Opinião e Análise

Davi Tangerino

Henrique Olive

A legislação tributária conferiu efeitos penais a uma hipótese de extinção do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/creditos-tributarios">crédito tributário</a> — o pagamento — e a uma de suspensão de sua exigibilidade — o parcelamento —, deixando de fora as demais figuras previstas nos artigos 151 e 156 do Código Tributário Nacional (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ctn">CTN</a>). O pagamento leva à extinção da punibilidade, ao passo que o parcelamento, promovido antes da denúncia, suspende o poder punitivo estatal até a quitação da última parcela, quando passa a equivaler ao pagamento.
A Súmula Vinculante nº 24, por sua vez, consagrou que não se tipifica crime material contra a ordem tributária (art. 1º, incisos I a IV, da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8137.htm">Lei 8.137/90</a>, aplicando-se, por analogia, aos art.s 168-A e 337-A do Código Penal) enquanto não houver decisão administrativa final, que pode se dar pela inércia do contribuinte diante do lançamento, ou pelo esgotamento da instância administrativo-tributária.
A questão que se coloca é a seguinte: esgotada a instância administrativa e com o contribuinte recorrendo ao Judiciário, seja (i) realizando depósito do montante integral, seja (ii) obtendo liminar ou antecipação de tutela, ainda assim está apto o Ministério Público a oferecer acordo de não persecução penal (ANPP)?
<h3>Tributo exigível</h3>
A tese ventilada pelo ministro Peluso quando do julgamento do <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1990524">Habeas Corpus 81.611/DF</a>, leading case que depois deu corpo à SV 24, é a de que há uma palavra oculta no art. 1º, caput, da Lei 8.137/90: exigível, ou seja, é crime contra a ordem tributária reduzir crédito tributário exigível, mediante uma ou mais fraudes típicas.
Em que pese, em um sentido primeiro, o tributo ser devido desde o lançamento ou desde a constituição da relação jurídico-tributária pelo contribuinte (referido como lançamento por homologação, no CTN), uma leitura constitucional impõe a adição de um advérbio: definitivamente devido, na esfera administrativa. Isso porque o art. 151 do CTN suspende a exigibilidade do crédito diante de recursos administrativos, traduzindo o direito, posteriormente plasmado na Constituição de 1988, do contraditório administrativo.
O crédito será firme e definitivamente devido, ou seja, exigível: a) quando da inação do contribuinte diante de lançamento; b) quando esgotados os recursos administrativos; ou c) quando homologada pela administração a declaração feita pelo sujeito passivo no mal denominado lançamento por homologação. No último caso, a discordância da administração leva a lançamento supletivo de ofício, retornando-se aos cenários a) ou b), acima.
Nesses casos, há uma presunção de exigibilidade do crédito tributário, que só poderá ser infirmada por decisão judicial.
<h3>Liminar e antecipação de tutela e ausência de justa causa </h3>
Enquanto mantida a referida presunção, está apto o Ministério Público a seguir no exercício do poder punitivo em matéria de crime tributário material. A decisão administrativa final serve, a um só tempo, como materialidade delitiva — enquanto dicção da autoridade competente quanto à existência de um resultado típico, a redução/supressão dos valores do crédito tributário, agora exigível — e como justa causa, na medida em que articula como ratio decidendi os elementos empíricos que levaram a administração à conclusão de existência de crédito tributário (an debeatur) e de sua dimensão em pecúnia (quantum debeatur).
Sobrevindo, porém, liminar ou antecipação de tutela em ação judicial, opera-se verdadeira inversão de presunção quanto à higidez do crédito, eis que o CTN confere a tal decisão judicial o efeito de, novamente, suspender a exigibilidade do crédito tributário. Em outras palavras, retira-lhe a justa causa.
Assim, a rigor, denúncia oferecida mesmo diante de liminar ou antecipação de tutela deve ser rejeitada de plano, por ausência de justa causa, nos termos do art. 395, III, do Código de Processo Penal.
