Opinião e Análise

Davi Tangerino

Há 70 anos o grande Nelson Hungria discutia, por escrito, com o alemão Goldschmidt em torno de eventual diferença qualitativa entre os ilícitos administrativos e os crimes; para Hungria, a diferença estaria apenas na gradação do emprego do poder punitivo, não havendo entre essas figuras distinção ontológica. Em que pese a longevidade do debate, há pouca concretude seja no âmbito doutrinário, seja no jurisprudencial.
Alinho-me àqueles que, na linha de Hungria, entende que o exercício do poder punitivo se dá em graus diferentes, e com incidência em esferas distintas. Vai desde a internação compulsória de drogaditos até a pena privativa de liberdade.
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A improbidade administrativa, nesse marco teórico, é uma manifestação de poder punitivo, eis que (i) administrada via Estado; (ii) a partir de um racional de castigo (em oposição à lógica privatista de reparação de dano); (iii) incidente sobre direitos não-patrimoniais, a exemplo da inelegibilidade.
Sem pretender esgotar todos os elementos que hão de ser comuns a todas as intervenções punitivas, destaco, considerando as alterações legislativas em curso na Câmara dos Deputados no âmbito da improbidade, algumas incidentes no binômico desvalor da ação e desvalor do resultado.
Aquilo que se proíbe sob pena de castigo estatal há de ser claramente comunicado aos endereçados da norma proibitiva. No âmbito penal estrito senso, a clareza do quanto se proíbe se faz reconhecer na taxatividade, sub-regra da legalidade estrita, bem assim no tema do erro, seja de tipo, seja de proibição. No direito em ação, a sentença condenatória é o exercício de articulação de fatos e provas à luz do quanto fora proibido.
Essa clareza fica fundamentalmente prejudicada no âmbito dos delitos culposos. Via de regra, a adequação típica não se media diretamente pelo tipo penal, que só anuncia o resultado típico na formulação dolosa, porém com amparo do artigo 18 do Código Penal, que tem uma regra geral e lacônica de culpa.
O resultado típico tem papel central na imputação dolosa. Quem buscá-lo na legislação penal notará que terão como objeto de incidência bens jurídicos concretos: vida e integridade física. Bem verdade que há resultados de perigo comum como incêndio, no Código Penal, ou poluição, na Lei dos Crimes Ambientais. Mas em ambos os casos, o sentido jurídico penal de incêndio ou poluição só se completa com a periclitação da vida e da integridade física, ou no caso da poluição com mortandade de animais ou destruição significativa da flora.
Mesmo nos tipos de perigo contra a saúde pública em que se pune a modalidade culposa, há menção expressa ao perigo concreto à saúde (art. 271, p. ex.). Há uma exceção: no artigo 280 criminaliza-se o fornecimento culposo de substância medicinal em desacordo com a receita médica.
No campo da Administração Pública – e aproximando o debate da improbidade – há um delito culposo de relevo: o peculato culposo. A figura criminaliza aquele que concorre culposamente para o peculato doloso de terceiro. Aqui, em que pese a porosidade da Administração Pública como falso bem jurídico, há dois recortes típicos relevantes: (i) o objeto de referência é o aferível conjunto “dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel”; e (ii) o agir doloso do autor principal.
Como se vê, não se admite, como regra, a imputação culposa de resultados de mero perigo a bens jurídicos não individuais, ainda que de maneira indireta.
<blockquote class="jota-article__eye">Com efeito, a produção por negligência de resultado puramente normativo, a saber, perigo a bem jurídico não individual não assume nenhuma concretude fática, resumindo-se a uma operação mental, incapaz de permitir separar ações criminosas de não criminosas.</blockquote>
A quebra de dever de cuidado, nesses casos, seria o perigo em si, criminalizando-se, automaticamente, todo agir negligente passível de criação de perigo à Administração Pública, abstratamente considerados (tanto o perigo, como o “bem jurídico”).
Faz sentido, observadas essas premissas, se falar em improbidade administrativa culposa?
O artigo 9º tipifica atos ímprobos que representem enriquecimento ilícito dos sujeitos à lei e não faz menção à culpa, ao contrário do art. 10, cujo eixo é a causação de dano ao erário, ou seja, “perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º” da Lei, por meio de qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa.
De maneira ampla, os incisos do art. 10 permitem o exercício do racional da imputação culposa: (i) a existência da quebra de dever objetivo de cuidado (geralmente sob a fórmula “sem a (estrita) observância das normas” ou congêneres); e (ii) a superveniência de um resultado lesivo não à Administração como ente abstrato, porém ao patrimônio concretamente considerado. Essa cisão entre desvalor da ação e desvalor do resultado, aferíveis de maneira objetiva é central para que se possa conduzir qualquer imposição de castigo pelo Estado.
Por não se poder aferir essa cisão no art. 11 da LIA é que a imputação culposa para esses eventos não atende a um mínimo racional de exercício de poder punitivo. De maneira explícita, define ali como atos de improbidade tudo o que atente contra uma série de princípios. Como aferir o desvalor do resultado de uma quebra de dever de cuidado que atinja um princípio? Nesses casos, a própria quebra de dever é, em si, violadora do princípio, já que o que se espera desses agentes é que ajam de maneira fiel, atenta, cuidadosa, legal, proba o tempo todo.
Recentemente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reiterou o entendimento de que “Não se deve admitir que a conduta culposa renda ensejo à responsabilização do Agente Público por improbidade administrativa. Com efeito, a negligência, a imprudência ou a imperícia, embora possam ser consideradas condutas irregulares e, portanto, passíveis de sanção, não são suficientes para ensejar a punição por improbidade administrativa”. Rechaçou inclusive sua incidência quanto ao art. 10, que traz previsão expressa para a imputação culposa (AgInt no REsp 1724854/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 24.11.2020).
Quer parecer que o motor da decisão do STJ é menos uma questão dogmática (o precedente citado elogia a abertura típica dos atos ímprobos), porém antes um constrangimento diante do excesso punitivo. Com efeito, o artigo 12 não traz nenhuma métrica a separar a sanção em casos dolosos e culposo, o que é definitivamente um problema sério de exercício do poder punitivo.
À brasileira, nega-se o conteúdo expresso do art. 10, sem declarar sua ilegalidade ou inconstitucionalidade, para uma calibração punitiva.
Há espaço para a imputação culposa por ato ímprobo?
Entendo que sim. O inciso X do art. 10 traz bom exemplo: é ato ímprobo agir negligentemente na conservação do patrimônio público. É evidente que a negligência deve ser medida tanto pela extensão da omissão (conservar abrange desde colocar uma cerca, ou vigias, até manutenção ou restauro constantes), quanto pela possibilidade orçamentária efetiva do gestor.
Entendeu a Câmara dos Deputados aprovar PL que suprime a imputação culposa; mais bem andaria se a mantivesse apenas no art. 10, porém alterasse o artigo 12 prevendo sanções proporcionais à gravidade do ato.
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lei de improbidade

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JOTA

Aquilo que se proíbe sob pena de castigo estatal há de ser claramente comunicado aos endereçados da norma proibitiva

Improbidade culposa: limites sancionadores e proporcionalidade punitiva

Faz sentido, observadas essas premissas, se falar em improbidade administrativa culposa?