Coluna ABDF

Uma Reforma Tributária silenciosa

Medidas, além de serem adequadas ao enfrentamento do momento em que vivemos, poderiam ser transformadas em perenes

débitos tributários
Crédito: Marcos Santos/USP Imagens

O momento é difícil. Na antessala de uma crise econômica e institucional sem precedentes, é dever de todos evitar tomar medidas disparatadas, sem se deixar cair, ao mesmo tempo, na tentação da letargia.

Essa receita serve tanto para as relações de cunho privado quanto para aquelas desenvolvidas sob a órbita pública. Mas, sem dúvida, por ora, ganha mais relevo quando aplicada ao setor público, notadamente por aqueles órgãos e agentes dotados de poder.

Neste momento, portanto, medidas equivocadas, ou a inação governamental, podem levar ao que bem divisou o filósofo italiano Giorgio Agamben: a passagem de um estado de emergência (como o atual) para um estado de exceção. E estados de exceção geram privações de liberdade e, por vezes, da própria vida.

E se medidas necessitam ser tomadas sob diversas óticas, as de índole tributária merecem especial atenção.

É aqui que temos oportunidade de tentarmos jogar um jogo que seja win-win, e não zero-sum, em que  se torne possível fazer uma reforma tributária silenciosa, por meio da introdução de pequenas medidas, a partir das boas práticas de política tributária que advêm do direito comparado.

De fato, em época de crise, mais até que em momentos de calmaria, não há nada tão positivo quanto seguir os bons exemplos que se extraem da ciência.

Se a abordagem científica é irrenunciável quando se trata de medidas relativas à saúde pública, não menos verdade que essa abordagem deveria também ser perseguida quando da adoção de medidas tributárias, tomadas à luz dos bons exemplos vindos do exterior.

Nesse sentido, é indispensável ter-se por parâmetro o relatório produzido pelo Comitê Fiscal da OCDE (Tax and Fiscal Policy in Response to the Coronavirus Crisis: Strengthening Confidence and Resilience), no âmbito da reunião do G-20, convocada para tratar das medidas tomadas pelos países, a fim de combater a crise do coronavírus.

Constam desse relatório as medidas de natureza tributária a serem consideradas e as que devem ser de todo evitadas, a partir da experiência comparada. Entre as ações recomendadas no campo de batalha fiscal, a OCDE sugere, entre outras, o diferimento do pagamento de tributos e a repactuação de parcelamentos. Entre as que não devem ser adotadas, a criação de novos tributos e o aumento da carga tributária.

E, aqui, constatamos como a ciência é capaz de amalgamar as práticas corretas, seja na saúde ou na tributação, com vistas ao enfrentamento da pandemia coronavírus. Naqueles países em que a inoperância e o empirismo pontificam, o resultado será uma derrota contundente em ambos os campos.

Tome-se por exemplo países como Alemanha, Noruega e Portugal, que adotaram medidas adequadas tanto em termos de saúde (confinamento, difusão de equipamentos médicos) quanto em relação às finanças públicas.

Entre as medidas tributárias adotadas, estão aquelas recomendadas pelo Comitê Fiscal da OCDE, como o diferimento de tributos (IRPF, IRPJ e IVA) em até um ano. Resultado: vitória de 2 x 0, na saúde e nas finanças públicas.

Na contramão, o exemplo da Espanha. Quando já existiam milhares de pessoas contagiadas, no dia 8 de março, o governo espanhol, em vez de recomendar o confinamento, convocou uma passeata de conotação claramente política. Duzentas mil pessoas gritando e passeando por toda a cidade durante todo um dia de domingo.

Resultado: saúde 0 x 1 coronavírus, visto que, na semana seguinte, Madrid, uma das cidades dotadas de um dos melhores sistemas de saúde da Europa, não aguentou a espiral da pandemia causada por uma irracional decisão política.

Materializava-se mais um trágico tipping point, expressão viralizada nestes dias de pandemia pelo profético livro de Malcolm Gladwell. Não contente com a desastrosa gestão na saúde, o desordenado governo espanhol, cujo vice-presidente se qualifica como “leninista”, acaba de apontar duas medidas tributárias “inovadoras”, ambas expressamente desautorizadas pela OCDE.

A primeira, o aumento do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (Impuesto de Sociedades) de 25% para 30%, já para o ano corrente. É dizer, para as poucas empresas espanholas que possam emergir lucrativas depois da crise, que certamente não gerarão base tributável relevante, restarão desestimuladas as gerações de lucro para reinvestimentos, o que poderia ser facilmente coordenado por técnicas especificas do Imposto sobre a Renda (vg. lucro da exploração).

A segunda, a cobrança de um novo tributo, que se arrasta há anos para ser implementado na Europa: o imposto sobre o faturamento de empresas digitais. Trata-se de uma criação desastrosa que flanou por vários países europeus, a partir de uma guerra fria tributária entre Europa e Estados Unidos, mas que até agora não obteve êxito em lugar algum.

