Opinião e Análise

Ana Frazão

Embora o ano de 2022 tenha ocupado o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a> com muitas e diversificadas matérias, no que diz respeito à livre iniciativa houve decisões importantes que nos ajudam a entender como a corte vem interpretando o mencionado princípio no contexto da ordem econômica constitucional.
Logo no início de 2022, foi publicado acórdão de caso julgado no final de 2021, em que o pleno teve a oportunidade de apreciar ação direta de inconstitucionalidade contra lei da Paraíba que vedava a interrupção dos contratos de plano de saúde em decorrência de inadimplência enquanto perdurasse a pandemia do novo coronavírus, facultando a possibilidade de pagamento a posteriori do débito, de forma parcelada, mas vedando a cobrança de juros e multa.
Além da inconstitucionalidade formal, sob o fundamento de usurpação da competência da União federal para dispor sobre Direito Civil e seguros, considerou o tribunal que a lei paraibana violava indevidamente a liberdade de iniciativa, na medida em que impunha redução na receita das entidades prestadoras de serviços de planos de saúde, sem qualquer contrapartida e de forma anti-isonômica, atribuindo especificamente ao setor de saúde suplementar o dever de compensar os prejuízos experimentados pelos particulares em razão da pandemia. Também entendeu o tribunal que a lei estadual ofenderia a garantia constitucional do ato jurídico perfeito, na medida em que previa a incidência de seus preceitos a contratos novos ou preexistentes, sem fazer qualquer distinção.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Também no início de 2022 foi publicado acórdão de outro julgamento do final de 2021 em que o STF tratou dos critérios de ressarcimento de agente privado de saúde que, por determinação judicial, é obrigado a atender paciente às expensas do poder público. Considerou a corte que as diretrizes e valores do SUS não poderiam ser impostas a agente privado que não aderiu ao sistema público pela celebração de convênio, sob pena de violação da livre iniciativa (CF, art. 170, caput) e da propriedade privada (CF, arts. 5º, XXII e 170, II). Entretanto, como a execução privada do serviço de saúde não afasta sua relevância pública (CF, art. 177), o STF considerou ser razoável que se adotasse, em relação ao ressarcimento da rede privada, o mesmo critério utilizado para ressarcimento do Sistema Único de Saúde por serviços prestados a beneficiários de planos de saúde.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Em março de 2022, o STF considerou inconstitucional lei de Santa Catarina que obrigava a divulgação diária de fotos de crianças desaparecidas em noticiários de TV e jornais de Santa Catarina. Além da questão da inconstitucionalidade formal, o tribunal entendeu que a lei estadual violaria a livre iniciativa e o art. 220, da Constituição<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
No mesmo mês, o tribunal entendeu constitucional a penhora de bem de família de fiador em contratos de locação comercial, fixando a seguinte tese:
<blockquote class="jota-article__citation">“Os fundamentos da tese fixada por esta CORTE quando do julgamento do Tema 295 da repercussão geral (É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da Lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000), no tocante à penhorabilidade do bem de família do fiador, aplicam-se tanto aos contratos de locação residencial, quanto aos contratos de locação comercial".</blockquote>
Dentre os fundamentos invocados, encontram-se a necessidade de proteger a equação econômica dos contratos, a necessidade de equilíbrio entre a proteção à moradia e a livre iniciativa do locatário, bem como entre o direito de propriedade e a autonomia de vontade do fiador, assim como a necessidade de se respeitar a boa-fé objetiva<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Também em março de 2022, foi publicado acórdão de ADPF que, julgada no final de 2021, questionava o conjunto de decisões judiciais e administrativas e atos normativos e projetos que versavam sobre controle de preços no ensino superior privado no contexto das medidas de isolamento social adotadas para enfrentamento da pandemia da Covid-19. Para o STF, a presunção de prejuízo automático de uma das partes e a imposição de descontos gerais e lineares desconsidera as peculiaridades de cada contrato, violando a livre iniciativa, por impedir a via da renegociação entre as respectivas partes envolvidas, e também o princípio da proporcionalidade<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Em maio de 2022, o STF considerou inconstitucional lei do estado do Rio de Janeiro que obrigava restaurantes vendedores de bebidas destiladas a ofertar, no mínimo, quatro marcas de cachaça produzidas no estado. A 1ª Turma entendeu que houve intervenção desproporcional na atividade empresarial e na livre iniciativa, até porque haveria alternativas menos gravosas para estimular o consumo das cachaças fluminenses<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
No final de maio de 2022, a 1ª Turma também considerou inconstitucional lei do estado do Rio de Janeiro que proibia supermercados e hipermercados de cobrarem preço diferenciado na venda de bebidas geladas e em temperatura ambiente. Mais uma vez se entendeu ausente a proporcionalidade da norma pois, além de desconsiderar o complexo processo de precificação de produtos, acarretaria desnecessário aumento de custos a determinados agentes, pois somente os supermercados e hipermercados estariam sujeitos à referida restrição<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Em junho de 2022, a corte julgou inconstitucional lei do estado de São Paulo que obrigava fornecedores de serviços de telefonia e educação, prestados de forma contínua, a extensão de benefícios de novas promoções a clientes preexistentes. Além da inconstitucionalidade formal, por invadir competência da União, o tribunal entendeu que os dispositivos violariam a livre iniciativa e a proporcionalidade, sob o fundamento de que “[é] lícito que prestadores de serviços façam promoções e ofereçam descontos com a finalidade de angariar novos clientes, sem que isso signifique conduta desleal ou falha na prestação do serviço a clientes preexistentes”.
No caso de serviços de telecomunicações, ainda haveria a interferência no equilíbrio econômico-financeiro de contratos de concessão celebrados pela União com empresas privadas. Daí o STF ter fixado a seguinte tese: “É inconstitucional lei estadual que impõe aos prestadores privados de serviços de ensino e de telefonia celular a obrigação de estender o benefício de novas promoções aos clientes preexistentes”.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
