Opinião e Análise

Ana Frazão

Já faz algum tempo que um excelente artigo do professor Otavio Luiz Rodrigues Junior<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> lançou interessante provocação a partir de um caso concreto, em que o dono de um restaurante em Valência (Espanha) processou a famosa plataforma Tripadvisor. O fundamento da ação era o de que, diante de inúmeros comentários que desabonavam a reputação do seu restaurante e que comprometiam a própria sobrevivência do negócio – que iam desde a baixa qualidade da comida até a prática de fraudes à seguridade social – a plataforma criava entraves para que o empresário pudesse se defender adequadamente e responder os comentários. Como bem apontou o professor Otavio Luiz Rodrigues Junior:
“Como subjacente à causa está o velho debate sobre liberdade de expressão versus os valores associados à honra, à reputação e à imagem. Para o restaurante, contudo, há algo além disso: a petição sustenta que os estabelecimentos avaliados se submetem ao pior dos dois mundos. Não ingressar voluntariamente no Tripadvisor implica ter de se submeter às avaliações sem direito a contraditório. E ingressar conduz a uma escravidão: acompanhar todos os comentários diariamente e respondê-los, como se fossem servos da empresa norte-americana".
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
O caso mencionado é um bom ponto de partida para refletirmos sobre os julgamentos virtuais, não somente no que diz respeito às questões procedimentais e relacionadas ao contraditório, como também no tocante à qualidade desses julgamentos, considerando que muitos deles se baseiam em algoritmos, cujos resultados não podem ser compreendidos ou auditados, o que, além dos riscos próprios, ainda pode dar margem a burlas e distorções.
Aliás, isso já aconteceu com o próprio Tripadvisor, tendo ficado famoso o experimento de um jornalista britânico que, por meio de uma estratégia relativamente simples, conseguiu burlar a plataforma, fazendo com que um restaurante falso se tornasse o número 1 de Londres<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Em um mundo crescentemente digital, cada vez mais julgamentos para os mais diversos fins tornam-se também digitais. Em alguns casos, são as próprias plataformas que fazem tais julgamentos ou consolidam os julgamentos individuais dos usuários por meio de rankings ou classificações daqueles que estão sob julgamento. Em outros casos, as plataformas funcionam como arenas ou praças públicas, a fim de que a comunidade de usuários possa julgar e condenar pessoas naturais e jurídicas, além de lhes aplicar sanções sociais, que vão desde o “cancelamento” ou “linchamento moral” até diversas outras que podem causar consequências extremamente graves na vida dos condenados.
Verdade seja dita que, no que diz respeito às condenações morais, antes mesmo dos julgamentos virtuais, a grande mídia, especialmente a televisiva, já havia oferecido vários exemplos desse tipo de situação. Ficou famoso, nesse sentido, o caso Escola Base, em que os acusados, quando conseguiram se provar inocentes, depois de longo e tormentoso processo, já haviam sido “enterrados” socialmente<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Entretanto, não se pode ignorar que o mundo digital ampliou e facilitou esse tipo de situação em proporções até então não conhecidas, ainda mais diante dos efeitos de determinados julgamentos. Veja-se o que aconteceu, por exemplo, quando importantes plataformas resolveram julgar o ex-presidente dos EUA Donald Trump, para bani-lo de suas redes. Independentemente da gravidade dos atos a ele atribuídos, a expulsão de uma importante rede social pode ter sérias repercussões democráticas, dificultando ou mesmo impedindo o acesso e a comunicação de políticos com a sua base de eleitores.
Esse tipo de situação também evidenciou que as plataformas tratam de um tema com esse grau de importância a partir de regras frouxas e pouco transparentes, que podem dar margem muito mais a casuísmos do que a julgamentos minimamente coerentes e imparciais. Não é sem razão que o próprio Oversight Board do Facebook apontou problemas na decisão da plataforma que baniu o ex-presidente Trump, inclusive no que diz respeito ao fato de lhe ter aplicado uma sanção por tempo indeterminado<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Porém, o problema dos julgamentos virtuais vai muito além dos exemplos até então mencionados. Em uma sociedade movida a dados, cada vez mais se tem visto como empresas, data brokers e congêneres especializaram-se em perfilar, classificar e julgar cidadãos, buscando extrair inferências sobre suas características ou comportamentos que podem ser usadas para restringir ou mesmo impedir acesso a determinadas oportunidades ou a determinados direitos, bens ou serviços. Daí o potencial de discriminações indevidas, precificações individualizadas abusivas e tantas outras condutas que se baseiam na exploração das vulnerabilidades e fragilidades das pessoas.
