Maria Virginia Nabuco Amaral Mesquita Nasser
advogada em São Paulo e Doutora em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo, autora de "Lava a Jato: o interesse público entre punitivismo e desgovernança", publicado pela Editora Lumen Juris.
Em continuidade ao texto publicado aqui no JOTA – em que tratamos de alguns dos novos tipos penais e de outros nem tão novidadeiros na Lei no. 14.133/2021 (“Nova Lei de Licitações”)-, seguimos nessa segunda parte centrando agora na qualidade do uso do poder punitivo em sede de licitações e dos contratos por ela regulados. Como já é da triste tradição legislativa penal brasileira, encontram-se três vícios punitivos na nova lei: (i) tipos penais simbólicos; (ii) incremento de penas; e (iii) reconhecimento criminogênico apenas do lado dos particulares, ignorando o Estado como fomentador, por falha de desenhos extra-penais, dos eventos nocivos à concorrência e à probidade no marco da Administração Pública.
Na primeira parte, já discutimos a superposição dos diversos tipos de fraude, inclusive na nova figura do 337-O: “Omitir, modificar ou entregar à Administração Pública levantamento cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com a realidade, em frustração ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, em contratação para a elaboração de projeto básico, projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou em procedimento de manifestação de interesse”.
Quem ler o novo tipo penal ficará com a sensação de que esses eventos são rotineiros na prática de contrações públicas. Garcia-Pablos de Molina, em seu festejado curso de criminologia, propôs alguns filtros para que uma conduta fosse – do ponto de vista empírico, sociológico – considerada criminosa. Destacamos duas delas: incidência massiva e com persistência temporal. Eventos isolados, ou que traduzam modismos, não recomendariam o rótulo de crime. Não conseguimos deixar de reconhecer na nova figura uma certa reação a episódio que ganhou repercussão pública em torno do projeto básico apresentado em sede de estudos autorizados referente ao projeto da hidrelétrica de Jirau.
Em síntese, e sem tomar nenhuma posição, o Consórcio Enersus apresentou proposta considerando o deslocamento do eixo da barragem em relação ao projeto básico que fora apresentado nos estudos e posteriormente licitado. Ao fazê-lo, conseguiu apresentar proposta financeiramente mais vantajosa que o Consórcio Jirau responsável pelo desenvolvimento dos estudos. O que interessa do episódio, para fins dessa análise, é que, a preponderar essa narrativa, o que evitou eventual dano à Administração foi a competitividade do certame e a ampla transparência dada às informações do projeto licitado, e não a ameaça de sanção penal.
Como sempre, aposta-se no aumento de penas. Claramente, aumentaram-se as penas mínimas para quatro anos como forma de escapar ao acordo de não-persecução penal.
Não se consegue compreender o porquê. Se o legislativo, animado pelo gosto do então ministro Sergio Moro pelo sistema americano, abraçou o incremento do uso do direito penal negocial, não há ponderáveis razões para repelir o acordo de não-persecução penal (ANPP) em sede de crimes licitatórios, deixando aos acusados por tais crimes apenas a opção pelo acordo de delação premiada. Muito ao contrário; se a reparação do dano e perdimento de bens e valores havidos ilicitamente são condições de ambos os acordos, o custo da tomada de decisão pelo ANPP é muito menor, haja vista que ele não se condiciona a um dos resultados exigidos na Lei das Organizações Criminosas, como a indicação dos demais agentes da organização – o que não necessariamente é o caso de quem pratica um crime dessa natureza.
Adicionalmente, parece que se quer evitar que a penas venham a ser substituídas por restritivas de direitos. Ora, se é certo que alguns fatos dessa natureza realmente mostram-se incompatíveis com penas alternativas, também é certo que o réu primário que ofereça pequena vantagem a concorrente para que não participe de licitação de pequeno valor, por vezes com impacto mínimo ao ente público, não parece ser candidato ideal a cumprimento de pena em regime aberto. Alguns dos velhos tipos, com penas entre 3 e 5 anos, permitiam ao juízo traçar essa distinção, poder que lhes foi subtraído, na prática, pelo novo desenho.
Deixamos para o final o que parece ser o aspecto mais relevante para quem realmente objetiva reduzir os eventos que estão sendo criminalizados, e não simplesmente puni-los: qual o papel do Estado como fomentador dessas condutas? Está-se, mais uma vez, pintando de branco a infiltração na parede, sem cuidar do vazamento no cano.
Diga-se claramente: o Estado caloteiro é uma realidade. O tamanho das dívidas de precatórios dos entes públicos e as inúmeras manobras para postergar seus pagamentos (há nova proposta de mais uma vez pedalar o credor dos precatórios na praça) o demonstram. A possibilidade de dar uma longa moratória ao pagamento de bens e serviços entregues confere ao Poder Público um poder desproporcional na relação com o particular contratado. Confira-se, nesse campo, o cancelamento generalizado de empenhos ao final de mandatos, verdadeiro convite para que se coloque um preço no exercício desse poder discricionário de escolher qual fornecedor será salvo pelos pagamentos das despesas de exercícios anteriores e quais irão para a fila do precatório.
Esse desequilíbrio de poder também existe no campo da imposição da penalidade de inidoneidade. Com a nova lei, fica claro que quando um ente declarar um agente privado como inidôneo, essa condição se estende perante os demais entes federativos. É verdade que a Nova Lei de Licitações procurou dar critérios para balizar a aplicação desta pena, deixando para o caso das condutas menos danosas a suspensão do direito de contratar com a Administração. Não se sabe, porém, como a lei será interpretada em cada caso concreto. O fato é que, até que se consolide alguma jurisprudência, um Secretário da Administração Municipal terá o poder de declarar uma empresa inidônea para contratar com toda a Administração Pública brasileira. Esse poder, sem maiores limites ou proporcionalidade, confere ao secretário municipal um poder excepcional, criando incentivos indevidos para corrupção.