Crise Fiscal

O drama de um governo ‘com-teto’

Pressão por gastos põe em xeque a credibilidade do ordenamento jurídico

Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

A pandemia e o agravamento da crise econômica não param de gerar incertezas, dificuldades e transtornos para a vida das pessoas, para a economia e também para o mundo jurídico, que vive com normas sendo alteradas o tempo todo, cheio de adaptações e repleto de incertezas.

Além das excepcionalidades já aprovadas nas normas de responsabilidade fiscal, agora coloca-se em xeque a viabilidade e conveniência das normas constitucionais, especialmente as relacionadas ao teto de gastos. A bem da verdade, não é de hoje, pois desde que implantadas pela emenda constitucional 95 (EC 95), as restrições aos gastos sempre foram objeto de críticas.

Desde que o regime de gestão fiscal responsável foi clara e expressamente implantado com a Lei de Responsabilidade Fiscal, atingir e manter o equilíbrio das contas públicas tem sido um permanente desafio, especialmente com o agravamento da crise econômica da última década.

Frear o consumo, limitar os gastos, são tarefas das mais difíceis, às vezes parecem beirar o impossível no âmbito do setor público. As necessidades são muitas, crescentes, as pressões são enormes, especialmente em um Estado Democrático de Direito que exige o fiel cumprimento da Constituição, com a efetiva garantia dos direitos fundamentais, o respeito à separação de poderes e à autonomia dos entes federados, obrigando uma negociação em que os atores nem sempre, ou raramente, agem em regime de cooperação.

Particularmente em períodos pré-eleitorais, a pressão por gastos aumenta ainda mais, mormente em um federalismo que se mostra mais dependente e competitivo do que cooperativo.

A Lei de Responsabilidade Fiscal estabeleceu limites rígidos, e, enquanto o país esteve em crescimento, as dificuldades para obedecê-los não se mostraram intransponíveis. Mas foi só a crise chegar, o cobertor ficar mais curto, e os problemas começaram a aparecer. Contabilidade criativa, pedaladas e uma série de alternativas surgiram para contornar os limites.

Chegou-se ao ponto de serem novamente impostas limitações, dessa vez por emenda constitucional, instituindo o chamado “teto de gastos”, materializado na EC 95, de 2016, que instituiu o “Novo Regime Fiscal”. Mas aí veio a pandemia, entramos em regime de calamidade, e a flexibilização emergencial tornou-se inevitável.

E o “teto de gastos”…o que era para ser uma garantia para o equilíbrio das contas públicas e uma barreira contra irresponsabilidade fiscal, passou a ser um obstáculo a ser transposto a qualquer custo – e furar o teto parece ter se transformado em uma meta a ser alcançada.

Ter um limite para gastos e ainda reduzir as despesas de uma forma geral, em razão da crise econômica e da queda da arrecadação, exige medidas duras e escolhas trágicas, o que parece ser incompatível com a atividade política. A multiplicidade de atores e interesses envolvidos inviabiliza ações solidárias, cooperativas e a busca do consenso. Sobra a competição e a guerra fratricida, em que cada um procura fazer prevalecer seus interesses acima de tudo e todos.

A tendência ao crescimento dos gastos públicos é fato já conhecido dos estudiosos de finanças públicas, deu origem à chamada “Lei de Wagner”, do economista alemão Adolph Wagner, que há mais de um século já identificou o fenômeno. E até hoje são imensas as dificuldades em manter o equilíbrio das contas públicas pela via da contenção das despesas.

A grande parte das despesas públicas é de difícil redução, por várias razões. Salários de servidores são garantidos por lei, bem como benefícios, que incluem aposentadorias e pensões, e perduram por longo tempo. As despesas ordinárias de manutenção e funcionamento da máquina pública, como água, energia, limpeza, material de consumo e tantas outras são imprescindíveis, não há como deixar de realizá-las e a margem de redução é sempre pequena. Ademais, as políticas públicas precisam, para se viabilizar, de contratos administrativos cujos prazos são muitas vezes de longa duração. Obras de infraestrutura necessárias levam anos para serem concluídas, e paralisá-las só traz mais prejuízos.

