Opinião e Análise

Ana Frazão

O tema do consequencialismo já foi por mim abordado em diversas colunas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, em que tive a oportunidade de demonstrar minha preocupação com algumas interpretações apressadas das recentes alterações da LINDB, sobretudo no que diz respeito ao seu art. 20, tais como:
<ol style="list-style: lower-roman;">
<li>a de que o Direito brasileiro teria acolhido o consequencialismo, o que implicaria reconhecer que apenas as consequências das decisões importariam ou que as consequências seriam mais importantes do que os valores;</li>
<li>a de que o consequencialismo corresponderia a uma abordagem exclusivamente econômica, o que implicaria reconhecer que apenas as consequências econômicas importariam, especialmente aquelas que podem ser mensuradas por metodologias econômicas, tais como as análises de custo-benefício; e</li>
<li>a de que o consequencialismo estaria atrelado a determinadas vertentes econômicas, o que implicaria reconhecer que apenas determinados referenciais econômicos, como custos de transação e eficiências, seriam efetivamente considerados como consequências relevantes para as decisões administrativas e judiciais.</li>
</ol>
Naquelas oportunidades, procurei refutar todas essas premissas, argumentando sobre a necessidade de que o Direito preserve sua racionalidade voltada à discussão sobre valores, de forma que a eventual introdução do juízo de consequências no raciocínio jurídico não poderia ocorrer de forma incompatível à discussão sobre os valores.
Também procurei apontar que a análise de consequências não pode ficar restrita aos referenciais econômicos, assim como ressaltei as dificuldades para incorporar, no raciocínio jurídico, posturas consequencialistas muito restritivas, tais como análises econômicas preditivas, que tendem a mensurar apenas o que é facilmente quantificável, deixando de considerar questões importantes que, como é o caso de consequências sociais ou ambientais, são insuscetíveis de mensuração.
Aliás, sobre as limitações das análises preditivas de impacto — e mais especificamente sobre as análises de custo-benefício — tive a oportunidade de explorar o tema igualmente na <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/perspectivas-das-analises-de-impacto-regulatorio-airs-no-brasil-1702202">série sobre Análises de Impacto Regulatório</a> (AIR), ocasião em que demonstrei as inúmeras críticas à suposta capacidade preditiva da economia e à possibilidade metodológica de traduzir tudo em números e preços.
Entretanto, poucas vezes vi uma crítica tão contundente à introdução do consequencialismo no Brasil, pelo menos da forma superficial como tem sido feita até agora, como a do professor Humberto Ávila, um dos mais respeitados juristas brasileiros, que conversou comigo sobre o tema no <a href="https://open.spotify.com/episode/3c2FjN6MvyZ8jYTFumQWEZ?si=4rpS_Pu5SEuLDNDQi0PAgg&amp;context=spotify%3Acollection%3Apodcasts%3Aepisodes">último episódio do podcast Direito e Economia</a>.
Para o professor Humberto Ávila, é preciso entender, inicialmente, que o consequencialismo localiza-se na filosofia moral prática ou ética normativa. Contrapondo-se às posturas deontológicas, que julgam o valor de uma conduta por elementos internos a elas, o consequencialismo pode ser visto como um conjunto de teorias segundo as quais uma conduta é ou não correta em virtude das suas consequências.
Obviamente que uma das primeiras dificuldades é saber qual é o peso das consequências, ou seja, em que medida serão mais um critério para avaliar a correção da conduta ou o critério único. Entretanto, o problema é ainda mais profundo, pois, como bem mostra o professor Humberto Ávila, exige uma prévia reflexão sobre o que pode ser considerado consequência e como será avaliado como tal. Daí algumas perguntas formuladas pelo professor<a href="#_ftn2" name="_ftnref4">[2]</a>:
<ul>
<li>o que são consequências?</li>
<li>consequências na visão de quem?</li>
<li>consequências reais ou intencionais?</li>
<li>consequências prováveis, possíveis ou pretendidas?</li>
<li>consequências diretas ou indiretas? E as consequências das consequências?</li>
<li>consequências em relação a quê? Bem de todos? Bem de alguns? Outros critérios?</li>
<li>consequências para serem atendidas, otimizadas ou maximizadas?</li>
<li>consequências quando? Ontem, hoje ou no futuro? Futuro imediato ou a longo prazo? E quando houver conflito entre os impactos de curto prazo e os de longo prazo?</li>
