oxford Handbook of Intellectual Property. </span><span lang="en-US">Nova Iorque: Oxford University Oress, 2018. p.</span> <span lang="en-US">890.</span></p>
</div>
<div id="sdfootnote9">
<p lang="x-none" align="justify"><a href="#sdfootnote9anc" name="sdfootnote9sym">9</a> Ver: CADE, AP 08012.013624/2007-44. Rel. Cons. Alessandro Serafin Octaviani Luis, julg. 31.10.2012.</p>
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JOTA

É comum que a distorção das condições competitivas não se restrinja apenas aos rivais diretamente afetados

Dimensões concorrenciais do abuso da propriedade intelectual

É comum que a distorção das condições competitivas não se restrinja apenas aos rivais diretamente afetados