Por isso não é simples, ainda que teoricamente adequado, “rebaixar o piso” ao invés de “furar o teto”, como tem sido defendido[1], com muitas medidas bastante coerentes, e que devem ser levadas em consideração e implementadas tanto quanto possível.

E nem sempre é fácil – no mais das vezes, tão difícil quanto ou até mais, principalmente em períodos de crise econômica –, conseguir fazer o equilíbrio ser alcançado pelo outro lado, com o crescimento da atividade econômica e, por via de consequência, do aumento das receitas públicas.

Conduzir a administração pública com eficiência para fazer com que o Estado cumpra seus objetivos fundamentais exige a superação de muitos obstáculos de diversas naturezas, como os econômicos e de gestão já referidos.

Deixando de lado as análises sob o ponto de vista econômico, e passando para o âmbito jurídico, o que importa destacar a partir desses fatos é a necessidade de estabilidade do ordenamento jurídico. Segurança jurídica é fundamental, verdadeira razão de ser da existência do Direito.

Quando aprovado o teto de gastos, muitos duvidaram de sua eficácia. Não deixavam de ser velhas regras em nova roupagem e maior força jurídica, por serem veiculadas por norma de estatura constitucional. Deixar de cumprir o teto é dar razão aos que nele nunca confiaram, e compromete toda a credibilidade do governo e principalmente do ordenamento jurídico, que, por sinal, vem sendo vilipendiado com indesejável frequência, em uma sequência de atos, fatos e decisões que afrontam diretamente os textos legais, e perpetradas por todos os Poderes.

O “novo regime fiscal” imposto pela EC 95, que instituiu o chamado “teto de gastos”, previu, em síntese, limites para gastos das chamdas “despesas primárias” no âmbito dos três poderes e órgãos independentes, de modo a impedir o aumento real, “congelando” os gastos por vinte anos.

Previa exceções, como por exemplo a abertura de créditos extraordinários para atender “despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública” (ADCT, art. 107, § 6º, II). E a calamidade pública apareceu com a pandemia decorrente do coronavírus (Covid-19).

Pandemia que resultou em um mais um “regime extraordinário fiscal” implementado pela emenda constitucional 106, de 2020 (EC 106), acrescentando flexibilizações à rigidez vigente para as regras fiscais, ainda que por período determinado, enquanto vigente a situação de calamidade pública.

Resultou na situação atual, que passou de um regime fiscal com razoável rigidez e estabilidade, para um regime fiscal “especial”, e chegar no atual regime fiscal, que pode ser melhor definido como “caótico”.

Quem sai perdendo com isso, além do cidadão, evidentemente, é o ordenamento jurídico, que perde sua credibilidade a cada dia, deixando de cumprir as funções que justificam sua existência.

Por essas razões é que, indepentendemente das justificativas e consequências econômicas e sociais, é fundamental em momentos como esse agir com cautela e serenidade, sempre tendo em vista que preservar íntegro o ordenamento jurídico e garantir a segurança e higidez das normas e instituições é prioridade.

Há que se verificar as possibilidades que o ordenamento jurídico oferece para solucionar os problemas, sem que com isso seja necessário vilipendiá-lo, com interpretações “criativas” que apenas “maquiam” o descumprimento das normas.

Como bem colocado em texto recente produzido pela IFI (Instituição Fiscal Independente do Senado Federal), nesses momentos “o zelo pelas regras fiscais torna-se ainda mais relevante [devendo-se] evitar que sejam distorcidas por práticas que, no mundo todo, ficaram conhecidas como contabilidade criativa e que voltam a aparecer no noticiário econômico nacional”, o que prejudica em muito as expectativas dos agentes “quanto à capacidade de o governo manter um caminho sustentável para as contas públicas” e tende a elevar o custo do financiamento do déficit público”.[2]

Se é necessário arrumar a casa, não vão conseguir fazê-lo danificando o telhado. Mesmo que o façam de forma imperceptível, pois na primeira chuva os furos vão deixar formar as goteiras e o prejuízo será maior.