No mínimo, deve ser considerada a questão prejudicial. É recorrente invocar-se o art. 93 do CPP, que cuida da modalidade heterogênea, conferindo ao juízo criminal a discricionariedade de suspender o processo penal na pendência de julgamento da questão em âmbito cível-tributário. Isso porque o art. 92, que trata da questão prejudicial homogênea, em que a suspensão, desde que a controvérsia cível seja “séria e fundada”, é obrigatória, limita-se à hipótese de definição do estado civil das pessoas, exclusiva da jurisdição cível.
O texto, de 1941, todavia, deve ser interpretado teleologicamente: a ratio da obrigatoriedade em suspender o processo penal é a exclusividade jurisdicional do tema, de relevância à época do CPP, o estado civil das pessoas. A mesma ratio, todavia, é perfeitamente aplicável às decisões atinentes à <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/fazenda-publica">Fazenda Pública</a>, dado que o foro criminal não poderia dirimir a questão de fundo: a existência ou não de crédito tributário. Assim, se não rejeitada a denúncia, a suspensão é de rigor, com interpretação teleológica do art. 92 do CPP.
<h3>Depósito judicial e interesse de agir</h3>
O depósito judicial é forma de suspensão de exigibilidade do crédito tributário. Nos termos atuais, o depósito só pode ser levantado, antes do julgamento do mérito, mediante concordância da Procuradoria da Fazenda, e já ingressa nos cofres públicos, estando, portanto, disponível no caixa do ente. Disso decorre o seguinte: ou bem o contribuinte tem razão, crédito não há e, sem ele, não há crime, ou bem a Fazenda tem razão, o valor depositado será finalmente convertido e, com isso, opera-se a extinção da punibilidade.
O depósito, portanto, retira do Ministério Público o interesse de agir. Paulo Rangel, nesse ponto, é cirúrgico: “Como ingressar com uma ação, pedindo condenação, quando o Estado não tem mais interesse na solução do caso penal, já que não mais poderá aplicar a sanctio juris”?<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Novamente, a rigor, é causa de rejeição da denúncia, também nos termos do art. 395, II, do CPP, eis que o interesse de agir é uma das condições da ação. E tudo quanto ponderado acima quanto às questões prejudiciais aplica-se ao tema do depósito judicial.
<h3>Acordo de não persecução penal</h3>
Em síntese, diante de liminar ou antecipação de tutela, ou de depósito judicial, falta requisito para o recebimento da denúncia, nos termos do art. 395 do CPP.
E o que isso impacta o acordo de não persecução penal?
No caput do artigo 28-A do CPP estão dispostos os requisitos, que devem estar presentes em concurso para o oferecimento do ANPP: (a) justa causa (“não sendo caso de arquivamento”); (b) confissão formal e circunstancial da prática da infração penal imputada; (c) crime praticado sem violência ou grave ameaça; (d) pena mínima inferior a quatro anos.
A previsão expressa do ANPP apenas para situações que não se qualificam como “caso de arquivamento” evidencia a necessidade de demonstração pelo órgão acusador do lastro probatório mínimo a indicar a prática do delito (conduta típica, ilícita e culpável). Mais especificamente: é fundamental para o ANPP comprovação da tipicidade aparente. Os requisitos do ANPP são os mesmos da denúncia, visto que a propositura de acordo é medida alternativa à persecução penal legítima.
Não havendo justa causa para ação penal, com a materialidade do delito ainda em debate, o procedimento preliminar deve ser (a) arquivado ou (b) sobrestado. Isso porque “o ANPP é uma alternativa à denúncia, não uma alternativa ao arquivamento”, nas palavras de Paulo Queiroz<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Nesse sentido, em que pese as divergências teóricas a respeito de se o ANPP mitiga ou não o princípio da obrigatoriedade da ação penal, é incontroverso que não há discricionariedade do membro do MP para ofertá-lo quando ausentes os requisitos que legitimariam o oferecimento de denúncia — circunstância que somente pode ter como consequência jurídica o arquivamento.
Afrânio Silva Jardim, defendendo que o instituto não fragiliza o princípio da obrigatoriedade, aponta a inidoneidade do acordo formulado quando inexistentes elementos que apontem a tipicidade da conduta<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. No mesmo sentido, a posição de Rômulo de Andrade Moreira<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Desse modo, sendo a tipicidade (aparente) um requisito imprescindível para o oferecimento da denúncia, a sua inexistência torna ilegítima não apenas a eventual denúncia, mas também o acordo de não persecução penal formulado na mesma situação.
