Opinião e Análise

Davi Tangerino

Nathalie Fragoso

Clarice Tavares

Paulo Arantes foi <a href="https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/03/mesmo-sem-projeto-lula-tera-sucesso-se-frear-extrema-direita-diz-paulo-arantes.shtml">entrevistado recentemente</a>, na esteira da publicação do seu livro, e comentou a generalização mundial de uma ordem social brutal, racializada e desigual, caracterizada pela precarização do trabalho e pela ascensão da extrema direita. Falou do Brasil e, citando Gabriel Feltran, falou do empoderamento das forças coercitivas; falou de Israel, citando Eva Illouz, e do laboratório da extrema direita em que a autora o vê se transformar.
Seu repertório é a porta que tomamos para comentar a <a href="https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/03/abin-de-bolsonaro-usou-programa-secreto-para-monitorar-localizacao-de-pessoas-por-meio-do-celular.ghtml">notícia recente</a> de que a Agência Brasileira de Inteligência (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/abin">Abin</a>) teria usado, durante os três primeiros anos do governo Bolsonaro (2019-2021), um sistema israelense para monitorar a localização de pessoas.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Segundo a reportagem, a ferramenta usada foi o programa FirstMile, desenvolvido pela empresa israelense Cognyte, antes conhecida como Verint Systems Ltda. O programa explora vulnerabilidades do protocolo para acessar dados da rede e identifica a transferência de dados entre o celular conectado e as torres de telecomunicações, registrando de forma aproximada os deslocamentos e permitindo alertas de movimentações em tempo real<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Segundo integrantes da Abin, o FirstMile não viabilizava o registro cronológico das operações de consulta, de maneira que finalidade, identificação do agente, data e a hora e natureza dessas operações não eram/são possíveis. Ao jornal O Globo, foi dito que o sistema era operado pela agência, porque haveria um “limbo legal” e, supostamente, a proibição ou restrição do acesso a metadados não estaria prevista em lei. Ainda, argumenta-se que a agência utilizaria o software em casos de “segurança de Estado” e, por isso, não estaria configurada quebra de sigilo telefônico.
Uma primeira razão para preocupações surge da histórica – e notória – relação entre a empresa israelense Cognyte com práticas ilícitas que ferem direitos humanos e violam a privacidade. As tecnologias de vigilância da Cognyte foram usadas para a perseguição de opositores no Sudão e em Mianmar. Neste último, a empresa forneceu um software de interceptação de dados que seria instalado em todos os provedores de telecomunicações do país,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> o que permitia monitoramento das atividades, localização de dispositivos móveis e interceptação de conversas.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Pela atuação da Cognyte em Mianmar e em outros países, como Azerbaijão, Indonésia, Sudão do Sul, Uzbequistão e Cazaquistão, a empresa israelense figura na lista de empresas que violam direitos humanos ao redor do mundo e foi banida pela Meta dos seus serviços, pela atuação ilegal de “vigilantes de aluguel”.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
A segunda razão surge da forma de aquisição da tecnologia. Conforme apontado na reportagem do Globo, o software foi comprado no fim de 2018, no governo Temer, por R$ 5,7 milhões, com dispensa de licitação, e foi utilizado entre 2019 e 2021, durante o governo Bolsonaro. A contratação foi feita de forma sigilosa, no apagar das luzes da gestão Temer. A falta de transparência quanto ao contrato e ao uso da ferramenta impediu qualquer questionamento, controle prévio ou posterior, judicial, administrativo ou cívico.
A terceira e definitiva razão para a preocupação é o argumento mobilizado de que o software seria operado nas brechas ou lacunas da lei quanto à proteção jurídica das comunicações. Segundo integrantes da agência, o uso do software estaria ancorado em suposto limbo legal quanto ao acesso a metadados gerados no uso de dispositivos telefônicos. Não sendo – supostamente – regulada ou restringida a obtenção de tais informações, seria então permitida. Nisso se equivocam.
A proteção constitucional à intimidade e à privacidade alcança metadados (embora haja alguma controvérsia sobre o inciso sob cujo escopo estariam protegidos - art. 5º, incisos X e XII da Constituição Federal). A proteção de dados pessoais é direito fundamental e, como tal, obriga todo e qualquer agente estatal brasileiro, a despeito da limitação de escopo da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lgpd">LGPD</a>, a Lei Geral de Proteção de Dados (art. 5º, inciso LXXIX da Constituição Federal). O Código de Processo Penal estabelece as limitadas hipóteses em que dados de localização podem ser obtidos, no art. 13-B<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Metadados relacionados à localização podem ser obtidos para a prevenção e repressão dos crimes relacionados ao tráfico de pessoas. Nesses casos, o Ministério Público ou a autoridade policial poderá requisitar, mediante autorização judicial, “os meios técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso” às empresas de telecomunicações. Outros metadados, como registros de acesso e registros de conexão, têm sua obtenção disciplinada pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/marco-civil-internet">Marco Civil da Internet</a> e condicionada à autorização judicial (art. 7, III, Art. 10, § 1º  da Lei 12.965/2014).
