
Recentemente foi publicada a “Lei dos Criptoativos” (Lei 14.478/2022), que “dispõe sobre diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais”. Surge, assim, o marco regulatório dessa nova era de tecnologias digitais para o setor financeiro, evidenciando a transição para a economia digital. Inicialmente, como de hábito, a norma atinge o setor privado, mas os reflexos no setor público são inevitáveis.
A tecnologia blockchain, as criptomoedas e ativos virtuais em geral, invariavelmente serão aproveitadas para a transformação digital das finanças públicas – e o Direito Financeiro terá que lidar com elas e incorporá-las ao ordenamento jurídico. Compreender esse novo mundo digital é fundamental e o primeiro passo. E é conveniente começar a fazê-lo o quanto antes!
Em essência, o termo blockchain denota uma arquitetura de gerenciamento de dados que tem três características essenciais: a existência de um registro distribuído de dados em rede, a inserção e consulta de dados sem um controle centralizado, e o uso de algoritmos criptográficos para garantir a irrevocabilidade das transações e a segurança da informação.
A primeira característica é o registro distribuído (distributed ledger) de dados em uma rede, em que todos ou alguns participantes detêm cópias mantidas em sincronia.
A redundância do armazenamento pode ser ineficiente, mas esse arranjo é conveniente para a realização de consultas consolidadas em cenários nos quais há grande fragmentação de dados – basta pensar na dificuldade de se mapear bens de indivíduos para fins de execução ou partilha de bens. Sistemas como Sniper e Sibajud dependem de uma série de convênios para troca de informações, e promover a sua interoperabilidade é um desafio.
Em segundo lugar, as transações são verificadas e registradas pela colaboração entre participantes da rede (mecanismo de consenso), permitindo apenas inserções e consultas, mas não alterações ou exclusões.
Assim, não é necessário que um ente central (privado ou público) ateste a veracidade dos dados – em teoria, uma rede descentralizada poderia substituir a gestão de um registro de imóveis por um cartório, a gestão de diplomas pelo Ministério da Educação, ou a infraestrutura de pagamentos gerida pelo Banco Central. No âmbito das finanças públicas, todas ou algumas das informações de sistemas como o SIOP e SIAFI poderiam ser compartilhadas por órgãos e entidades participantes.
A governança da rede é descentralizada e as regras são estabelecidas em programas que determinam previamente o formato dos dados, os tipos de transações e as condições e restrições para sua realização. Essas regras codificadas são denominadas protocolos.
Em terceiro lugar, a utilização de algoritmos criptográficos permite que os dados sejam armazenados de tal forma que qualquer adulteração seja facilmente identificável. O efeito prático é a garantia de que, uma vez inserida, uma transação se torna irrevogável, criando um registro descentralizado imutável, pois o custo computacional de fraudar os dados é impeditivo. Desse modo, as transações são rastreáveis e há certeza matemática da integridade de seu histórico.
A criptografia também é utilizada para o controle do fluxo de dados em “carteiras” (wallters), que funcionam como “cofres digitais” que dependem de chaves criptográficas para uso dos recursos neles mantidos. A depender das regras do jogo, as pessoas “do mundo real” que detêm essas chaves – as proprietárias das carteiras – podem ou não ser identificadas.
Conforme o caso, pode haver uma ou mais organizações gerenciadoras da rede que exijam um cadastro prévio de usuários e requisitos de informações sobre as transações, ao qual a legislação de prevenção à lavagem de dinheiro se refere, respectivamente, como Conheça Seu Cliente (Know Your Client – KYC) e Conheça sua Transação (Know Your Transacion – KYT).
Entretanto, nas redes mais populares, como Bitcoin e Ethereum, não existem essas regras e as transações são realizadas por meio de pseudônimos, o que pode favorecer a prática de ilícitos – como o pagamento de um resgate no sequestro de dados (ranswomware) para uma conta cujo titular é desconhecido, lavagem de dinheiro, ou evasão de divisas em uma versão mais moderna.
