Opinião e Análise

Davi Tangerino

Thamires Maciel Vieira

No último domingo (21) foi exposto pelas TVs espanholas mais um lamentável episódio de racismo que, mais uma vez, massivamente foi cometido contra o jogador brasileiro Vini Jr. Na <a href="https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-espanhol/noticia/2023/05/21/valencia-x-real-madrid-e-interrompido-por-racismo-contra-vinicius-junior.ghtml">partida entre Real Madrid, seu time atual, e Valencia</a>, no estádio de Mestalla, sede do último, o coro da torcida, a reação de Vini Jr e, por fim, sua expulsão de campo, compuseram a perversa cena. 
Desde antes do jogo, porém, segundo vídeos que circulam nas redes, a torcida do Valencia entoava em coro pelas ruas canções com insultos racistas direcionadas ao jogador. 
Propositalmente dissemos que o absurdo foi “exposto” pelas imagens na TV. Não iniciamos com expressões como “o mundo assistiu perplexo” ou semelhantes, uma vez que não é possível que seja motivo de perplexidade algo que tem estado na estrutura mesma de nossas relações sociais e fazeres cotidianos. 
Como bem lembrado pelo professor Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos, “o racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea” (ALMEIDA, 2019, p. 21), ou seja, longe de ser uma questão pontual televisionada como uma revelação, atos como o do último domingo talvez apenas amplifiquem o cotidiano das relações sociais.
Embora claro que as manifestações racistas nos estádios se conectem à realidade mais ampla das estruturas sociais, cabe pontuar alguns elementos que podem potencializar a perversidade do racismo no campo do esporte. Tendo em vista a dimensão também de lazer, paixão e diversão ligada aos eventos esportivos, uma suposta “neutralidade racial” encontraria campo fértil para se dissimular nesse âmbito.  
O já amplamente teorizado conceito de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/racismo">racismo</a> recreativo explica a facilitação dos processos pelos quais aqueles que reproduzem o racismo se recusam a reconhecer suas ações e omissões racistas como tais[1].  
Daí por que também emblemática a pergunta realizada por uma jornalista ao técnico do Real Madrid, Carlo Ancelotti, após o jogo: “O senhor não quer falar sobre futebol?” ao que o técnico de maneira firme responde: “Quero falar do que aconteceu aqui”. 
Se, por um lado, episódios como o do último domingo escancaram a violência racial, também é verdade que uma postura reativa, ainda que precária diante da persistente violência estrutural, pode ser observada. 
E é nesse sentido que se podem localizar as iniciativas do governo brasileiro, desde o presidente a ministros de diversos setores logo em seguida à ocorrência do episódio. Mais especificamente, a declaração do ministro da Justiça, Flávio Dino, sobre a possibilidade de aplicação da lei penal brasileira, como remédio extremo, para punir os agressores. Nesse ponto, podemos refletir, mais uma vez, acerca das possibilidades e limites do direito penal para lidar com tema tão complexo. 
<h3>Crime de racismo e extraterritorialidade penal </h3>
As regras de extraterritorialidade previstas no artigo 7º do Código Penal Brasileiro, definem os crimes que "ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro" e, entre eles estão aqueles que o Brasil se comprometeu, por tratado ou convenção, a reprimir. 
Esse seria o caso do crime de racismo, previsto na Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância promulgada pelo Brasil em janeiro de 2022. 
A convenção obriga os Estados a prevenir, eliminar, proibir e punir todos os atos e manifestações de racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância. Além disso, o Brasil também já havia ratificado, em 1968, a Convenção sobre a Eliminação de todas das formas de Discriminação Racial da ONU. 
No entanto, para que seja possível a aplicação extraterritorial nesses casos, necessária se faz a observação de outros requisitos, por exemplo, que o crime tenha sido cometido contra brasileiro e punível também no país onde foi praticado. 