Como a maior parte desses julgamentos se dá por meio de algoritmos secretos e obscuros, até mesmo a identificação da ilicitude pode ser difícil ou impossível, o que torna os cidadãos cada vez mais vulneráveis a esses tipos de práticas.
Já no que diz respeito ao que vem ocorrendo no interior das plataformas, tendo como protagonistas os próprios usuários, Anne Applebaum<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, em recente artigo, desnuda vários dos problemas dos chamados “tribunais da internet” ou da justiça das massas. Segundo a autora, os tempos recentes têm mostrado que diversas pessoas têm perdido tudo – seus empregos, seu dinheiro, seus amigos e colegas – mesmo sem terem violado nenhuma lei, mas tão somente pelo fato de terem sido acusadas de violação a determinados códigos sociais – normalmente relativos a raça, sexo, comportamentos pessoais ou mesmo de humor inaceitável – que nem existiam há alguns anos, mas que foram suficientes para destruir a vida delas.
Para Applebaum, ao contrário dos julgamentos judiciais, caracterizados por diversas garantias, como a presunção de inocência, assim como pela necessidade de se atentar às nuances e ambiguidades da conduta humana, nada disso é levado em consideração na internet, um lugar de conclusões apressadas e “argumentos de 280 caracteres”.
Pelo contrário, todo o sistema é propício para que, diante da sede das massas por sangue, sejam impostas sanções e estigmatizações públicas – muitas delas perpétuas – a pessoas que não foram acusadas de nenhum crime e que ainda foram julgadas por critérios não transparentes – que não raro traduzem agendas secretas e retaliações – e sem terem exercido o seu direito de defesa.
Daí a pergunta que Applebaum nos coloca: se a Constituição assegura que ninguém pode ser expropriado de sua vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal, o que justificaria que isso pudesse acontecer na internet, mesmo quando o violador de tais garantias não é o Estado?
Esse conjunto de casos e exemplos, embora muito diferentes entre si, estão ligados por um fio condutor comum, que diz respeito às garantias que os cidadãos – e, conforme o caso, também pessoas jurídicas – deveriam ter sempre que fossem objetos de julgamento nas relações privadas e sempre que tais julgamentos pudessem afetar consideravelmente suas vidas.
Seja quando tais julgamentos são feitos por importantes agentes privados – como plataformas, empresas e toda a indústria de data brokers e congêneres – seja quanto tais julgamentos são feitos pelas massas, no contexto dos chamados “tribunais da internet”, surgem questões relevantes cujas respostas são cada vez mais urgentes.
Verdade seja dita que muito da construção do princípio do devido processo legal ocorreu em torno da necessidade de proteção dos cidadãos e dos agentes privados contra o Estado. Entretanto, em um mundo em que agentes privados podem ter poderes tão grandes ou até maiores do que os do Estado, em que as praças públicas e os tribunais da internet estão à distância de um “click” e em que as fronteiras entre os espaços públicos e privados estão cada vez mais esgarçadas, não será necessário pensar nas repercussões do devido processo legal também nas relações privadas?
No que diz respeito ao Direito Constitucional, vale lembrar que não é nenhuma novidade a discussão sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, razão pela qual a discussão sobre um devido processo digital não deve causar maior estranheza. A grande questão é como operacionalizar isso na prática, de forma compatível com a autonomia privada.
Para Nicolas Suzor<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, tal propósito pressupõe a construção de um constitucionalismo digital, em que seja possível a adaptação da rule of law, pensada inicialmente para o Estado, também para a governança da mídia digital, com especial atenção para o papel (i) das plataformas, como definidores das regras de participação, (ii) dos designers de tecnologia, que possibilitam a comunicação e limitam a ação, (iii) dos desenvolvedores de algoritmos que classificam, organizam, destacam e suprimem conteúdos e (iv) de todos os empregadores de moderadores humanos que são também responsáveis pelo enforcement das regras que tratam dos comportamentos e conteúdos aceitáveis.
A grande questão da governança digital diz respeito à necessidade da criação de regras claras para a solução de tais conflitos, buscando o atendimento do núcleo da rule of law, que é evitar o arbítrio por meio da institucionalização da “rule of law, not of individuals”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>:
"At a minimum, the consent of the governed requires that governance power is exercised in a way that is limited by rules—not arbitrarily (Dicey, 1959). This is ultimately the most basic value of the rule of law—that power is wielded in a way that is accountable, that those in positions of power abide by the rules, and that those rules should only be changed by appropriate procedures within appropriate limits. In this limited sense, there is good reason to believe that the rule of law is a universal human good—that all societies benefit from restraints on the arbitrary or malicious exercise of power (Tamanaha, 2004, p. 137; Thompson, 1990, p. 266)".