Veem-se debates variados sobre os muitos instrumentos que poderiam ser utilizados para gerenciar as contas públicas neste período excepcional, e é necessário fazê-lo corretamente. Boas ferramentas, se mal utilizadas, não vão consertar defeitos, e podem agravá-los.

Os créditos extraordinários, por exemplo, há muito presentes no ordenamento jurídico (Lei 4320/1964, arts. 41, III e 44), referidos pelo ADCT, na nova redação dada pela EC 95, permite a abertura de espaço orçamentário para “despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes (…) calamidade pública”. Isto não significa uma “carta branca” para gastos sem lastro, e limitadas a despesas imprevisíveis e urgentes. Perfeitamente razoável e legal admitir seu uso, pois está-se em situação de calamidade pública reconhecida, imprevisível e que tem gerado despesas claramente caracterizáveis como urgentes. Neste momento. Mas não futuramente, uma vez que, a partir de agora, dados os fatos já presenciados, não há como se estender a imprevisibilidade e a urgência, que perdem sua natureza a partir do momento em que já é de conhecimento público a situação e a possível extensão de seus efeitos no tempo.

Autorizações excepcionais, como as previstas pelo “Orçamento de guerra” (EC 106), já referido na coluna publicada no último dia 16 de abril (“O inimigo mora ao lado: ‘orçamento de guerra’ exige controle e responsabilidade”[3]), que em seu art. 3º prevê a possibilidade de gastos sem algumas das limitações inerentes ao regime de gestão fiscal responsável, desde que para “o propósito exclusivo de enfrentar a calamidade e suas consequências sociais e econômicas”, também tem restrições, como não implicar em despesa permanente, e ter sua “vigência e efeitos restritos à sua duração [da calamidade pública]”. Não configura, portanto, uma “carta branca” para gastos de qualquer natureza, para qualquer finalidade e por qualquer período, como muitos chegaram a cogitar.[4]

A disputa pelos recursos é constante e permanente, deve ser vista com naturalidade, bem como o interesse em gastar mais. Mas é sempre bom relembrar que gastar muito não é gastar bem[5], e ainda que o teto de gastos foi instituído com a intenção de pressionar a administração pública e realizar as “escolhas trágicas” com maior transparência, e não para descobrir mecanismos de contorná-lo, e esse objetivo deve permanecer intacto.

O fato é que a regra a ser seguida continua a mesma, e ainda não adequadamente aplicada: a solução para as despesas públicas precisa deixar de se concentrar em gastar mais ou menos e focar em gastar melhor. Já há muito tempo sabe-se que é preciso concentrar as energias e as discussões na melhoria do gasto público, e menos na quantidade do gasto público.

Para todas as famílias, ter um teto é um sonho e garantia de tranquilidade e dias melhores. Já para o Estado, parece que o teto está mais próximo de um pesadelo do que um sonho, e está tirando o sono e a tranquilidade dos gestores, por insistirem em resolver apenas os problemas de hoje sem pensar no de amanhã.

 


[1] “É preciso rebaixar o piso de gastos para que o teto não colapse”, Folha de S. Paulo, 16.8.2020.

[2] Felipe Salto, Daniel Couri e Josué Pellegrini, Considerações sobre o teto de gastos da União – Comentários da IFI (Instituição Fiscal Independente) n. 9, de 19 de agosto de 2020.

[3] Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/o-inimigo-mora-ao-lado-orcamento-de-guerra-exige-controle-e-responsabilidade-16042020>.

[4] Não permitem incluir, por exemplo, boa parte dos investimentos em infraestrutura, despesas temporárias de capital, e outras que sejam previsíveis ou não tenham relação direta com a calamidade, como bem exposto no já citado texto da IFI.

[5] Como bem exposto recentemente por Marcos Lisboa em entrevista à revista Crusoé (“Gastar muito não é gastar bem”, em 14.8.2020)