Opinião e Análise

Davi Tangerino

João, preso em flagrante com 20 gramas de maconha e com alguns trocados na carteira, é condenado por tráfico. Réu primário e sem vínculo com organizações criminosas, é candidato ideal para um redutor de pena (minorante), que pode resultar em 1 ano e 8 meses de reclusão, substituível por penas alternativas (a mais recorrente, prestação de serviços à comunidade).
O STJ, a respeito, consolidou que “o tráfico privilegiado é instituto criado para beneficiar aquele que ainda não se encontra mergulhado nessa atividade ilícita, independentemente do tipo ou do volume de drogas apreendidas, para implementação de política criminal que favoreça o traficante eventual” (AgRg no HC 684199/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe 26.11.2021).
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No mesmo Diário de Justiça, de 26 de novembro de 2021, publica-se acórdão no AgRg no HC 701.693/SP (Rel. Min. Joel Paciornik). A turma manteve a decisão do relator que concedera habeas corpus de ofício para reduzir a pena a 1 ano e 8 meses, em regime aberto, substituída por restritivas de direito, cf. a tranquila jurisprudência do STJ. O MPF recorreu.
O acórdão condenatório, prolatado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), afastara o redutor, pois: (i) o réu teria passagens na Vara da Infância e da Justiça, por comércio de drogas, o que demonstraria sua clara “dedicação à mercancia ilícita”; (ii) teria “personalidade desvirtuada”; (iii) e grande quantidade de entorpecentes: 202 porções de cocaína [55,9 gramas de crack] e 26 gramas de maconha, o que (iv) demonstraria que o réu “tem grande envolvimento na organização criminosa e a confiança de seus líderes”. A “grande quantidade de drogas”, para fins de parâmetro, equivale a 9 moedas de 50 centavos (6 de crack, 3 de maconha).
O TJSP é famoso por não seguir a orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça em matéria penal. Isso já gerou discussões públicas, tanto em eventos, como em sessões de julgamento do STJ. Nas palavras do ministro Antonio Saldanha Palheiro: “O que vemos em São Paulo é a reiteração permanente de descumprir, uma afronta realmente em nome do livre convencimento motivado. São fundamentos usados no Direito artesanal, não no Direito de massa que vivenciamos hoje. Esse tipo de posicionamento acaba por trazer um retrocesso para o sistema jurídico como um todo”.
Essa sempre foi uma objeção relevante à prisão após o esgotamento da segunda instância: sem um verdadeiro sistema de precedentes, em que tribunais de apelação podem simplesmente desconsiderar a orientação dos tribunais superiores, inclusive sumuladas, seria um enorme perpetuador de ilegalidades.
O apelo por prisão em segunda instância, fortemente alimentado pelo lava-jatismo, vem impregnado dos mitos da prescrição e do fato de recursos extraordinário não poderem rever os fatos.
Os dados não parecem amparar o primeiro mito. Usando os verbetes “penal e prescrição e ocorrência”, analisei os 100 últimos acórdãos no STJ. Em apenas 17 houve reconhecimento de prescrição, sendo que em um deles, em abstrato, entre o fato e a denúncia, e 8 entre o recebimento da denúncia e a sentença condenatória.
Em um deles, a prescrição se deu pela demora de o Estado iniciar o cumprimento da pena. Em apenas 7 houve prescrição após o trânsito para a acusação, após o quê não sobreveio novo marco (não abri cada um deles para entender em que momento o MP deixa de recorrer), sendo que as ementas explicitam apenas 2 casos em que a prescrição se deu após a interposição dos recursos extraordinários. Um caso é emblemático: julgava-se em 2021 recurso interposto de 2006. Como se vê, em pouquíssimos casos a prescrição se deveu em fase de recursos posteriores à apelação...
Sempre bom lembrar que esses casos, embora raros, tendem a diminuir substancialmente com as alterações na prescrição criadas no pacote Moro.
Também no campo da “revisão dos fatos” o argumento deve ser visto com cautela. É que contabilizados apenas os casos em que a decisão do STJ efetivamente implicou absolvição ou extinção da pena, se lhes dá ares de excepcionalidade. Todavia, não se computam as decisões que sejam genericamente favoráveis ao cidadão: redução de pena e alteração de regime prisional, por exemplo.
Por último, e mais importante, a Constituição é clara: ninguém será culpado antes de decisão condenatória transitada em julgado.
A <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0hk7yogjddlar11314q2lg70r69048123.node0?codteor=1835285&amp;filename=PEC+199/2019">PEC 199/19</a> mexe precisamente no trânsito em julgado, superando a questão de que, iniciado o cumprimento de pena ao final da segunda instância, se estaria executando pena de decisão ainda sem trânsito.
Se aprovada, o trânsito se daria ao final da segunda instância, servindo o STJ e o STF como instâncias de cassação, ou seja, rescindiriam o trânsito em julgado quando houvesse grosso modo violação a leis federais (STJ) ou à Constituição (STF).
Solucionaria a questão do trânsito, porém, permaneceriam as outras mazelas.
Andou bem, portanto, a PEC ao prever a possibilidade de o STJ editar súmulas vinculantes. Agora, os desembargadores renitentes teriam de, em tese, curvarem-se às súmulas vinculantes, já que as demais são consideradas meros sinalizadores, sem força de vincular a decisão de instâncias inferiores.
Supera, também, o cinismo contido na proposta de que apenas as decisões criminais transitassem em segunda instância. Na versão a que tive acesso, o trânsito seria antecipado em todas as matérias.
Por fim, o texto deixa claro que o novo trânsito valeria apenas para ações ajuizadas no futuro, ainda que o fato que lhes deu causa tenha ocorrido antes da alteração constitucional. Traz previsibilidade e evita força retroativa, que seria de questionável constitucionalidade.
Desenha-se, porém, ao menos uma bomba para os futuros gestores.
A anunciada promulgação de parte da PEC do Calote atende a um cobertor curto de que Guedes tinha conhecimento há anos e que chegou no valor a que chegou após recursos extraordinários. Se aprovada, o bolo dos precatórios cresce antecipadamente, precisamente pela “perda” das instâncias superiores.
A PEC, porém, ao menos no âmbito criminal, atende mais a interesses simbólicos, sobretudo quando se tem em vista a enormidade de presos que recorrem presos (e, portanto, já estão cumprindo pena antes do trânsito, de modo cautelar), o baixíssimo índice de conhecimento de recursos especiais e extraordinários e, entre os conhecidos, a extinção da punibilidade, quando declarada, tem mais relação com as fases até a segunda instância do que com os lapsos posteriores, notadamente depois da redação do pacote Moro. Fica a pergunta se vale a pena mexer na Constituição apenas para afagar os ânimos dos que abraçaram, sem nenhum amparo empírico, argumentos ad terrorem lava-jatistas.

STF justiça

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JOTA

PEC 199/19 supera questão de que, iniciada a prisão em 2ª instância, se estaria executando pena sem trânsito

Ainda a prisão em segunda instância

PEC 199/19 supera questão de que, iniciada a prisão em segunda instância, se estaria executando pena sem trânsito