A tecnologia blockchain foi concebida para permitir a criação de “carteiras digitais” para transferências internacionais em moedas digitais privadas (as criptomoedas), com resistência à interferência de terceiros, especialmente o Estado.
A plataforma Ethereum oferece suporte ao desenvolvimento de smart contracts, que permite a automação de fluxos mediante regras codificadas em algoritmos, dando origem a novos casos de uso – o que gerou a criação de ativos digitais que refletem relações de dívida (tais como debêntures ou empréstimos em geral) e participação (tais como ações e outros valores mobiliários).
No âmbito das finanças públicas, se tivéssemos uma criptomoeda para arrecadação de tributos, no momento do recolhimento de impostos já poderíamos ter o repasse imediato para os fundos de participação dos Estados e dos municípios, conforme as proporções previstas na Constituição.
Outro avanço importante em direção ao uso dessas ferramentas nas finanças públicas tem ocorrido por meio do BNDES.
O projeto BNDES Token foi fruto do concurso de inovação IdeaLab em 2017, com o objetivo de usar a tecnologia blockchain para permitir a transparência em transações com recursos provenientes do banco.
O BNDES Token foi projetado para ter paridade com o real (seria, assim, uma stablecoin1) e, desse modo, é recebido pelos clientes do banco (tomadores de recursos), que os utilizarão para pagar fornecedores, os quais, por sua vez, poderão apresentar os tokens ao BNDES para fins de resgate, recebendo o valor correspondente em reais. Grosso modo, o BNDES Token seria um cheque endossável que jamais poderia ser descontado pelo primeiro beneficiário.
Com isso, enquanto o BNDES Token não é resgatado, todas as etapas de sua circulação são registradas, com as informações dos beneficiários, como se fosse possível armazenar as impressões digitais de todas as pessoas que algum dia tocaram em uma cédula de dinheiro. Um ponto importante é o de que as regras dos smart contracts restringem a circulação a pessoas previamente cadastradas na rede definida pelo BNDES.
Os experimentos foram realizados em 20192. Posteriormente, a InvestTools, empresa responsável pelo desenvolvimento do BNDES Token, anunciou que uma nova fase do projeto, denominada GOV Token, está em desenvolvimento por uma empresa de seu grupo econômico, a startup Blockchain Studio3.
A ideia do BNDES Token pode ser expandida para a criação de trilhas de auditoria e circulação restrita de valores no âmbito da Administração Pública e em redes de fornecedores do Estado, o que sugere um potencial relevante da tecnologia blockchain para aumento da transparência e controle das finanças públicas.
Em 2020, o TCU divulgou um estudo detalhado sobre oportunidades e riscos da utilização da tecnologia blockchain no setor público4. Em maio de 2022, o TCU anunciou, juntamente com o BNDES, a criação da Rede Blockchain Brasil5. Essa rede poderá servir de plataforma para experimentos entre órgãos e entidades da Administração Pública, organizações da sociedade civil e empresas.
O mundo todo já está atento e se adiantando em matéria de economia digital e novas tecnologias nas finanças públicas.
Em 2018, a OCDE divulgou um estudo sobre o potencial do uso da tecnologia blockchain no setor público6, com exemplos de aplicações no registro de imóveis em Gana e na Suécia, governança em um conselho digital para compreensão da tecnologia nos Emirados Árabes Unidos e na administração tributária na Dinamarca. Em 2022, a Secretaria de Patrimônio da União promoveu um hackathon para o desenvolvimento de soluções blockchain na web3 para os serviços relacionados à gestão do patrimônio da União7.
Vale mencionar também duas iniciativas no contexto da modernização empreendida pelo governo federal nos últimos anos, definidas na Estratégia de Governo Digital 2022-2023 (Decretos 10.332/2020 e 11.260/2022): “disponibilizar, pelo menos, nove conjuntos de dados por meio de soluções de blockchain na administração pública federal, até 2022” (8.3) e “implementar recursos para criação de uma rede blockchain do Governo federal interoperável, com uso de identificação confiável e de algoritmos seguros” (8.4).