Uma espécie tão arcaica quanto o nosso moribundo FINSOCIAL cumulativo e outros experimentos pré-históricos típicos de países com sistemas tributários tão desastrosos como o nosso (v.g., Impuesto sobre Ingresos Brutos, cobrado na Argentina).

Ou seja, o prenúncio de que a Espanha tenha uma das piores recessões da Europa em 2020 – conforme antevisto há pouco tempo no relatório do FMI – nasce da inação e do equívoco na tomada de certas medidas sob os auspícios do coronavírus.

E por aqui?

A verdade é que, se as medidas brasileiras no âmbito da tributação, tomadas no contexto da crise da Covid-19, não foram desastrosas, não há como negar que foram tímidas.

Diferimentos de curto prazo para o pagamento de alguns tributos, retirada de sanções não pecuniárias (v.g., exigência de certidões) e muita confusão derivada do obsoleto sistema tributário brasileiro.

Apesar desse cenário pouco alentador, é daí que nasce a possibilidade de introdução de pequenas medidas que constituam um pacote harmônico de medidas tomadas no contexto da Covid-19.

A primeira dessas, o alargamento e unificação no prazo de recolhimento dos tributos, para trimestral, o que não implica em renúncia tributária. Se, em grande parte dos países europeus, o período de apuração dos tributos deixou de ser trimestral (v.g., IVA) ou semestral (v.g., antecipação do IRPJ), para ser transformado em anual, por aqui alguns tributos foram diferidos por três meses.

É pouco? Talvez não. Mas por que não aproveitar este momento e acabarmos de vez com o frenesi de períodos de apuração tão reduzidos (mensal, semanal e até diário) e passarmos todos os recolhimentos de tributos para o final de cada trimestre?

De uma só vez, tranquilizaríamos e evitaríamos a descapitalização de pessoas e empresas a curto prazo, além de nos alinharmos aos países integrantes da OCDE, nesse quesito. Ainda reduziríamos o custo de compliance das empresas, em um momento em que elas enfrentam a crise.

A segunda, o fim da multiplicidade de contribuições sociais gestadas a partir da Constituição de 1988, ou por ela recepcionadas. O equívoco dessa multiplicidade ficou patente em uma das medidas editadas no âmbito da Covid-19 (diferimento no pagamento de contribuições previdenciárias), que tornou necessária a edição de duas Portarias do ministro da Economia (139 e 150) para que fossem indicadas quais “contribuições previdenciárias” seriam diferidas!

Enquanto a quase totalidade das nações ocidentais possuem apenas duas modalidades (patronal e individual) de contribuições previdenciárias a incidir sobre uma mesma base (remuneração) – que formam o sistema contributivo para financiar a saúde e o sistema de aposentadoria -, por aqui, o financiamento da seguridade social no Brasil se transformou em fonte de desinformação e base de múltiplas incidências.

Retenções na fonte de toda sorte; tributação sobre a folha (desoneração?!) tendo por base o faturamento (?!), além da resiliência das denominadas contribuições parafiscais (vg. INCRA, SEBRAE), que nasceram na França do entreguerras, mas morreram na integração europeia.

No Brasil, essas contribuições se transformaram em uma espécie de “highlander” tributário, que o STF hesita em expurgar, mesmo após a edição da Emenda Constitucional 33/01.

Por fim, a redução radical dos créditos presumidos aplicáveis aos regimes monofásicos, das hipóteses de substituição tributária, que transformaram os tributos não cumulativos, pilar da nossa arrecadação (PIS/Cofins, IPI e ICMS), em cumulativos e “arbitráveis” por segmentos econômicos.

Ainda que o mecanismo de substituição tributária (reverse charge) exista em outros países, no Brasil a exceção virou regra. A sua difusão, aliada à sua natural complexidade, propicia outras anomalias nefastas, como o acúmulo de saldos credores em vários segmentos, notadamente na exportação (quando deveria ser uma substituição para trás como no modelo do IVA europeu), o excesso de compensações tributárias no âmbito do inacreditável sistema de PER/DCOMP, entre outros.

Paradoxalmente, esses regimes híbridos adotados na tributação indireta de valor agregado avançaram em um momento em que o Brasil é referência na informatização fiscal, o que ocorre desde a consolidação do SPED.

De fato, usufruímos de um cenário de modernidade digital no controle da arrecadação, que permite o lançamento de tributos de forma eficiente, desde as micro até as grandes empresas. Não precisamos conviver com as sequelas de regimes híbridos na tributação sobre o consumo.

Por tudo, essas pequenas, mas pontuais medidas, sem prejuízo de outras, além de serem adequadas ao enfrentamento do momento em que vivemos, poderiam ser transformadas em perenes, e,  assim, materializar um start-up para a realização da indispensável reforma fiscal e tributária, de que tanto necessitamos.

Nos anos por vir, e para usarmos uma expressão também adequada a esses tempos de Covid-19, é importante ter em mente que “mais vale prevenir do que remediar”.