Opinião e Análise

Davi Tangerino

Ganhou grande repercussão a decisão do Supremo Tribunal Federal nos recursos extraordinários 955.227 e 949.297, tendo como relatores, respectivamente, os ministros Barroso e Fachin, no sentido que havendo decisão do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a> quanto à constitucionalidade da cobrança de determinado tributo, ela valeria não apenas erga omnes, como é natural, porém também retroagiria, desfazendo decisões transitadas em julgado em sentido diverso. Em que pese o acórdão ainda pender de publicação, comunicado oficial do STF dá conta de que o fundamento último seria evitar uma desigualdade tributária: “quem tiver obtido uma coisa julgada antiga tem uma vantagem competitiva em relação aos concorrentes”. Em síntese, uma questão de isonomia.
Do ponto de vista da teoria do Direito, penso que a questão a se colocar é a seguinte: pode uma norma inconstitucional conferir estabilidade à decisão transitada em julgado? Se se a aceita, então dá-se vida transitória a norma natimorta. Lógica rigorosa imporia que norma inconstitucional jamais pudesse gerar efeito algum; todavia, as normas são organizadoras da vida social, e nascem com legalidade e constitucionalidade presumida. Trocando em miúdos: toda uma coletividade organizou sua conduta conforme a norma, aparente e presumidamente constitucional, de modo que impor prejuízo a quem cumpriu a norma, diante de posterior reconhecimento de inconstitucionalidade padeceria de ausência de fundamento ético-republicano.
Tal como decidido, quem, até a declaração de inconstitucionalidade, observou a norma, não pode ser prejudicado. Quem, todavia, desde então, apostou em reversão de entendimento, via Judiciário, memo tendo logrado êxito em decisões transitadas em julgado, ainda assim estará sujeito, via ação rescisória, a sujeitar-se ao entendimento do STF. Nesse último caso, em nome da isonomia.
O Direito Penal e o Processual Penal, como não poderia deixar de ser, estão impregnados de normas deriváveis da isonomia; um bom exemplo é o da retroatividade penal da lei que descriminaliza uma conduta (abolitio criminis): como justificar que alguém que hoje cometa um fato descriminalizado e não receba, por óbvio, nenhuma sanção, e outra pessoa, que cometera o mesmo fato, porém sob a vigência da lei abolida, ainda cumpra pena?
A resposta “porque naquele momento era crime” imporia a forma sobre o conteúdo, fazendo do Direito Penal manifestação caprichosa de poder punitivo. O caminho argumentativo mais consentâneo parece ser o seguinte: via abolição do crime, o Estado abre mão de uma política criminal, ou seja, reconhece, direta ou indireta, consciente ou inconscientemente que a criminalização não alcançou os efeitos esperados (ou é forçado a abrir mão. Quando a alteração deriva do controle dos poderes pelo Judiciário). Logo, manter a pena, mesmo diante do trânsito em julgado, seria abuso de poder.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> O mesmo vale diante de normas penais mais benéficas, que nada mais são do que modulações da política criminal e pelos mesmos motivos, devem retroagir sempre.
O tema, porém, está longe de estar pacificado nos tribunais, notadamente em segunda instância.
O Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a>) vem aceitando revisões criminais com base em mudança de jurisprudência desde que (i) seja pacífico; e (ii) seja relevante. O último requisito gera alguma inquietude, já que qualquer benefício, aos olhos de quem o pleiteia, é relevante. Na Revisão Criminal 5.627/DF, o tema de fundo era o seguinte: uma vez que o preceito secundário (pena) do art. 273, § 1º-B do Código Penal foi declarado inconstitucional, e que o STJ vem aceitando a aplicação, em caráter subsidiário, da pena dos crimes de contrabando ou tráfico, deveria, então incidir a causa de diminuição de pena do art. 33 da Lei de Drogas? Mesmo reconhecendo que o tema não é pacífico, julgou-se a revisão procedente para a redução da pena (Rel. Min. Joel Parcionik, DJe 22/10/2021). Na Revisão Criminal 3.900/SP, deu-se provimento para aplicar o entendimento mais benéfico quanto à prescrição no crime de estelionato contra a Previdência (Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 15/12/2017).