<li>consequências apenas consideradas em seus aspectos quantitativos? Mensuradas de que maneira? No total ou na média?</li>
<li>consequências aferidas por quem? Pelo juiz, pelo destinatário ou pelo agente?</li>
<li>consequências dos atos que estão sob julgamento ou consequências das próprias decisões que os analisam?</li>
</ul>
Todas essas perguntas mostram que, como conclui o professor Humberto Ávila, sem se saber em que sentido estamos usando o termo “consequências”, na ausência da prévia definição dos elementos básicos do que são consequências e como poderão ser consideradas, não se tem nem mesmo como começar a discussão. Pelo contrário, cria-se o risco concreto de que o consequencialismo seja utilizado para justificar descumprimentos da lei sem qualquer tipo de critério.
Ademais, a adoção do consequencialismo sem maiores explicações pressupõe que o juiz ou decisor sejam oniscientes, desconsiderando as limitações epistemológicas, cognitivas, institucionais, normativas que os decisores precisam enfrentar.
Mas as reflexões não param por aí. A partir das considerações do professor Humberto Ávila, podem ser mapeadas igualmente importantes considerações sobre o tema:
<ul>
<li>o consequencialismo pode anular os elementos essenciais da filosofia prática, desconsiderando a conduta enquanto intenção, a racionalidade e a própria responsabilidade, já que as pessoas podem ser julgadas por consequências que não conheciam no momento em que praticaram seus atos. Daí a pergunta: como se falar em ação responsável e livre se o indivíduo pode ser submetido a consequências que ele não podia conhecer no momento da sua ação?</li>
<li>o consequencialismo pode violar garantias processuais básicas, tais como os princípios do devido processo legal, do contraditório e da não surpresa, na medida em que o momento da avaliação das consequências será o da decisão, sem que as partes tenham tido oportunidade para discutir tais consequências.</li>
<li>o consequencialismo pode violar a igualdade e a segurança jurídica, na medida em que, a partir do momento em que cada julgador vislumbra as consequências do seu próprio jeito, rompe-se com a ideia de generalidade e abstração das normas.</li>
<li>o consequencialismo pode implicar violação ao princípio da tripartição de poderes, pois admitiria a desconsideração das consequências previstas pelo legislador para substitui-las pelas consequências previstas pelo juiz.</li>
<li>o consequencialismo pode dar margem à priorização dos efeitos financeiros das decisões, podendo criar, a médio prazo, grande incentivo para o descumprimento das normas jurídicas sempre que os interessados puderem antecipar que a ilegalidade de suas condutas pode deixar de ser reconhecida em razão das consequências financeiras decorrentes da restauração da legalidade.</li>
</ul>
Sob tais perspectivas, a aceitação inconsequente do consequencialismo pode implicar a negação do próprio direito. E a ironia é que uma solução que foi pensada para conter a arbitrariedade dos juízes pode ser utilizada para aumentá-la ainda mais, reforçando o problema da insegurança jurídica e ainda comprometendo inúmeras garantias constitucionais.
Daí porque, qualquer que seja o nosso entendimento sobre a importância ou não do consequencialismo, é fundamental aprofundar o debate e responder a pergunta crucial que é formulada pelo professor Humberto Ávila: do que estamos falando?
Sem um debate honesto e profundo sobre o tema, é de se esperar que o consequencialismo inconsequente possa trazer ainda mais mazelas do que aquelas que supostamente pretendeu sanar.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Ver colunas publicadas em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/a-importancia-da-analise-de-consequencias-para-a-regulacao-juridica-29052019">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/a-importancia-da-analise-de-consequencias-para-a-regulacao-juridica-29052019</a> e <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/direito-civil-constitucional-e-a-lindb-12082020">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/direito-civil-constitucional-e-a-lindb-12082020</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn4">[2]</a> Ver também palestra do Professor Humberto Avila Consequencialismo e modulação em matéria tributária, disponível no YouTube. <a href="https://www.youtube.com/watch?v=jTPWxIPPK6k&amp;t=3192s">https://www.youtube.com/watch?v=jTPWxIPPK6k&amp;t=3192s</a>

justiça

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