Opinião e Análise

Davi Tangerino

Salo De Carvalho

A Lei 12.850/2013 – Lei das Organizações Criminosas – previu o acordo de colaboração premiada, negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesses públicos (art. 3º-A).
Antes de sua reforma, em 2019, era prática comum no Ministério Público que o candidato à colaboração tivesse que confessar todos os ilícitos praticados na vida, uma purgação geral. Com a alteração, pode-se afirmar que é faculdade do candidato eleger quais fatos quer trazer à mesa de negociações, desde que colabore efetivamente em relação àqueles escolhidos. Dito de maneira direta: o candidato narra os fatos que quiser, porém há de fazê-lo de maneira completa em relação àqueles trazidos ao conhecimento da autoridade. Os fatos deixados, em sua inteireza, de fora da colaboração não estão, naturalmente, por ela cobertos; tampouco leva à rescisão do negócio jurídico tê-los deixado de fora. São, portanto, juízos independentes e separados.
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As autoridades adequadas à celebração (Ministério Público e Polícia) e posterior homologação (Judiciário) do acordo são definidas a priori observadas as regras de competência, previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal.
No caso da competência por prerrogativa de foro, é o tribunal que exerce a vis atrativa.
Em casos de investigação criminal, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que havendo indícios de prática delitiva por agente com prerrogativa de foro, os autos, em sua totalidade devem ser remetidos àquela instância, que avaliará, (i) ouvido o Ministério Público, se há elementos mínimos a justificar a condição de investigado; (ii) no caso de outros alegados autores ou partícipes, se prevalecerão as regras de conexão ou de continência; e (iii) oferecida denúncia contra diversas pessoas, se se manterá unidade de processo, ou, com base no art. 80 do Código de Processo Penal (CPP), haverá cisão.
Em resumo: pela jurisprudência preponderante, havendo indícios mínimos de que autoridade com prerrogativa de foro tenha participado de prática de delito, cessa a competência do juízo fixado sem a regra de prerrogativa, e nasce a do Tribunal a quem incumbe processar e julgar, segundo as regras constitucionais, determinada autoridade. Eventual cisão, ou mesmo devolução dos autos à instância ordinária, será determinada pela Corte.
E nas colaborações?
<blockquote class="jota-article__eye">É muito comum que colaborações sejam feitas por um conjunto de pessoas físicas, que compartilhem um feixe comum: pertencem a uma mesma empresa, órgão público, partido, família etc.</blockquote>
O liame entre os crimes confessados no âmbito da colaboração se dá, pois, ora pela conexão por concurso (várias pessoas que praticaram diversos crimes, em diferentes tempo e lugar – conexão por concurso de delitos, cf. art. 76, I, do CPP), ora por continência por concurso de agentes (ou por cumulação subjetiva, cf. art. 77, I, do CPP).
E é também o mais comum que entre os delatados haja pessoas com e sem prerrogativa de função.
Poderia o Ministério Público fatiar os diversos fatos, abrindo espaço para acordo apenas com as autoridades com prerrogativa de foro?
Note-se que ao assim formular a pergunta, já está implícito que o dominus litis da ação penal de iniciativa pública vislumbrou utilidade e interesses públicos na colaboração, de onde se extrai que há – ao menos em tese – indícios mínimos de autoria e materialidade em relação à autoridade delatada.
Assim, como o que resta é aferir liame entre os fatos e os candidatos à colaboração, inclusive em face da autoridade delatada, não pode o Ministério Público fatiar fatos, tarefa do Tribunal, nos termos dos precedentes do STF. Na prática, só a partir do momento do recebimento da denúncia.
Naturalmente que o acordo em si será fatiável em fatos, costumeiramente denominados de anexos. Esse fatiamento justifica-se (i) para mais clara aferição da qualidade da colaboração; (ii) por que os anexos, após a homologação, serão possivelmente remetidos a diferentes órgãos de persecução, seja por força de prerrogativa de foro, seja pela regra territorial, ou mesmo pela regra de cisão de processos (como no caso da Justiça Militar); (iii) por que fatos não conexos ou continentes poderão dar ensejo a mais de uma denúncia, no mesmo foro.
A competência a priori é una; o acordo é uno; a homologação é una, porém os procedimentos nascidos da colaboração não são concentrados em um único órgão, via de regra.