Não há, assim, nenhum limbo legal quanto ao acesso aos metadados. São dados protegidos e as hipóteses de acesso são disciplinadas. Fora disso, não é nebulosa, mas ilegal a obtenção e uso dessas informações. Além disso, as condições em que o FirstMile foi usado contrariam, ao que parece, decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) quanto ao tratamento de dados para atividades de inteligência. O Supremo vem reiterando que o tratamento de dados pessoais deve atender ao interesse público, observar as legislações específicas e seguir os parâmetros fixados pela ADI 6529, que limitou o compartilhamento de dados do Sisbin.
A tecnologia adquirida pela Abin viola o dispositivo da decisão, que data de outubro de 2021 – marco próximo à declarada interrupção da ferramenta. A ADI foi julgada parcialmente procedente para condicionar o compartilhamento de dados à demonstração do interesse público; à motivação do ato para controle de legalidade pelo Poder Judiciário, e ao emprego de sistemas eletrônicos que garantam segurança e registro de acesso, e assim permitam a responsabilização por omissão, desvio ou abuso. Além disso, dados referentes às comunicações telefônicas ou de dados submetidos à reserva de jurisdição não podem ser compartilhados sem ordem judicial.
Voltamos ao Paulo Arantes. Ele fala de uma fratura entre centro e periferia constitutiva do capitalismo. Indica uma tendência de assemelhamento, não no sentido da esperança mítica de que nos encontraremos no topo, mas que viveremos o destino compartilhado de um desastre – ambiental, social, econômico e político. A crescente colaboração expressa no comércio de tecnologias de vigilância é uma pista para entender de que elementos se constrói a semelhança – ressalvada, é claro, a notável desigualdade que se manifesta no sentido do fluxo de dados, da periferia para o centro, no sentido da transferência de tecnologia, do centro para a periferia. O fortalecimento comum de agências do poder punitivo tem esse componente tecnológico, por design sem garantias, como característica. Peculiares, no entanto, são as palavras mobilizadas aqui na sua justificativa: o cinismo da brecha legal, a gambiarra lógica, a resistência histórica ao controle externo.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/03/abin-de-bolsonaro-usou-programa-secreto-para-monitorar-localizacao-de-pessoas-por-meio-do-celular.ghtml">https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/03/abin-de-bolsonaro-usou-programa-secreto-para-monitorar-localizacao-de-pessoas-por-meio-do-celular.ghtml</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Vale aqui um esclarecimento: A depender do contexto, dados de localização podem ser considerados conteúdo ou metadados; afinal, quando enviamos nossa localização a um contato, o dado constitui a própria "substância" dos dados que o usuário transfere. Por outro lado, são considerados metadados, quando são transmitidos incidentalmente à interação de um usuário com o seu dispositivo.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: <a href="https://www.reuters.com/technology/israels-cognyte-won-tender-sell-intercept-spyware-myanmar-before-coup-documents-2023-01-15/">https://www.reuters.com/technology/israels-cognyte-won-tender-sell-intercept-spyware-myanmar-before-coup-documents-2023-01-15/</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em:  <a href="https://www.haaretz.com/israel-news/security-aviation/2023-01-15/ty-article/israel-myanmar-acquired-spyware-from-cognyte-new-docs-reveal/00000185-b415-d2c1-afe7-fc37abf40000">https://www.haaretz.com/israel-news/security-aviation/2023-01-15/ty-article/israel-myanmar-acquired-spyware-from-cognyte-new-docs-reveal/00000185-b415-d2c1-afe7-fc37abf40000</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Disponível em: <a href="https://www.tecmundo.com.br/seguranca/230696-pegasus-meta-bane-7-empresas-mercenarios-virtuais.htm">https://www.tecmundo.com.br/seguranca/230696-pegasus-meta-bane-7-empresas-mercenarios-virtuais.htm</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Art. 13-B.  Se necessário à prevenção e à repressão dos crimes relacionados ao tráfico de pessoas, o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia poderão requisitar, mediante autorização judicial, às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso.
<ul>
<li>
1º Para os efeitos deste artigo, sinal significa posicionamento da estação de cobertura, setorização e intensidade de radiofrequência.
</li>
<li>
2º Na hipótese de que trata o caput, o sinal:
</li>
</ul>
I - não permitirá acesso ao conteúdo da comunicação de qualquer natureza, que dependerá de autorização judicial, conforme disposto em lei;
II - deverá ser fornecido pela prestadora de telefonia móvel celular por período não superior a 30 (trinta) dias, renovável por uma única vez, por igual período;
III - para períodos superiores àquele de que trata o inciso II, será necessária a apresentação de ordem judicial.             (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016)
<ul>
<li>
3º Na hipótese prevista neste artigo, o inquérito policial deverá ser instaurado no prazo máximo de 72 (setenta e duas) horas, contado do registro da respectiva ocorrência policial.
</li>
<li>
4º Não havendo manifestação judicial no prazo de 12 (doze) horas, a autoridade competente requisitará às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso, com imediata comunicação ao juiz.
</li>
</ul>

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JOTA

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