No dia 1o de abril de 2021 foi finalmente sancionada a Nova Lei de Licitações (Lei no. 14.1332021). A lei é extensa e densa, fruto da longa tramitação de diversos projetos de lei que visavam reformar o sistema de contratações públicas. Contou com ampla participação de diversos atores envolvidos no tema. E, claro, foi promulgada na ressaca da Operação Lava Jato. Por ser ampla e ser o produto de tantas opiniões distintas, a lei não é uniforme, o que torna impossível qualificá-la pelo seu todo. Não se pode dizer que seja inteiramente boa ou inteiramente ruim. A lei avança em alguns aspectos, como a possibilidade de adoção de prazos mais compatíveis com cada tipo de contratação, a valorização do planejamento nas contratações públicas e a autorização expressa e ampla do uso de meios adequados de solução de controvérsias nos contratos administrativos. Mas avanço, infelizmente, não foi o que ocorreu na parte criminal da lei de licitações. Analisaremos em dois textos alguns desses problemas: na primeira parte, falaremos de alguns tipos problemáticos e apontar alguns horizontes de possível superação. Na Parte II, abordaremos o que ficou de fora do projeto criminalizador e a nova calibragem punitiva das renovadas figuras penais.
O que se criminaliza
A reforma apostou no que parece ser a única estratégia legislativa disponível no Brasil das últimas décadas: um aumento punitivo, sem maiores reflexões quanto ao sucesso desse modo de agir, mas também sem ter-se o cuidado de bem desenhar aquilo que se proíbe. Deram um tapa nos móveis, sem alterar, como sempre, os problemas estruturais.
Perdeu-se, primeiramente, a oportunidade de mais bem separar as diversas condutas típicas, que muitas vezes se sobrepõem, causando transtornos interpretativos e, mais perigoso, abre espaço para excessos punitivos.
Comecemos pelo novo art. 337-I do Código Penal, que incrimina impedir, perturbar ou fraudar a realização de processo licitatório, com pena de 6 meses a 3 anos de detenção e multa.
Há 5 tipos penais que invocam, direta ou indiretamente, o verbo “fraudar” no novo Capítulo II-B “Dos crimes em licitações e contratos administrativos” do Código Penal. Fraudar é empregar informação falsa, ou omitir informação que deveria constar, em qualquer instrumento apto a criar uma situação jurídica mais favorável ao fraudador, ou a terceiro, em prejuízo, nos tipos penais em comento, da Administração Pública.
- O 337-F criminaliza a fraude (a) do caráter competitivo do processo licitatório, e (b) com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação. Incide, pois, apenas no campo das licitações e, sob o prisma temporal, na fase anterior à adjudicação;
- Também se incrimina a fraude empregada para afastar ou tentar afastar licitante (art. 337-K), no mesmo marco temporal, portanto, do art. 337-F, porém sem o especial fim de agir (ou seja, a obtenção de vantagem). Em que pese não atrelar explicitamente ao caráter competitivo do certame, pode-se presumir que esse continua sendo o objeto de proteção da norma: (a) a rubrica do tipo – afastamento de licitante; e (b) o parágrafo único que estende a punição àquele que se abstém ou desiste de licitação em razão da vantagem oferecida. Curiosamente, a pena do 337-K é menor do que a do 337-F, de sorte que o uso de violência contra licitante é menos grave que o conluio entre eles. A questão, portanto, é a seguinte: no que o fraudar o caráter competitivo do art. 337-F se difere da fraude usada para afastar licitante no 337-K? Uma possível resposta parece estar no predicado direto pela fraude: no 337-F, é a Administração que é induzida a erro, por fraude ou bem praticada por um dos licitantes, ou em conluio, ao passo que no 337-K a fraude atinge, primeiramente, o licitante por ela prejudicado, e a Administração, apenas indiretamente. Certamente melhor seria um único tipo dedicado às condutas prejudiciais à concorrência no marco das licitações, em que se separassem conluio, fraude e as formas de constrangimento (violência e grave ameaça);
- A fraude é novamente mencionada no art. 337-L cujo centro de gravidade está em prestações posteriores à adjudicação da licitação ou do contrato, salvo o inciso V: “qualquer meio fraudulento que torne injustamente mais onerosa para a Administração Pública a proposta ou a execução do contrato”. Ora, se o meio fraudulento tornou mais onerosa a proposta, então ele foi exercido antes da adjudicação, a ensejar a pergunta do que ele se distingue da fraude do art. 337-F. Pode-se assumir que, fraudada a real onerosidade da proposta, deu-se vantagem competitiva indevida ao licitante sagrado vencedor, conduta criminalizada no art. 337-F. Parece que o único âmbito de aplicação do 337-L estaria (a) na fase de proposta, nos procedimentos diferentes da licitação, objeto do 337-F; e (b) para aquelas fraudes que geraram maior onerosidade já na fase de execução;
- Ainda, o 337-O, em que pese não mencionar o núcleo “fraudar”, criminaliza a omissão, modificação ou entrega em dissonância com a realidade de levantamento cadastral ou condição de contorno. São paráfrases do verbo fraudar, claramente. É norma congênere ao 337-F, porém recortado para a contratação para a elaboração de projeto básico, executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou em procedimento de manifestação de interesse. Retomaremos esse tipo mais adiante.