Ademais, o criminoso precisa entrar no território brasileiro sem que tenha sido previamente preso ou absolvido pelo mesmo crime no país de origem, o que, evidentemente requer que os criminosos tenham sido identificados naquele país. Dessa forma, a lógica parece ser a de aplicação subsidiária da lei brasileira.  
A quase certa inviabilidade de se aplicar, nesse caso, a lei brasileira por tribunal brasileiro, todavia, não obsta que se alcance o mesmo objetivo punitivo: o Tratado de Extradição Brasil-Espanha (Decreto 99.340/1990) prevê a possibilidade de, não sendo possível conceder extradição por ser o extraditando nacional espanhol, “ o indivíduo será processado e julgado no Estado requerido, a pedido do Estado requerente, pelo fato determinante do pedido de extradição, salvo se tal fato não for punível pelas leis do Estado requerido” (artigo III, 1).
Para tanto, seria preciso que o crime fosse punível com pena superior a 1 ano, e que também fosse crime na Espanha. Presentes, portanto, os requisitos gerais. Naturalmente, não seria propriamente aplicação direta da lei brasileira, porém a aquiescência do Estado espanhol de aplicar as regras congêneres espanholas àquele fato sobre o qual o Estado brasileiro pretende fazer incidir o poder punitivo. 
Portanto, em tese, seria possível a aplicação extraterritorial da lei brasileira nesse caso, via indireta, insista-se, ao menos via Justiça espanhola. No entanto, os próprios desdobramentos ao longo da semana, demonstram que tal hipótese poderá ser descartada. Isso porque, além dos importantes atos de apoio ao jogador pela Espanha, as providências tomadas pelas autoridades de futebol daquele país, como, por exemplo, a anulação da expulsão do jogador, há notícia da identificação e detenção de alguns suspeitos pela justiça espanhola. Assim, incidiria, em tese, uma hipótese obstativa de aplicação da lei brasileira, a saber: “quando pelo mesmo fato, a pessoa reclamada esteja sendo ou já tenha sido julgada no Estado requerido” (artigo IV, 1, “b”). 
As naturais dúvidas quanto à eficácia das medidas tomadas pela justiça espanhola ou mesmo os limites da aplicação da lei penal, brasileira ou espanhola no caso podem (e devem) contribuir para o desenvolvimento de mecanismos jurídicos e extrajurídicos aptos a solidificarem pilares verdadeiramente antirracistas. 
A tomada de posição pública, da ministra da Igualdade Racial e do ministro da Justiça, sugerindo acionar-se cooperação internacional para fazer incidir a lei brasileira caso, tudo indica, teria caráter mais simbólico do que efetivo. O simbólico, porém, importa. Representa uma posição do governo sobre racismo, de um lado, e é moeda recorrente no âmbito diplomático, cuja dinâmica é recheada de movimentos simbólicos, como convidar o embaixador estrangeiro a prestar esclarecimentos. Oxalá esse caso seja um turning point na questão racial no esporte, não apenas na Espanha, mas mundialmente, para que nem Vini Jr, nem nenhum outro esportista e tampouco qualquer pessoa negra seja exposta ou precise enfrentar sozinha tamanha brutalidade.
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[1] “O racismo recreativo exemplifica uma manifestação atual da marginalização social em democracias liberais: o racismo sem racistas. Esse conceito designa uma narrativa na qual os que reproduzem o racismo se recusam a reconhecer que suas ações ou omissões podem contribuir para a permanência das disparidades raciais na nossas sociedade [...]Suas várias manifestações tem o mesmo objetivo: preservar e legitimar um sistema de privilégios raciais, o que depende da circulação contínua de estereótipos que representam minorias raciais como pessoas incapazes de atuar na esfera pública.” MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. pp.31 e 32.

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JOTA

Oxalá esse episódio seja um turning point na questão racial no esporte, não apenas na Espanha, mas mundialmente

Caso Vini Jr e extraterritorialidade penal

Oxalá seja o caso Vini Jr um turning point na questão racial no esporte, não apenas na Espanha, mas mundialmente