Ocorre que com o advento do acordo de não-persecução penal, surge a possibilidade de uma superposição de âmbitos negociais.
Imagine que um empresário, atendendo a pedido de Deputado Federal (posteriormente bem sucedido em sua reeleição) lhe fornecesse notas frias para fins de falsidade em prestação de contas eleitorais. Além disso, em três ocasiões pagou propina ao parlamentar, com contrapartidas claras. Fatalmente sua colaboração apontará partícipes, ora do núcleo dos doadores/corruptores, ora do núcleo do corrompido/receptor da doação.
Havendo manutenção do foro por prerrogativa quando dos fatos e no momento da colaboração (no caso exemplo, a condição de Deputado Federal), mantém-se a competência do STF. O empresário, então, apresenta-se para uma colaboração, perante a Procuradoria-Geral da República.
Admita-se que 2 funcionários da empresa levaram ao diretório do partido do Deputado as tais notas frias,  e, em três ocasiões diferentes, alto valor em espécie, acondicionado em malas de viagem.
Os “quem,” “como”, “quando” e “de que modo” da operacionalização estão dispersos entre partícipes em doações irregulares/corrupção. O “por quê” e “para quê/quem” sabem-nos o empresário.
Coautor do delito de falsidade eleitoral e de corrupção, ambos em crime continuado, em contexto de criminalidade organizada, o empresário é claro candidato à colaboração premiada.
E os partícipes?
Pelo centro de gravidade do autor, e considerando que a utilidade da colaboração do tesoureiro se maximiza com o que os partícipes sabem e podem corroborar, também a eles se estende o caminho da colaboração.
É inegável, porém, que o mais recente – em termos legislativos - acordo de não-persecução lhes seria mais favorável.
Aqui surge um curto-circuito da superposição dos dois modelos de acordo: a colaboração pressupõe confissão e a implicação de outros agentes, ao passo que o ANPP, apenas a confissão.
E o que fixa a competência do STF, no caso hipotético, é a condição de deputado federal do delatado; o ANPP, porém, não pressupõe um delatado. E também não o proíbe. E mais: nos termos como desenhado o hipotético caso, os funcionários não são capazes de delatar o Deputado, já que as entregas foram feitas no diretório do partido que, por definição, congrega um sem número de possíveis destinatários das notas e do dinheiro.
É inegável, porém, que há um liame entre os diversos aportes causais aos delitos. Mais do que isso, a força da cooperação com o Ministério Público está inegavelmente no conjunto dos três relatos. Aos olhos da acusação, é soma dos relatos e dos elementos de corroboração desse conjunto de pessoas que dará corpo ao material para posterior persecução criminal. Aos olhos dos candidatos, é a reunião do que sabem os tomadores de decisão com o que sabem os executores pulverizados das decisões que darão coerência e amparo probatório suficientes para fins do acordo.
Um caminho para superar o dilema é, usando os conceitos de conexão, continência e concurso de agentes, celebrar três acordos de colaboração perante o STF. As condições do acordo acomodariam os diferentes graus de culpabilidade.
Outro caminho seria aventar-se uma competência intuitu auxillium ou intuito operae, isto é, admitir-se a competência do Tribunal para homologar acordos em que haja implicação de autoridade com prerrogativa naquele órgão jurisdicional.
E não se trataria de solução extra legem.
Ambos os modelos de acordo são negócios jurídicos processuais; ambos admitem (porém apenas a colaboração impõe) que se delate autoridade com prerrogativa de foro. Discrepam – no campo do cabimento – apenas na quantidade de pena mínima, limitada a 4 anos, no ANPP.
Essa solução ao tempo que preserva ao auxiliar da Justiça o melhor desenho de negócio jurídico processual disponível aos candidatos, permite a reunião no Ministério Público, em uma só instância, de todos os elementos de corroboração, sem nenhuma violação de regra processual de competência – eis que há liame entre personagens e prova (continência/conexão).
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cadeia

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JOTA

Antes de reforma da Lei 12.850/2013, era prática comum no MP que candidato à colaboração tivesse que confessar todos os ilícitos praticados na vida

ANPP e foro privilegiado: competência intuitu auxillium?

Antes de reforma da Lei 12.850/2013, era prática comum no MP que candidato à colaboração tivesse que confessar todos os ilícitos praticados na vida