Em sentido contrário, no HC 674.334/SC Ag, em decisão publicada em 25/10/2021, o mesmo ministro Reynaldo Soares da Fonseca, em que pese parecer haver questão de supressão de instância, fixa outra premissa: "A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que a mudança de entendimento jurisprudencial posterior ao trânsito em julgado da condenação não autoriza o ajuizamento de revisão criminal visando a sua aplicação retroativa, o que afasta as alegações de constrangimento ilegal e teratologia trazidas pelo agravante." (AgRg no HC 445.141/RJ, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, DJe de 1º/10/2018).
Os tribunais de segunda instância são claramente mais conservadores.
O Tribunal de Justiça do Espírito Santo (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tjes">TJES</a>) decidiu de modo taxativo: na medida em que “à época dos fatos bastava a presença de denúncia anônima para autorizar a ação da polícia, considerando que o crime de tráfico de drogas é de natureza permanente, encontrando-se o agente em flagrante delito no momento da abordagem, situação que justificava a exceção expressamente prevista no art. 5º, inciso XI, da Constituição Federal”, incabível a revisão (AGR nº 00182470620188080000, Relator Desembargador Fernando Zardini Antonio, Câmaras Criminais Reunidas, DJe14/06/2019). Na mesma linha, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT): “não se admite a Revisão Criminal fundamentada com base exclusivamente em alteração de entendimento jurisprudencial, pois além de não haver previsão legal para tanto, ocasionaria relevante insegurança jurídica e, o Revisionando dispunha de recursos adequados às Instâncias Superiores” (RVCR 07097793420218070000/DF 0709779-34.2021.8.07.0000, Relator Desembargador João Timóteo de Oliveira, Câmara Criminal, Data de Publicação: 06/09/2021).
Em outros tribunais, nota-se posições menos peremptórias, ora restringindo às hipóteses de declaração de inconstitucionalidade, ora em nome da não pacificação jurisprudencial.
No primeiro grupo de casos, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tjsc">TJSC</a>), na Revisão Criminal 4017050-35.2017.8.24.0001 fixa como premissa que “a mera alteração na jurisprudência ‘não deve provocar a revisão criminal. O entendimento acerca de diversos temas, questões fáticas e jurídicas, pode mudar ao longo do tempo, não sendo causa válida para justificar a revisão da pena aplicada (...)’”, salvo em casos de declaração de inconstitucionalidade, com apoio em magistério de Guilherme Nucci. Também a Turma Recursal Permanente dos Juizados Especiais do Pará (0000301-16.2018.8.14.9001) condiciona a revisão por alteração de jurisprudência a “decisão plenária do STF”.
No segundo grupo, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (Revisão Criminal nº 000436.5.82.2017.4.03.0000, Rel. Des. Raquel Silveira, DJe 6/6/2019), entendeu não caber provimento “quando a decisão revisanda tiver se baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. Em nome de teses consideras ainda não pacificadas, não deu provimento à revisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (Revisão Criminal n. 0036015-36.2021.8.26.0000 e n. 0004616-86.2021.8.26.0000, Rel. Des. Marcelo Semer, DJe 7/10/2022 e 1/11/2022).
A recente decisão do STF deveria oferecer horizonte de parametrização para as revisões criminais, no seguinte sentido (i) a mudança de jurisprudência, quando mais favorável ao réu, retroage, independente da literalidade do art. 621 do Código de Processo Penal, por mandamento constitucional (isonomia, proporcionalidade, dignidade humana etc.); (ii) desde que represente entendimento majoritário de Tribunal Superior, assim entendido: (iii) decisões do pleno do STF, da Corte Especial ou de Seção do STJ, ou, ainda, de decisões de ambas as Turmas do STF, ou ambas as 5ª e 6ª Turmas do STJ; (iv) devendo, por fim, o requisito da relevância confundir-se com o interesse de agir, ou seja, cuidar-se de pedido capaz de gerar qualquer benefício em termos de tempo de pena, regime prisional, ou mesmo de efeitos secundários da condenação.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Exceção, segundo o art. 3º do Código Penal, são as normas incriminadoras excepcionais ou temporárias.

Justiça STF coisa julgada

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JOTA

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