Algumas das ideias descritas nesse texto também poderão ser implementadas no âmbito do projeto do Real Digital, atualmente em desenvolvimento pelo Banco Central, que permitirá a programação de transações com a moeda brasileira, tendo como inspiração a rede Ethereum.
Em suma, como já exposto neste mesmo espaço em 20198 e, mais recentemente, em 20229, o Direito Financeiro não só precisa, como já está se adaptando aos novos tempos e às inovações tecnológicas que atingem as finanças públicas, e mostram um caminho sem volta. Nessa linha, o novo marco regulatório dos criptoativos materializa uma etapa importante desse avanço.
Em meio ao frenesi especulativo das criptomoedas, vemos uma inovação relevante que pode ser apropriada pelo Estado brasileiro para auxiliar na sua transformação digital, viabilizando o intercâmbio de dados entre sistemas no setor público, aumentando a transparência das informações e facilitando as atividades de controle, e colocando o Direito Financeiro em um futuro que já se faz presente.
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1 Dada a volatilidade usual dos criptoativos, stablecoins são tokens emitidos com lastro em outros ativos, principalmente moedas fiduciárias, a fim de suas cotações terem maior previsibilidade. (ARNER, Douglas; AUER, Raphael; FROST, Jon. Stablecoins: risks, potential and regulation. BIS Working Papers n. 905, Basel Nov. 2020. Disponível em https://www.bis.org/publ/work905.htm. Acesso em 22 jan. 2022).
2 Para mais informações sobre a memória do projeto, vide: FAGUNDEZ, Fabio Dias. Blockchain no BNDES: Um Estudo De Caso Sobre Inovação Em Um Banco Público. Dissertação (Mestrado Profissional em Administração Pública) – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EBAPE – FGV-RJ). Rio de Janeiro, 2029. Disponível em http://web.bndes.gov.br/bib/jspui/handle/1408/19400. Acesso em 23 jan. 2023.
3 SILVA, Mariana Maria. Solução para rastrear gastos públicos, GOV Token tem novo desenvolvedor. Exame, 6 maio 2022. Disponivel em https://exame.com/future-of-money/cripto-para-rastrear-gastos-publicos-gov-token-tem-novo-desenvolvedor/. Acesso em 23 jan. 2023.
4 TCU. Acórdão 1.613/2020, Plenário, Rel. Min. Aroldo Cedraz. Levantamento com o objetivo de identificar áreas de aplicação de blockchain e de livros-razão distribuídos (Distributed Ledger Technology – DLT) no setor público, seus principais riscos e fatores críticos de sucesso, além dos desafios para o controle, j. 24 jun. 2020. Disponível em https://bit.ly/TCUBlockchain. Acesso em 22 jan. 2023.
5 SECOM TCU. TCU e BNDES lançam Rede Blockchain Brasil e definem próximos passos, 31 maio 2022. Disponível em https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-e-bndes-lancam-rede-blockchain-brasil-e-definem-proximos-passos.htm. Acesso em 22 jan. 2023.
6 BERRYHILL, Jamie; BOURGERY, Théo; HANSON, Angela. Blockchains Unchained: Blockchain Technology and its Use in the Public Sector. OECD Working Papers on Public Governance n. 28. Paris: OCDE, 2018. Disponível em https://dx.doi.org/10.1787/3c32c429-en. Acesso em 22 jan. 2023.
7 GOV.BR. SPU/ME divulga o resultado do Hackathon Web3 – Tokenização do Patrimônio da União. Brasília, 16 dez. 2022. Disponível em https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2022/dezembro/spu-me-divulga-o-resultado-do-hackathon-web3-2013-tokenizacao-do-patrimonio-da-uniao. Acesso em 18 jan. 2023.
8 CONTI, José Mauricio Conti. “Direito Financeiro 4.0: o futuro chegou” (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/direito-financeiro-4-0-o-futuro-chegou-28032019). Site JOTA, em 28 de março de 2019.
9 CONTI, José Mauricio Conti. “Direito Financeiro e Inovação: as finanças públicas precisam se adaptar à ‘Sociedade 5.0’ ” (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/direito-financeiro-e-inovacao-26052022). Site JOTA, em 28 de abril de 2022.