Chega-se, finalmente, à fraude do art. 337-I com a seguinte indagação: o que lhe restou criminalizar? Temporalmente, cuida de fraudes ocorridas “na realização de qualquer ato de processo licitatório”; logo, anteriores à adjudicação. Se o objeto de fraude é retirar ou mitigar o caráter competitivo, criminalizado está, seja no art. 337-F, seja no 337-K. Restariam fraudes sem conexão direta com a qualidade concorrencial de maneira direta; assim, quem forjasse documento demonstrando idoneidade ao certame incorreria nessa figura, por exemplo. Isso adotando-se como premissa que apenas as fraudes incidentes sobre o preço (ou o custo final para a Administração) atingem a concorrência propriamente, a excluir, assim, uma compreensão de que o simples se habilitar falsamente como idôneo já não seria, em si, ganho competitivo penalmente relevante.
Ainda restam, no 337-I, os núcleos impedir e perturbar, ambos indicativos de condutas aptas e comprometer não a essência dos atos compreendidos no processo licitatório, porém a própria realização desembaraçada deles. O quanto seja proibido aqui parece alcançar-se por exclusão, notadamente para retirar do alcance da criminalização o emprego legítimo de instrumentos obstativos da realização dos atos licitatórios. Exemplo mais nítido seria o recurso ao Judiciário, em controle de legalidade dos atos; também muito relevante um exercício conglobante para manifestações públicas da sociedade civil organizada que, no exercício de suas liberdades públicas busca legitimamente impedir o prosseguimento de feito que considere prejudicial. Exemplo recente disso foram as manifestações do Movimento Passe Livre contra a concessão dos terminais urbanos de São Paulo.
Ainda, a figura do novo 337-O merece comentários à parte.
Como dito acima, a informação falsa em ou a omissão de informação que deveria constar de documento (= fraude) tem sempre como horizonte a criação de uma situação jurídica irregular para o fraudador (ou terceiro), em prejuízo de alguém, concretamente considerado, ou de entes mais abstratos como a Administração.
O que é o procedimento de manifestação de interesse? Trata-se de procedimento por meio do qual a Administração Pública autoriza particulares a realizarem estudos para estruturação de projetos a serem futuramente contratados pela Administração Pública junto a particulares. São utilizados, como se sabe, particularmente para a obtenção de estudos que servirão de base para o lançamento de futuros projetos de concessão comum e parceria público-privada. Nesses procedimentos, o particular assume o risco de aproveitamento dos estudos, aceitando desenvolver e entregar os estudos às suas expensas, para depois ser reembolsado pelo futuro adjudicatário do projeto, na proporção em que os estudos tenham sido aproveitados. Caso o adjudicatário tenha sido o autor dos estudos, estará, naturalmente, isento de reembolsar a parcela dos estudos que tenha sido aproveitada no projeto final.
Em razão do caráter voluntário que o PMI encerra – ou seja, não se trata de um contrato de prestação de serviços em que o Poder Público paga ao particular para desenvolver estudos de viabilidade, parte da doutrina sustenta, com razão, que sequer se poderia aplicar as sanções tradicionalmente impostas em caso de inadimplemento contratual ao ente privado que participe de PMI[2].
Ora, descabendo falar-se em sanção contratual e/ou administrativa nesses casos, com muito mais razão não faz sentido alçar a conduta à condição de tipo penal. Cuida-se da mais comezinha aplicação da ultima ratio, ideia-regente do Direito Penal que reserva à mais amarga intervenção estatal apenas àqueles casos que não encontram suficiente resguardo estatal em instâncias menos invasivas.
E não se trata de posição “meramente” doutrinária. Dois exemplos bastantes eloquentes de reconhecimento da ultima ratio sob o ângulo da assessoriedade administrativa são: a mal chamada insignificância nos crimes tributários o que se considera depósito não declarado ao Banco Central do Brasil para fins de evasão de divisas, sob a forma de manutenção. No primeiro caso, o piso de R$ 20.000,00 para que não se criminalizem crimes tributários decorre do fato de não haver, para essas quantias, execução fiscal. Bem, se a Administração não tem interesse em mover a máquina pública para a exação, com menos razão mover a máquina penal. No segundo caso, só se criminaliza aquele depósito não declarado quando igual ou superior ao mínimo imposto pelas autoridades financeiras a gerar a necessidade de informes de bens, de maneira anual, ao BACEN (hoje, 1 milhão de dólares). Em que pese não haver remissão expressa no tipo de evasão de divisas, a essa interpretação se chegou por meio da ultima ratio: em não configurar sequer infração administrativa deixar de declarar depósito inferior a determinado valor, não se pode falar em criminalização.
À mesma conclusão se deve chegar, no âmbito no art. 337-O; quando a infração sequer for suficiente a gerar sanção administrativa, nenhum papel tem a desempenhar o Direito penal.
Em resumo, a reforma deixou de corrigir as superposições de figuras abstratas, adotando-se como eixo a ideia de fraude. Além da insegurança jurídica nesse arranjo de tipos – a permitir, em tese, um cúmulo de delitos pela via do concurso – há tipo que permitiria criminalizar a pressão da sociedade civil contra a realização de um certame, pela via da manifestação popular, de um lado, e tão ou mais grave, há tipo a criminalizar o emprego de informação errada (inclusive na modalidade culposa!) em procedimento de manifestação de interesse que sequer cria obrigação jurídica entre as partes. Na Parte II, analisaremos o que ficou de fora do projeto criminalizador e a nova carga punitiva desenhada para as figuras incorporadas ao artigo 337 do Código Penal.
[2] Cf. Monteiro, Vera; Rosilho, André; e Sundfeld, Carlos Ari. A estruturação das concessões por meio de parceria com particulares autorizados (art. 21 da Lei nº 8.987/1995). Revista de Direito Administrativo: RDA. Rio de Janeiro: FGV, v. 275, maio/ago. 2017, pp. 41-66.