As imagens dantescas do último domingo (8) entrarão para a história do país como mais um episódio lamentável dos tempos assustadores que vivemos. Quando nos preocupávamos com a capacidade de o novo governo promover uma agenda de políticas públicas, terroristas violaram palácios em Brasília, depredando patrimônios nacionais com a conivência da Polícia Militar do Distrito Federal, mantendo-nos atados a um passado que não conseguimos superar.
Se é difícil no calor dos acontecimentos reconstruir os fatos que nos trouxeram a essa situação, podemos apontar três componentes que se somam ao contexto atual e interferem nos acontecimentos.
O primeiro tem a ver com o problema clássico dos limites da tolerância contra ações totalitárias (e, portanto, intolerantes), o segundo com a organização da Polícia Militar no país e o terceiro a organização da rede de fake news e de mobilização da extrema direita.
Desde a eleição de 2022, vemos os bolsonaristas agindo de maneira absolutamente condenável moral e criminalmente, cujo ápice foi atingido no último domingo. Estas pessoas estão movidas, dentre várias causas, pelo entendimento de que os próprios órgãos de justiça estão ultrapassando os limites democráticos de um Estado de Direito. Invertem o raciocínio, dizendo-se perseguidos em seu direito de expressão, mas são eles a pedir intervenção militar, fechamento das instituições democráticas etc. É uma pauta claramente totalitária e, portanto, antidemocrática. Como então lidar com intolerância? Até onde ser complacente?
O dilema proposto por K. Popper (1945) serve bem para retratar a situação do país atual. O regime democrático tem como peça essencial a tolerância à divergência de opiniões e ao direito de livre expressão e manifestação. A garantia destes direitos se dá pela tolerância a ideias divergentes das nossas e nenhuma minoria poderia sucumbir à maioria.
Porém, o problema se coloca quando há pessoas dispostas a utilizar este direito para agir de forma intolerante, pregando ideias totalitárias, por exemplo. Em nome de seu direito de expressão, proferem discursos de ódio contra o diferente ou um outro grupo específico, em nome de uma maioria que o apoiaria. Surge assim a pergunta: como os tolerantes estabelecem o limite até onde aceitarão as manifestações dos intolerantes e ainda assim garantem os direitos de livre expressão? A situação só se torna ainda mais complexa quando estes intolerantes mobilizam o próprio discurso do direito à manifestação que lhes seria tolhido a cada repreensão de seus atos ou quando estão dispostos a ações violentas em nome deste direito. Tudo isto vem acontecendo no país e esteve presente em 8 de janeiro.
A situação é paradoxal: a perpetuação de atos intolerantes autorizados pelos tolerantes levariam a democracia ao seu colapso se não encerrados, o que consequentemente terminaria com a própria tolerância. Então, algo precisa ser feito antes que o sistema se autodestrua. Como solução para este paradoxo, o próprio Popper propôs que as filosofias intolerantes fossem combatidas tanto pelo meio de ideias opostas e do debate racional e público destas, até por atos de repressão que inibissem ações consideradas inadmissíveis para a manutenção do regime democrático.
No caso brasileiro, as fake news e as redes sociais utilizadas por apoiadores destes movimentos, cujas ações deste domingo vinham sendo gestadas nos acampamentos em frente aos quartéis em todo o país, dificultam sobremaneira o combate racional e público de argumentos. As ideias circulam em meios restritos em que teorias conspiratórias e afirmações sem respaldo em fatos concretos estão longe dos olhos da opinião pública. Acabam por inflamar os intolerantes e a amalgamar ainda mais o movimento em torno de uma ideia de opressão por aqueles que não permitem que suas ideias continuem a serem expressas. Resta, assim, a repressão. Esta deve ser feita dentro da lei, evidentemente, e inibir a propagação destas ideias.
