
Após a eleição de domingo (30), diversas dúvidas estão colocadas a respeito de como serão estes dois últimos meses de governo Jair Bolsonaro e também sobre como será o novo governo que se iniciará em 1º de janeiro. Considerando um ambiente difícil após uma eleição dividida, seguida de silêncio sepulcral do presidente em relação ao resultado do segundo turno, permitindo que teorias conspiratórias se transformem em atos de violência e de insurreição, outros questionamentos importantes ainda merecem atenção e reflexão.
A primeira dúvida é quase operacional: como será a transição para o novo governo? O atual presidente não parece disposto a tornar o processo tranquilo. A legislação coloca certos parâmetros, como o acesso à informação, mas que na prática podem ser dificultados, ainda que sejam cumpridos. Funcionários designados podem se licenciar por motivos diversos, arquivos podem se “perder”, computadores podem se apagar, dentre outras conhecidas práticas de boicote em períodos de transição em contextos acirrados como este. Dificilmente observaremos comportamento como da equipe de FHC em 2002. Se confirmado, este cenário dificultará o início do próximo governo, mas possivelmente servirá mais para reforçar o comportamento de mau perdedor do que comprometer qualquer ação da nova administração.
Outro questionamento importante está em avaliar como os setores derrotados se comportarão. Uma ampla rede que abarca um contingente populacional mobilizado, disposto a ir às ruas e com uma visão de mundo bastante específica apoiou o governo Bolsonaro desde antes de 2018 e manteve-se ativo, como se em campanha estivesse, ao longo de seu mandato. O que será feito dessa rede? Quem a controlará e em nome do que ela agirá? Sem dúvida, tornou-se um ativo importante de atuação política no contexto atual e fará oposição ferrenha ao novo governo.
Como um reflexo deste movimento que apoiou o governo que se encerra, um eleitorado de direita capaz de se reconhecer como tal e de mobilizar uma massa grande de votos está organizado. É necessário atentar-se para a sua consequência sobre o sistema partidário. Devem ocorrer reorganizações dos partidos à direita no sentido de conseguir se tornar uma referência para essas pessoas.
Partidos como Republicanos, União Brasil, PL e PP são candidatos a ocupar este espaço a partir do resultado das eleições 2022. Hoje, seguem Bolsonaro, mas o fato de não ocupar mais um cargo eletivo criará uma oportunidade para que outros atores políticos se aproveitem desse contexto. Por outro lado, sem a unidade de um líder identificado claramente, pode haver fraturas e divisão que a desarticule em alguma medida.
A dúvida mais geral e talvez a mais importante se volta à compreensão de como as alianças no segundo turno se transformarão em um governo. O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, sinalizou em seu primeiro discurso que este não será um governo do PT, mas um governo democrático. Como isto se dará na prática? Em princípio, pela nomeação de ministros e buscando apoio de partidos que normalmente não fariam parte de seu governo. Simone Tebet é um nome óbvio neste sentido.
Ao contar com o apoio de ampla gama do cenário político, ataca dois problemas: o primeiro é o da governabilidade e da retomada do protagonismo do Executivo. Ao longo do governo Bolsonaro, a Presidência da República se viu quase como refém do Legislativo, sem capacidade de implementar qualquer agenda propositiva que já não fosse prioridade do Congresso Nacional. O segundo problema é restabelecer as fronteiras do que é considerado democrático no país, deixando na oposição posições extremas, tanto à esquerda como à direita.
Porém, este último desafio é dos mais difíceis. Pois ao mesmo tempo em que a habilidade política de Lula o cacifa para esta tarefa, é exatamente a crítica aos seus governos anteriores que alimenta esta oposição frenética que tomou conta do país. A animosidade à sua imagem é tamanha que a população em 2018 e em 2022 aceitou ultrapassar os limites do tolerável no jogo democrático, elegendo alguém que rompe com valores civilizatórios em nome de uma moralidade acrítica quando se trata de avaliar o próprio umbigo.
Ainda que a aproximação com as lideranças que deram suporte a Bolsonaro, como líderes evangélicos, por exemplo, possa servir como pontes suficientes para restabelecer essa ordem democrática no país, a animosidade ainda perdurará por longo tempo e poderá afrontá-lo em eventuais revezes que Lula tenha de enfrentar. Parece haver pouco espaço para erros, neste sentido. A disposição ao diálogo e à composição terão de ser enormes neste momento para estabelecer o limite de atuação de uma oposição saudável, necessária, mas que respeite os limites do Estado democrático de Direito no país.
Há eleitos que ocupam seus cargos exatamente por terem se aproveitado da extrapolação destes limites, mas que agora precisarão encontrar algum espaço para lidar com seu eleitorado sob novas regras e transmitir a eles a importância e os perigos de uma nova ruptura. Este será o maior desafio de um novo governo e seu principal legado decorrerá de seu sucesso nessa empreitada.