Em agosto de 2022, o tribunal considerou constitucionais normas técnicas da ANP, veiculadas por resolução, mesmo quando acarretam aumento de custos para os agentes regulados, sob o fundamento de que “[a] atribuição dos custos do monitoramento aos agentes regulados em questão revela tratamento isonômico quanto aos demais elos da cadeia de comercialização de combustíveis, sendo incapaz de violar os princípios da legalidade, da livre iniciativa, da liberdade de contratar e da proporcionalidade e razoabilidade”.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Em setembro de 2022, o tribunal julgou ação direta de inconstitucionalidade contra vários dispositivos da Lei Federal 9.294/96, que impunham restrições à propaganda comercial de fumígenos, derivados ou não do tabaco. A corte considerou proporcionais as medidas no contexto multifacetado das políticas públicas de combate ao fumo e de controle do tabaco, pois a tutela da saúde (art. 6º, CF) e a incidência da proteção prioritária da criança e do adolescente (art. 227, CF) justificariam a limitação da liberdade de iniciativa, na dimensão expressiva e comunicativa, para a construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional sustentável, a redução de desigualdades e a promoção do bem de todos<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Em outubro de 2022, foi considerado inconstitucional decreto do município de Niterói (RJ), que instituía diversas exigências para o transporte individual privado remunerado de passageiros intermediado por plataformas digitais, bem como estabelecia cobrança de preço público, não previsto na Lei Federal 13.640/2018. O tribunal entendeu que já havia se manifestado sobre a questão nos autos do RE 1.054.110-RG (Tema 967), quando fixou a seguinte tese:
<blockquote class="jota-article__citation">“I - A proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência; II - No exercício de sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os Municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (CF/1988, art. 22, XI)".</blockquote>
Consequentemente, entendeu que as normas municipais acabaram prevendo requisitos não previstos na legislação federal, tais como a dependência de outorga do direito de uso e de pagamento de preço público, violando, desse modo, a tese fixada no Tema 967 da repercussão geral<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Ainda em outubro de 2022, o tribunal, por meio do seu plenário, considerou constitucional lei do Paraná que reservava 3% dos lugares disponíveis em salas de projeções, teatros, espaços culturais e nos veículos de transporte público municipal e intermunicipal do estado do Paraná para pessoas obesas. Entendeu-se que não haveria violação à livre iniciativa porque a reserva de lugares foi estabelecida em percentual razoável e no contexto de política inclusiva compatível com a liberdade de iniciativa, principalmente se considerada a eficácia horizontal dos direitos fundamentais<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>.
Como se pode observar do conjunto de casos analisados, observa-se uma grande preocupação do tribunal em não interferir em contratos privados e na precificação de agentes econômicos, salvo em casos extremos, como ocorreu no RE 666094<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>. Por outro lado, a corte teve a oportunidade de confirmar diversas restrições à livre iniciativa e aumento de custos decorrentes de novas obrigações regulatórias sempre que estas se mostrassem compatíveis com a ordem econômica constitucional.
O conjunto de decisões descritas evidencia igualmente que, diante de uma ordem econômica complexa, que busca conciliar a livre iniciativa com a construção de uma ordem sociedade livre e solidária (CF, art. 170), o princípio da proporcionalidade continua a ser importante critério para o julgamento das questões relacionadas a restrições à livre iniciativa e à propriedade privada, embora nem sempre fique claro como a corte exerce o referido juízo de proporcionalidade.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ADI 6491, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04/11/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-025  DIVULG 09-02-2022  PUBLIC 10-02-2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> RE 666094, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 30/09/2021, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-020  DIVULG 03-02-2022  PUBLIC 04-02-2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ADI 5292, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 28/03/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-096  DIVULG 18-05-2022  PUBLIC 19-05-2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> RE 1307334, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 09/03/2022, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-101  DIVULG 25-05-2022  PUBLIC 26-05-2022.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> ADPF 713, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 18/11/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-059  DIVULG 28-03-2022  PUBLIC 29-03-2022.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> STF, RE 1254871 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 16/05/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-118  DIVULG 17-06-2022  PUBLIC 20-06-2022; RE 1285904 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 30/05/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-118  DIVULG 17-06-2022  PUBLIC 20-06-2022.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> STF, RE 1285904 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 30/05/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-118  DIVULG 17-06-2022  PUBLIC 20-06-2022.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> ADI 6191, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 09/06/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-186  DIVULG 16-09-2022  PUBLIC 19-09-2022.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> ADI 7031, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 08/08/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-161  DIVULG 15-08-2022  PUBLIC 16-08-2022.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> ADI 3311, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 14/09/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-195  DIVULG 28-09-2022  PUBLIC 29-09-2022.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> RE 1390895 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 18/10/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-213  DIVULG 21-10-2022  PUBLIC 24-10-2022.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> ADI 2572, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 24/10/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-226  DIVULG 09-11-2022  PUBLIC 10-11-2022.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> RE 666094, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 30/09/2021, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-020  DIVULG 03-02-2022  PUBLIC 04-02-2022.

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JOTA

Retrospectiva das principais decisões de 2022

A livre iniciativa pelo olhar do STF

Retrospectiva das principais decisões de 2022 no Supremo Tribunal Federal envolvendo o princípio da livre iniciativa