Sob qualquer ângulo que se analise o instrumento negocial previsto no art. 28-A do CPP é certo que não pode vulnerar a legalidade penal e os <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/direitos-fundamentais">direitos fundamentais</a> dos investigados, não havendo permissão para que procedimentos instaurados para apurar fatos que posteriormente se revelaram fora do alcance da tutela penal sejam manejados para buscar a aplicação de penas, ainda que sob o manto da consensualidade.
<h3>Cabimento de habeas corpus diante de proposta de ANPP</h3>
No cenário acima apresentado, eventual notificação para manifestação de interesse em celebração de ANPP traduz constrangimento ilegal. Isso porque, diante da ilegítima pretensão do Ministério Público, os eventuais notificados se veem premidos a optar entre duas situações igualmente abusivas: (a) aceitar a transação e confessar a prática de infração penal que, nesse momento, na esteira do acima exposto, sequer existe; ou (b) se sujeitar ao desgaste de ser denunciado e tornar-se réu.
A lei processual exige, para a propositura de ANPP, um juízo positivo de materialidade e da autoria de um fato típico. Contudo, nos casos em que a ausência de justa causa e a falta de interesse de agir para persecução penal despontam da situação fático-processual, faz-se necessário um controle jurisdicional do não prosseguimento da persecução, por se tratar de atividade processual em contrariedade com a lei (art. 28-A, caput, CPP). Nesse sentido, por analogia, o <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2306121">HC 86.162/SE</a> (STF, Segunda Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 29/11/2005).
Em decisão recente, igualmente unânime, o STF assentou a possibilidade de controle do não arquivamento pelas instâncias superiores, que podem reconhecer a impropriedade da barganha no processo penal em casos de manifesta ausência de justa causa (atipicidade) (STF: <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5790781">HC 176.785-DF</a>, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 17/12/2019).
<h3>Conclusão</h3>
O depósito judicial retira o interesse de agir do Ministério Público e a liminar ou antecipação de tutela suspendendo a exigibilidade do crédito tributário retira o interesse de agir e a justa causa. O oferecimento de denúncia, nesses casos, deve levar à rejeição, nos termos do art. 395, II e III, respectivamente. No mínimo, deve levar à aplicação do art. 92 do CPP, eis que a matéria de fundo é de exclusiva competência do juízo de fazenda pública.
Sendo o ANPP uma alternativa ao processo e não ao arquivamento, também aí devem estar presentes os mesmos requisitos que se demandaria para o oferecimento da denúncia; assim, depósito ou liminar retiram-lhe o cabimento, tal qual para o exercício do poder punitivo via denúncia. Criando risco ao status libertatis, passível de afastamento pelo habeas corpus, conforme, por analogia, precedentes invocados.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> (Rangel, Paulo. Direito Processual Penal. 28 ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 262).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Queiroz, Paulo. Acordo de não persecução penal – Lei n° 13.964/2019. 15 jan. 2020. Disponível em: &lt;https://www.pauloqueiroz.net/acordo-de-nao-persecucao-penal-primeira-parte/&gt;. Acesso em 29/06/2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Jardim, Afrânio Silva; Amorim, Pierre Souto Maior Coutinho de. Primeiras impressões sobre a Lei n. 13.964/19, aspectos processuais. 14 jan. 2020. Disponível em: &lt;https://emporiododireito.com.br/leitura/primeiras-impressoes-sobre-a-lei-n-13-964-19-aspectos-processuais&gt;. Acesso em 27/06/2022. Destaque nosso.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Moreira, Rômulo de Andrade. O acordo de não persecução penalIn: De Bem, Leonardo Schmitt; Martinelli, João Paulo (Orgs.). Acordo de Não Persecução Penal. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020. p. 205-217, p. 205.

Dinheiro, Real Moeda brasileira

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JOTA

MP está apto a oferecer acordo caso esgotada a instância administrativa e o contribuinte recorra ao Judiciário?

ANPP em crimes tributários: efeitos do depósito judicial ou de liminar

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