Com o início do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, a expectativa é que o presidencialismo de coalizão volte a operar mais próximo ao modelo que ficou consagrado pelas pesquisas em ciência política. Teoria desenvolvida no país que explica o funcionamento de sistemas presidencialistas multipartidários, o conceito é amplamente conhecido e foi muito debatido antes das eleições de 2018 e agora volta a servir como explicação das ações políticas no país. Porém, restam dúvidas se as condições estabelecidas neste início de governo permitem que o modelo volte a funcionar exatamente da mesma maneira.
A concepção básica do funcionamento do sistema presidencial multipartidário parte da evidência de que o chefe do Executivo dificilmente verá seu partido ocupar a maioria de assentos no Legislativo e, consequentemente, dar-lhe capacidade de implementar uma agenda de políticas públicas. Em um sistema multipartidário, o Legislativo seria fracionado em diversas legendas de tal maneira que o caminho de a Presidência conseguir apoio parlamentar para seus projetos seria: 1) negociando caso a caso; 2) partilhando do poder decisório com outros partidos.
Podemos chamar o primeiro modelo de conflitivo, em que os interesses do Legislativo e do Executivo estariam em constante embate e acordos gerais e estáveis por algum período de tempo não seriam possíveis. Já o segundo representa uma característica fundamental do presidencialismo de coalizão, em que um grupo de partidos divide com a legenda que ocupa a Presidência da República a formação do Executivo e, assim, a responsabilidade pelas políticas a serem implementadas. Neste sentido, se aproximaria do funcionamento de um sistema parlamentarista.
Durante os dois governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e os dois primeiros governos Lula (2003-2010), esse segundo modelo funcionou de maneira plena. Mesmo considerando que entre eles os acordos com o Legislativo não fossem idênticos – por exemplo, as coalizões nos governos petistas foram muito maiores do que no governo tucano –, é possível dizer que nestes quatro governos o modelo funcionou de maneira exemplar.
No primeiro governo Dilma, o modelo ainda funcionava, mas as manifestações populares a partir de 2013, a dificuldade em lidar com o próprio partido e com o parlamento já mostravam um funcionamento menos estável, atingindo o ápice com o próprio impeachment da presidenta. O governo Temer, em sua curta duração, tem no caso Joesley, em 2017, um marco do enfraquecimento do Executivo e da mudança de foco, que deixa de voltar-se para uma agenda política específica (como a “Ponte para o futuro”) ou mesmo a de buscar viabilizar-se como candidato a reeleição em 2018.
A insatisfação popular ganha corpo e permite a eleição de Jair Bolsonaro sob a promessa de que o modelo não se repetiria. Os acordos entre siglas passaram a ser vistos como negociatas, como razões para acordos espúrios, para ilegalidades de diversas ordens. Prometendo moralizar o sistema, o ex-capitão desfaz o funcionamento típico da coalizão. Porém, acaba enredado pelo Legislativo, que, na prática, torna-se o executor das principais decisões ao longo do seu governo, como o valor do auxílio emergencial, a compra de vacinas, reforma da Previdência, entre outras medidas. O abandono do modelo significou o abandono da Política também – essa com “p” maiúsculo, que implica em negociar e estabelecer acordos.
A causa desta mudança de postura pode ser diversa: é possível que Bolsonaro nunca tenha entendido de fato como as relações entre os Poderes funcionavam, mesmo tendo passado longo tempo como membro do parlamento – e as declarações de que “ser presidente dava muito trabalho” e de que uma vez encaminhado o projeto ao Legislativo a Presidência “já tinha feito a sua parte” sugerem este entendimento; os inúmeros pedidos de impeachment e de investigações de atos seus e de seus filhos em diversas situações criaram um desequilíbrio de forças em que o Legislativo se armava de instrumentos para coagir o presidente e eventualmente obter melhores recursos de barganha; ou até porque as mudanças nas regras do orçamento, que pavimentam o surgimento do orçamento secreto, constrangiam uma ação mais firme do Executivo diante do parlamento nacional. O fato que se extrai deste mandato é que o Legislativo termina o ano de 2022 com muito mais poderes do que teve ao longo das décadas passadas.
Nesta direção, a reeleição de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG) como presidentes da Câmara e do Senado, respectivamente, criam um ambiente de certa manutenção da força conseguida durante o governo anterior. O parlamento conquistou muita liberdade de atuação, lícita ou não, ao longo deste período. A votação recorde de Lira pode servir como um indício desta disposição.
Se esta interpretação estiver correta, é preciso observar com atenção como Lula conseguirá formar sua base de apoio no Congresso. A discussão em torno de qual será o tamanho dessa coalizão é importante, mas não se pode esquecer do próprio gerenciamento dela. A despeito das disposições ideológicas dos parlamentares que a comporão, uma fração importante trará na memória um funcionamento do Congresso bastante diferente daquele que Lula conheceu e praticou em seus dois mandatos anteriores.
A reeleição de Lira e Pacheco é um indício, inclusive, de que Lula não tinha condições de apresentar uma liderança que lhe fosse mais simpática, que estivesse mais próxima, e teve de aceitar seus nomes diante de alternativas piores, como Rogério Marinho (PL-RN), que disputou a presidência do Senado com chances reais de vitória. Tudo isto nos sugere que haverá dificuldades bastante significativas na condução dos acordos da coalizão, limitando bastante as políticas que serão possíveis de serem encaminhadas ao Congresso.
Ou seja, se consideramos que a experiência de Lula é um ativo importante ao longo deste mandato, o governo inicia de maneira drasticamente diferente do que foi a sua experiência 20 anos atrás. Será preciso muita habilidade, paciência e negociações para encontrar uma forma de implementar as ações que julga relevantes neste terceiro mandato. A divergência inicial com o Congresso não será somente ideológica, como já se falou, mas também operacional.