Opinião e Análise

Marcelo Cesar Guimarães

Após quase duas décadas de discussões sobre potenciais danos à concorrência decorrentes de vantagens conferidas a entes estatais, o Conselho da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) adotou, em maio de 2021, a Recomendação<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> relativa à neutralidade concorrencial <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
O objetivo da Recomendação é assegurar um ambiente competitivo isonômico entre empresas públicas e privadas, e entre empresas privadas entre si. Visa-se, assim, a um mercado neutro, em que todos os players sejam sujeitos às mesmas regras e ao mesmo ambiente regulatório, independentemente de sua propriedade, controle, localidade ou forma legal.
Para alcançar tais finalidades, as seguintes práticas são recomendadas aos países aderentes:
<ul>
<li>Adotar ou manter um direito da concorrência neutro, abrangendo um controle de condutas anticompetitivas e um controle de concentrações;</li>
<li>Assegurar a neutralidade concorrencial na aplicação do direito da concorrência e falimentar;</li>
<li>Manter a neutralidade concorrencial no ambiente regulatório;</li>
<li>Estabelecer condições abertas, justas, não discriminatórias e transparentes nos processos licitatórios;</li>
<li>Evitar oferecer vantagens que distorçam a concorrência e seletivamente beneficiem algumas empresas em detrimento de outras (e.g., empréstimos, garantias e subsídios que não observem condições de mercado). Quando isso não puder ser evitado, que ocorra excepcionalmente, de forma transparente, proporcional e periodicamente revisada;</li>
<li>Limitar que a compensação por qualquer obrigação de serviço público destinada a uma empresa seja apropriada e proporcional ao valor dos serviços; e</li>
<li>Adotar regras de estrutura e governança para empresas estatais que não lhes confiram uma vantagem competitiva indevida.</li>
</ul>
O Brasil aderiu à Recomendação no mesmo momento de sua adoção, em maio de 2021. Isso representa uma excelente oportunidade para se avançar na sedimentação da neutralidade concorrencial no país. Essa questão ganha ainda mais relevância ao se tomar a infraestrutura. Tradicionalmente constituídos por monopólios estatais, os setores da infraestrutura têm passado nos últimos anos por um processo de abertura ao mercado, ainda que em ritmos distintos de acordo com o segmento considerado. Muitas vezes, mantêm-se competindo lado a lado empresas estatais e privadas.
Garantir um mercado concorrencialmente neutro é, portanto, indispensável para que os benefícios da concorrência possam ser efetivamente materializados, assegurando que os consumidores tenham acesso a produtos e serviços mais baratos, de melhor qualidade e com maior variedade.
Por um lado, o direito da concorrência brasileiro aplica-se a empresas privadas e estatais indistintamente <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Diversos precedentes do Cade ilustram que seu enforcement é de fato neutro, como a condenação da Petrobras no caso Gimini <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>; o TCC firmado pela ECT em 2019 <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>; os TCCs celebrados pela Petrobras visando ao desinvestimento de ativos no mercado de refino de petróleo e de gás natural <a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>; e diversos atos de concentração envolvendo estatais <a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Por outro lado, no que se refere ao ambiente regulatório mais amplamente considerado, ainda se observa uma disparidade substancial entre agentes privados e estatais, com regras que ora beneficiam (e.g., benefícios tributários) ora oneram (e.g., obrigatoriedade de contratação por meio de licitação pública) essas últimas. A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13303.htm">Lei 13.303/2016</a> trouxe inovações interessantes na busca de uma maior aproximação entre aqueles atores. Exemplo disso são as hipóteses de inaplicabilidade do regime licitatório (artigo 28, §3º), reconhecidas inclusive pela OCDE como importantes para conferir mais flexibilidade para as estatais competirem no mercado <a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Ademais, também se constata a existência de modelos regulatórios distintos para empresas privadas concorrentes. É o caso, por exemplo, dos contratos de concessão de aeroportos, os quais foram evoluindo ao longo da última década (sete rodadas). Atualmente, há aeroportos concorrentes submetidos a regras diversas, como aquelas referentes à regulação tarifária. O mesmo se pode observar entre terminais portuários privados e terminais arrendados em portos públicos, os quais também estão submetidos a uma série de regras diferentes (por exemplo, obrigatoriedade ou não de contratação de trabalhadores por meio do OGMO).
Tais exemplos ilustram que ainda há bastante espaço para se avançar na seara da neutralidade concorrencial no Brasil. Os diversos setores de infraestrutura constituem um terreno fértil para tal exercício, sobretudo considerando as iniciativas atualmente em curso para o aperfeiçoamento desses mercados. Ao se elaborar as políticas públicas, é preciso ter em mente que não há como se pensar na abertura dos mercados à concorrência com a manutenção de privilégios, seja a atores públicos ou privados. Igualmente importante é a revisão de modelos e regras passadas, devendo-se buscar eliminar distorções que, ainda que justificadas em outro momento histórico e econômico, hoje não mais encontram razão para existir.
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As opiniões expostas neste texto são de responsabilidade exclusiva do seu autor e não refletem necessariamente as visões das organizações às quais ele se encontra vinculado.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Trata-se de instrumento normativo não vinculante (soft law) que representa um compromisso político relativo a princípios, ensejando uma expectativa de que seus aderentes se esforçarão ao máximo para sua implementação.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0462">https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0462</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> De acordo com o artigo 31 da Lei nº 12.529/2011, “esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal”.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Processo Administrativo nº 08012.011881/2007-41.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Processo Administrativo nº 08700.003188/2018-08.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Requerimento nº 08700.002715/2019-30 e Requerimento nº 08700.003136/2019-12.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Por exemplo, Ato de Concentração nº 08700.005775/2013-19 (OGX/Petrobras), Ato de Concentração nº 08700.004163/2017-32 (Petromex/Petrobras) e, recentemente, Ato de Concentração nº 08700.004139/2022-61 (Petrobras/Ibiritermo).
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> OECD (2020), OECD Review of the Corporate Governance of State-Owned Enterprises: Brazil. Disponível em: <a href="https://www.oecd.org/corporate/SOE-Review-Brazil.pdf">https://www.oecd.org/corporate/SOE-Review-Brazil.pdf</a>.

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JOTA

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