Coluna Fiscal

Efeitos da pandemia nas contas públicas e o papel fiscal do Estado

Adoção de medidas de socorro financeiro deixa exposta falhas nos modelos econômico e fiscal atualmente adotados

Foto: Andréa Rêgo Barros/PCR

Segundo as estimativas do Banco Mundial, constantes do relatório “Global Economic Prospects – June 2020”, o PIB mundial terá uma queda de mais de 5% neste ano de 2020, ao passo que o Brasil sofrerá uma retração de 8% (página 24, capítulo 1).

O referido relatório descreve que: “A Covid-19 provocou um enorme choque mundial, acarretando recessões acentuadas em muitos países. As previsões de referência vislumbram uma contração de 5,2% do PIB global em 2020 – a recessão global mais profunda em décadas”.

Aqui no Brasil, os efeitos fiscais decorrentes da pandemia da Covid-19 também começam a se revelar em números que institutos e órgãos oficiais vêm divulgando.

Os dados negativos que veremos a seguir decorrem da já esperada forte desaceleração econômica, com a consequente queda na arrecadação de tributos, aliada ao aumento de despesas para o enfrentamento da crise sanitária, com destaque para a ampliação de gastos na saúde, prestação de auxílio financeiro para as pessoas consideradas “mais vulneráveis” pertencentes ao mercado informal de emprego, redução da tributação sobre crédito, diferimento no pagamento de tributos, concessão de benefícios fiscais às empresas visando reaquecer a economia e ajuda financeira da União para estados e municípios, seja diretamente pelo repasse de recursos financeiros ou, indiretamente, pela suspensão do pagamento das dívidas.

Conforme recente publicação feita pelo IBGE, em que se considerou este como sendo “o pior momento da história da indústria brasileira”, identificou-se uma queda de 18,8% na atividade industrial brasileira em abril em comparação com o mês anterior, e redução de 27,2% se cotejado com o mesmo mês do ano passado. A partir daí, estima-se uma retração no PIB superior a 10% para o corrente ano de 2020.

Por sua vez, os dados divulgados pelo Tesouro Nacional indicam um déficit fiscal acumulado entre janeiro e abril deste ano no valor de R$ 95,8 bilhões, sendo R$ 92,9 bilhões apenas para o mês de abril, montante justificado pelas medidas adotadas no combate e pelos efeitos da crise Covid-19.

Já a Receita Federal do Brasil identificou, somente para abril de 2020, uma redução na arrecadação de R$ 35,1 bilhões relativa aos diferimentos tributários e de R$ 1,6 bilhão referente à diminuição no IOF-crédito.

Ainda neste mesmo mês, a receita total apresentou redução de R$ 47,3 bilhões (31,9%) em termos reais, frente a abril de 2019. Houve redução real nos principais grupos de receita, com destaque para: IR (- R$ 9,9 bilhões), Cofins (- R$ 10,7 bilhões), PIS/Pasep (- R$ 2,8 bilhões), arrecadação líquida para o RGPS (- R$ 12,1 bilhões), exploração de Recursos Naturais (- R$ 3,4 bilhões) e demais receitas (- R$ 3,8 bilhões).

A receita líquida apresentou redução de R$ 45,5 bilhões (35,6%) em termos reais em relação a abril de 2019. Por sua vez, neste período, as despesas em resposta à crise Covid-19 totalizaram R$ 59,4 bilhões, sendo as principais: a) auxílio emergencial a pessoas em situação de vulnerabilidade; b) despesas adicionais dos ministérios e c) concessão de financiamento para o pagamento da folha salarial (PESE).

É importante registrar que esses números se referem ao mês de abril, quando o auxílio emergencial de três parcelas de R$ 600,00 – destinado aos trabalhadores sem carteira assinada, pessoas de baixa renda e desempregados – ainda não havia sido pago, não estava concretizada a transferência da primeira parcela do socorro financeiro da União a estados e umnicípios no montante total de 60 bilhões de reais, assim como ainda não implementada a suspensão do pagamento das dívidas dos estados e municípios com a União e bancos públicos (cerca de R$ 100 bilhões), que foram autorizadas pela Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020.

Acrescente-se que, recentemente, o BNDES suspendeu até o fim deste ano o pagamento das dívidas de todo os estados e de 44 municípios, que somam R$ 3,9 bilhões.

