Opinião e Análise

Davi Tangerino

A Ação Direta de Constitucionalidade n. 51, ajuizada pela Federação das Associações das Empresas de Tecnologia da Informação tem uma marca sui generis: a norma cuja constitucionalidade quer ver declarada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – o Decreto 3.810/2001, tratado bilateral de cooperação internacional Brasil-Estados Unidos em matéria penal, “MLAT” – nunca foi declarada inconstitucional ou ilegal pelos Tribunais brasileiros, porém simplesmente ignorada. Pano de fundo fático são ordens judiciais para a entrega de conteúdo de comunicações de usuários de aplicativos de internet, destinadas a empresas brasileiras de tecnologia que, todavia, não são as controladoras dos referidos dados, porém as empresas estadunidenses que as integralizam ou controlam.
Na prática, como bem aponta a petição inicial, quando as empresas argumentam que não podem produzir dados de conteúdo que não controlam, devendo, assim, acionar-se a cooperação internacional para obter os dados de seu real controlador, veem essa fundamentação descartada (primeiro) sem se decidir incidentalmente a ilegalidade ou inconstitucionalidade do MLAT; ou (segundo) sem se apontarem outras normas que teriam derrogado ou revogado o MLAT; e (terceiro) invocando-se lugares comuns, que poderiam ser assim resumidos: estão no Brasil, faturam no Brasil, devem seguir a lei brasileira. Nesse último caso, curiosamente, contrariando a lei brasileira que rege a matéria, o MLAT.
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Em verdade, a ratio oculta das decisões que descartam o MLAT, sem enfrentar sua vigência, desdobra-se em três: (i) normas societárias são irrelevantes em casos criminais, de modo que o ato constitutivo da empresa brasileira, incluindo seu objeto social, é mera formalidade desprezível; (ii) igualmente descartáveis as normas de proteção de dados e as que disciplinam o uso de aplicativos (Marco Civil da Internet e Lei Geral de Proteção de Dados, principalmente) que permitem que empresa estrangeira seja controladora de dados de usuários brasileiros e não obrigam as brasileiras a ela afiliadas a controlarem ou sequer possuírem tais dados; e (iii) o procedimento de cooperação é lento e burocrático.
Sempre bom lembrar que nesses casos as empresas de tecnologia não são os investigados, porém terceiros chamados a cooperar com a investigação criminal de titulares de dados controlados pelas empresas-mãe, estadunidenses. Assim, em que pese haver normas e ritos para desconsideração da pessoa jurídica, elas só seriam aplicáveis aos fatos em análise na hipótese de o desenho societário ter sido construído de maneira fraudulenta, para ocultar ilícitos praticados por seus integrantes.
<blockquote class="jota-article__eye">Difícil sustentar que Microsoft, Apple, Facebook, Google, Yahoo etc. desenhassem suas relações societárias com vistas a não produzir provas para a Justiça brasileira e que isto já não tivesse sido reconhecido pelo Poder Judiciário.</blockquote>
Também parece não haver espaço para que o juízo de higidez de uma norma processual penal ceda àquele da conveniência ou mesmo eficiência. Em sede de normas que regulam o poder punitivo, o centro de gravidade só pode ser o da legalidade, que, por ser garantia constitucional, não admite mitigação à luz do que é mais confortável ao Estado punitivo. Não há dúvida que seria mais conveniente que não fosse preciso renovar os pedidos de interceptação telefônica; claro está que seria muito mais eficiente usar apenas o critério da prevenção no âmbito da fixação da competência; muito mais barato se só houvesse a primeira instância. Todavia, no desenho constitucional brasileiro, toca ao Poder legislativo federal arbitrar o equilíbrio entre a efetividade do sistema punitivo, à luz das garantias constitucionais. Esse equilíbrio se corporifica na lei.
Quando o meio de prova depender da produção de um terceiro, a parte deverá requerê-la ao Juízo (momento de propositura), que poderá ser deferido ou não (momento de admissão), de que nasce o momento de produção da prova.
A fonte de prova no palco da ADC 51 são dados controlados exclusivamente por empresas estadunidenses, que atuam comercialmente no Brasil primordialmente por meio de empresas controladas.
O Código de Processo Penal (CPP) tem um caminho para que o Estado brasileiro obtenha tais fontes: a carta rogatória (arts. 780 e ss.); desde 2001, todavia, Brasil e Estados Unidos se obrigaram a “prestar assistência mútua, nos termos do presente Acordo, em matéria de investigação, inquérito, ação penal, prevenção de crimes e processos relacionados a delitos de natureza criminal” (artigo I, 1, MLAT). Cuida-se de procedimento bilateral de cooperação, com vistas a agilizar a troca entre estados soberanos. De maneira expressa, engloba o fornecimento de documentos e registros e qualquer outra forma de assistência não proibida pelas leis do Estado Requerido (art. I, 2, “b” e “h”).
Tanto a propositura como a admissão passam a se dividir em dois momentos, intercalados: (a) a parte propõe a prova ao Juízo brasileiro; (b) que a admite; (c) ato contínuo, aciona o Ministério de Justiça (Autoridade Central brasileira no MLAT) para que entregue à Autoridade Central estadunidense sua decisão, o que serve, para a justiça americana, como uma proposição de prova, agora pelo Estado brasileiro; (d) cabendo à Autoridade Central estadunidense admiti-la ou não.
Cuida-se de perfeito paralelismo – haja vista a inclusão de outro Estado soberano na cadeia da prova – ao procedimento de coleta, tratamento e produção de prova previsto para feitos a depender exclusivamente de sujeitos apenas afetos à jurisdição brasileira.
<blockquote class="jota-article__eye">A produção de provas fora desse desenho é ilícita.</blockquote>
O STF, portanto, terá uma escolha dicotômica: ou bem considera que o meio acordado com os Estados Unidos para obtenção de dados controlados por empresas americanas viola a Constituição, e declara a inconstitucionalidade, mantendo ou descartando as normas referentes à carta rogatória; ou bem afirma a constitucionalidade, (re)afirmando que procedimento em matéria de produção de prova criminal é garantia, produzido de maneira discricionária pelo Legislador, limitado apenas pela Constituição, e não por juízos ad hoc de conveniência ou oportunidade dos Tribunais brasileiros.
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O episódio 53 do podcast Sem Precedentes discute ações sobre a Lei de Segurança Nacional, que tem sido usada em inquéritos contra críticos de Bolsonaro. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=1062owtx9o4
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JOTA

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