Porém, esta capacidade de punição nos conduz ao outro elemento presente no ambiente político-institucional brasileiro. Nas imagens veiculadas dos episódios lamentáveis, não há a menor dúvida a respeito da conivência da Polícia Militar do Distrito Federal em relação às manifestações que se organizaram na cidade. Entendo que as ações da polícia só são estas porque sua ideologia está de acordo com a dos terroristas. Não agem como órgãos de Estado; talvez nem como de governo. Não é preciso ir longe para se lembrar de ações de polícias militares ao redor do país contra manifestantes com pautas diferentes e a forma como as PMs agiram nestas situações. Alguém sabe de PM que tira foto com manifestante quando são professores de escola pública a ocupar as ruas, por exemplo? O Brasil não soube se livrar de sua herança autoritária-militar e as Polícias Militares são o exemplo mais evidente desta situação e da ideologia que move parcela da corporação.
A conivência não é só da polícia, neste caso, mas dos comandantes civis nos cargos de governador do Distrito Federal e da Secretaria de Segurança Pública. Se prevaricaram, é preciso investigar. Mas não era preciso que um sistema de inteligência antecipasse a chegada dos muitos ônibus à capital para prever que haveria muita gente na cidade e as redes sociais já davam informações sobre a disposição à violência destas pessoas.
Era bastante possível antecipar a manifestação se formando, ainda mais quando seus indícios já estavam presentes no ato de diplomação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou quando consideramos a disposição de tanta gente em acampar em frente aos quartéis por tanto tempo. Quem sustenta estas pessoas? A dissociação cognitiva destes manifestantes era facilmente detectável – como quando um vídeo de uma manifestante no final de domingo dizia ter “ido em paz se manifestar”, mas que “não sobrou nada” –, o que deveria aumentar ainda mais o estado de atenção das forças de segurança. O que se viu foram policiais escoltando os manifestantes que se dirigiam aos palácios para depredá-los. O que esses policiais esperavam?
E é aqui que entra o terceiro componente que dificulta a avaliação sobre quais serão os desdobramentos do que presenciamos no domingo. As redes que mantiveram essas pessoas mobilizadas atenderam a anseios que não têm correspondência com a realidade. Suspeitam dos resultados das eleições somente porque não concordam com o resultado. Não há nenhuma evidência que os ampare.
E assim foi desde antes da eleição de Jair Bolsonaro em 2018, quando estas redes mostraram se alimentar de informações completamente desconexas com o mundo real. Acreditam em teorias conspiratórias, comemoram atos que não ocorreram, agem de maneiras contraditórias e por aí segue, tudo em nome não se sabe bem do que, mas parece ser uma luta contra o comunismo, em defesa da pátria e da família – seja lá o que isso signifique de fato. Enquanto houver financiamento, liderança e um mínimo de organização desta rede de informações, estaremos sujeitos a episódios como o do final de semana, se as estruturas de combate ao crime continuarem a atuar movidas pelas preferências ideológicas de seus integrantes e não pelo seu papel institucional estabelecido.
Em suma, é preciso que a lei seja aplicada. Não se trata aqui de querer vingança, nem de estabelecer quem deve receber qual punição – erros já comentados aqui em outro texto a respeito de Lula e a Lava Jato. Tudo isso cabe à Justiça. E se a legislação não estiver de acordo com os anseios da população diante da gravidade dos episódios, que os representantes no Congresso proponham novas regras e que estas sejam discutidas.
Há os manifestantes, os mobilizadores, os financiadores, os coniventes e os prevaricadores. Ao menos estes precisam ser investigados e, com isso, dar uma resposta à sociedade. Mas, mais de fundo, enquanto estas redes formadas por pessoas que vivenciam um mundo conspiratório permanecerem ativas com financiadores dispostos a mobilizá-las, estaremos sujeitos a episódios similares. Não se sabe o que será preciso para que estas pessoas saiam do mundo da Terra plana e voltem à realidade – possivelmente, uma nova mentira que acalme suas mentes e corações. Que seja. Mas sem isso, com disposição, recursos e alguma liderança, poderemos presenciar outros episódios lamentáveis em um futuro próximo. É preciso atuar antes que seja tarde.