Opinião e Análise

Gilvandro Araújo

Rômulo Hannig

As tecnologias disruptivas têm desafiado a tradicional regulação por comando e controle aplicável ao setor de transportes. Isso já foi visto em relação aos transportes urbanos com a chegada da Uber; e agora o impacto de uma concorrência inadvertida traz conflitos para os transportes rodoviários.
A internet e desenvolvimento de aplicativos já é uma realidade no regime de fretamento colaborativo de ônibus, seja de caráter eventual ou turístico, e tem possibilitado a interação direta entre consumidores e fornecedores de serviços de transporte de pessoas. Estaria a regulação preparada para essa nova realidade? 
Para as plataformas, a regra prevalente do circuito fechado não é mais apropriada, pois impossibilita a variação de passageiros durante o percurso. Nos termos da regulamentação, o serviço deve ser prestado a pessoa ou grupo de pessoas, cujos nomes devem constar em listas preestabelecidas (de ida e de volta). E por essa razão, tem-se a prévia autorização ou licença da Agência Nacional de Transportes Terrestres (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/antt">ANTT</a>) para formação desses consumidores. 
Esse seria um exemplo de restrição não justificada para o agente privado poder prestar a sua atividade. A moldura regulatória, assim: tolhe a liberdade de escolha e contratação do usuário; gera a ociosidade de mão de obra e de frota; prejudica a sustentação de novas empresas, a geração de empregos; além de se elevar custos para os consumidores. Todas essas seriam práticas, inclusive, capazes de serem consideradas como abusivas, à luz do art. 4º da Lei da Liberdade Econômica.
Mas há quem vislumbre racionalidade na regra vigente. Considerando-se uma avaliação sistemática na prestação do serviço rodoviário, não estabelecer condições para o fretamento eventual ou turístico poderia prejudicar os prestadores de serviços regulares, os quais devem observar políticas públicas relacionadas a rotas de mercado pré-estabelecidas, regime tributário mais severo, disposição de frota mínima, modicidade tarifária, bem como gratuidades oferecidas a grupos específicos, determinados pela legislação (e.g. idosos, estudantes e portadores de deficiência).
Confrontada às justificativas para manutenção e modulação da regra aplicável, a ANTT tem sido criteriosa para interpretar e aplicar a regulamentação vigente. Exemplo recente pode ser colhido da 943ª Reunião Colegiada, realizada em 03 de novembro de 2022. Ao julgar o Processo Administrativo nº 50500.093207/2021-90, a Agência impôs a penalidade de cassação da autorização à empresa que atua no regime de fretamento. A ANTT alega que num período de 20 meses a empresa teria descumprido a regra do circuito fechado em pelo menos nove oportunidades, o que ensejaria em prestação de modalidade de transporte diversa da que lhe fora autorizada.
Casos semelhantes seguem sendo tensionados no Judiciário. Distrito Federal, Ceará, Bahia e Espírito Santo trazem decisões contrárias à atuação de plataforma fora do circuito fechado (e.g. processos: nº 1043315-80.2020.4.01.3400, 2ª Vara Federal Cível SJDF; nº 1006233-06.2020.4.01.3306, da Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Paulo Afonso-BA; e nº 0287408-68.2021.8.06.0001, da 7ª Vara da Fazenda Pública Fortaleza-CE). No ES há decisão de apreensão de veículos e a aplicação de multas no montante de R$ 45 milhões (vide processo nº 0003189-17.2020.8.08.0024, da 10ª Vara Cível de Vitória-ES).
Em outros estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Paraná, houve manifestações judiciais no sentido de que as regras existentes não se aplicam a plataformas, já que, como intermediária entre usuários e empresas de transporte autorizadas pela ANTT, a atividade não poderia ser enquadrada como transportadora (e.g.  processo nº 5002007-53.2021.4.03.6100, da 6ª Vara Federal de SP; e Agravo de Instrumento nº 0060931-32.2021.8.19.0000, da 12ª Câmara Cível do TJ-RJ). Instado a se manifestar em algumas oportunidades, o MP do RJ já classificou que as normas de circuito fechado não podem ferir os princípios da livre iniciativa e livre concorrência (vide supramencionado processo nº 0060931-32.2021.8.19.0000).
A fim de pacificar o tema e promover maior segurança jurídica, a SEAE trouxe dois aspectos. Primeiramente, estimou que a regra do circuito fechado impõe a prestadores e consumidores um custo regulatório anual superior a R$ 1,055 bilhão, sendo que já classificou em algumas oportunidades como anticompetitivos os Decretos nº 2.521/1998 e nº 10.157/2019 e as Resoluções ANTT nº 4.770/2015 e nº 4.777/2015. Para a SEAE, a regra do circuito fechado limita a concorrência e cria barreiras à entrada de novos competidores.
Dada a assimetria regulatória, para a Secretaria seria o caso de reformar a regulação e a legislação vigentes, de modo a reduzir os encargos tanto para os prestadores regulares de transporte interestadual quanto para aqueles que operam na modalidade de fretamento colaborativo. Dentre as medidas, podem ser destacadas: i) redução do capital social mínimo exigido para as empresas atuam no setor; ii) adoção de diferentes formas de comprovação de frota, inclusive por meio do arrendamento da frota de terceiros; iii) redução do tempo mínimo de permanência no mercado de uma rota; iv) previsão de emissão digital de bilhetes; v) adoção de localidades alternativas para embarque e desembarque de passageiros, baseada em modelos adotados em países europeus e nos Estados Unidos. 
Simplificar e modernizar a regulação setorial é, pois, constante desafio. Não se pode prescindir dos efeitos benéficos da inovação, mas a relevância da atividade há de exigir uma orientação normativa. Posto isto, não há como fugir da inspiração da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13640.htm">Lei 13.640/2018</a> (a qual regulamentou o transporte remunerado privado individual de passageiros via aplicativos) bem como da decisão do <a href="https://www.jota.info/stf">STF</a> na ADPF 449. Apenas com o advento da lei e da decisão do Supremo houve a pacificação dos conflitos regulatórios e judiciais, e foram contemplados critérios e parâmetros para garantir interesse público e pró-competitividade em benefício do consumidor. Acompanhemos os próximos passos.

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JOTA

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