Cabe ainda lembrar que a União federal já adotou uma série de medidas de natureza tributária a fim de oferecer condições financeiras e “fôlego” para as empresas enfrentarem o difícil período, mas que tem impacto imediato na arrecadação.

Apenas para citar algumas: a Resolução CGSN n° 154/2020 prorrogou as datas de vencimento dos tributos apurados no âmbito do Simples Nacional; a Medida Provisória n° 927/2020 autorizou o diferimento do recolhimento das contribuições ao FGTS; a Portaria PGFN n° 7.821/2020 previu a suspensão dos atos de cobrança da dívida ativa da União pelo prazo de 90 dias; a Medida Provisória n° 932/2020 estabeleceu uma redução de 50%, durante três meses, nas contribuições destinadas às entidades do “Sistema S”; o Decreto n° 10.305/2020 reduziu para zero a alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para as operações de crédito por 90 dias; a Instrução Normativa n° 1.930/2020 da Secretaria da Receita Federal prorrogou por dois meses o prazo para a entrega da declaração do IRPF; o Decreto n° 10.285/2020, ampliado pelo Decreto n° 10.302/2020, reduziu para zero a alíquota do IPI para produtos utilizados na prevenção e tratamento da Covid-19; a Portaria n° 201/2020, do Ministério da Economia, prorrogou os prazos de vencimento de parcelas mensais relativas aos programas de parcelamento administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB) e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN); dentre outros.

Os cofres estaduais, que já não vinham bem mesmo antes da pandemia, também têm sido bastante afetados pela Covid-19, sobretudo com a queda na arrecadação de ICMS e royalties de petróleo.

Em relação ao Rio de Janeiro, para os meses de abril e maio, há uma estimativa de perda de receitas em torno de R$ 1,7 bilhão, montante que pode atingir os R$ 20 bilhões até o fim deste ano. Para Minas Gerais, a estimativa de queda da arrecadação para os meses de abril e maio está na casa dos R$ 3 bilhões. No Rio Grande do Sul, a arrecadação caiu 17,5% em abril. E, em São Paulo, no mesmo mês, a arrecadação de ICMS declinou 19%.

Neste cenário, especialistas preveem que a dívida pública brasileira saltará dos atuais 76% para em torno de 93% do PIB, o que imporá responsabilidade fiscal no controle de gastos por parte do Governo Federal, sobretudo quanto às despesas correntes, almejando o respeito ao teto de gastos, além da busca de novos meios arrecadatórios (aumento ou criação de novos tributos).

Mas o que se percebe, tanto aqui no Brasil, como em diversos outras nações no mundo – em sua grande maioria capitalistas de ideologia liberal – é a adoção de inúmeras medidas de socorro financeiro aos cidadãos e às empresas em geral, sinalizando que a pandemia deixa exposta algumas falhas nos modelos econômico e fiscal atualmente adotados, e que o Estado deverá incorporar outras funções e exercer um novo papel.

Assim que superarmos a pandemia da Covid-19, a tributação deverá ser majorada para que se possa quitar as dívidas hoje contraídas e fornecer bens e serviços que passarão a ser mais intensamente demandados; a sociedade cobrará dos seus governantes a ampliação e universalização de serviços públicos, sobretudo na área da saúde e saneamento básico; a redução das desigualdades socioeconômicas entrará na pauta das políticas públicas, principalmente a partir da experiência advinda dos auxílios financeiros emergenciais concedidos aos cidadãos economicamente mais frágeis, pertencentes ao mercado informal, que até então eram “invisíveis” aos olhos dos governos; e a adoção de políticas econômicas fortes e estruturadas para as indústrias e o setor de serviços será um tópico inafastável do debate pelos governos.

O modelo de Estado de bem-estar social ou “Estado-providência”, tal como adotado no pós-Segunda Guerra Mundial, parece ressurgir com uma nova roupagem como agente fomentador da economia e promotor na área social.

Muito se falou recentemente em “orçamento do guerra” de forma a permitir a realização de despesas urgentes para enfrentamento da pandemia custeadas pelo crédito público, dando ensejo à EC nº 106/2020.

Mas será que, em breve, ouviremos falar em algum novo modelo de “tributação de guerra”, tanto para quitar as dívidas hoje contraídas, como para custear este novo papel que o Estado, inclusive o brasileiro, poderá ser chamado a adotar?