Outro dos pontos fundamentais do digital due process, tal como explica Frederick Mostert<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, é resolver o problema da falta de transparência, já que a opacidade dos julgamentos virtuais é um dos maiores incentivos para o arbítrio. Daí a crítica do autor ao fato de as plataformas conduzirem suas operações como verdadeiras black boxes, adotando processos decisórios arbitrários.
Como se pode observar, considerando a frequência com que esses julgamentos virtuais têm sido feitos e os impactos que eles podem ter na vida das pessoas – em alguns casos, muito maiores do que julgamentos e condenações impostas pelos Estados – é mais do que urgente pensar na eficácia horizontal do devido processo legal no mundo digital, inclusive para o fim de se identificar como os agentes econômicos responsáveis pela arquitetura da internet devem operacionalizar tais garantias.
Ademais, é bastante salutar que possamos responder às seguintes perguntas:
<ul>
<li>Agentes privados podem julgar outros como e quando quiserem ou há limites para isso, especialmente quando os julgamentos são públicos ou podem trazer impactos importantes para a vida dos que estão sob julgamento? Poderíamos cogitar, em algumas circunstâncias, de um direito de não ser julgado ou de não ser julgado a partir de determinados dados ou critérios?</li>
<li>Mesmo quando determinados julgamentos são possíveis, estes não deveriam ser minimamente impessoais e submetidos a regras que contenham o arbítrio e possibilitem alguma forma de defesa, especialmente quando os “vereditos” podem ter inúmeros impactos na vida daqueles que estão sendo julgados? Em outras palavras, poderíamos cogitar de um devido processo digital?</li>
<li>Em que medida a crescente utilização de algoritmos para tais julgamentos pode ser um instrumento ou um óbice para a realização desse devido processo digital?</li>
</ul>
Por mais que não se trate de discussão fácil, é fundamental que pelo menos cogitemos (i) a existência de regras impessoais e minimamente claras, (ii) a possibilidade de contraditório e (iii) o respeito à transparência e à accountability. Afinal, se realmente queremos conter o arbítrio, é fundamental que as pessoas pelo menos possam entender porque e como estão sendo julgadas, inclusive para que possam exercer o legítimo direito de impugnar o “veredito”.
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<hr />
&nbsp;
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Tripadvisor criará precedente na responsabilidade civil espanhola. Conjur. <a href="https://www.conjur.com.br/2019-mai-29/tripadvisor-criara-precedente-responsabilidade-civil-espanhola">https://www.conjur.com.br/2019-mai-29/tripadvisor-criara-precedente-responsabilidade-civil-espanhola</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://viagemeturismo.abril.com.br/blog/achados/restaurante-falso-que-virou-1-de-londres-no-trip-advisor-o-que-aprendemos/">https://viagemeturismo.abril.com.br/blog/achados/restaurante-falso-que-virou-1-de-londres-no-trip-advisor-o-que-aprendemos/</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://canalcienciascriminais.com.br/caso-escola-base/">https://canalcienciascriminais.com.br/caso-escola-base/</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="https://www.npr.org/2021/05/07/994436847/what-we-learned-about-facebook-from-trump-decision">https://www.npr.org/2021/05/07/994436847/what-we-learned-about-facebook-from-trump-decision</a>.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> APPLEBAUM, Anne. The new puritans. The Atlantic. <a href="https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2021/10/new-puritans-mob-justice-canceled/619818/">https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2021/10/new-puritans-mob-justice-canceled/619818/</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> SUZOR, Nicolas. Digital constitutionalism: using the rule of law to evaluate the legitimacy of governance by platforms <a href="https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/2056305118787812">https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/2056305118787812</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> ZUDOR, Nicolas. Op.cit., p. 5.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> MOSTERT, Frederick, 'Digital Due Process': A Need for Online Justice (March 11, 2020). Journal of Intellectual Property Law &amp; Practice, forthcoming., SSRN: <a href="https://ssrn.com/abstract=3537058">https://ssrn.com/abstract=3537058</a>

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JOTA

Em que medida o devido processo legal se aplica aos julgamentos online e às relações privadas na internet?

Devido processo digital

Em que medida o devido processo legal se aplica aos julgamentos online e às relações privadas na internet?