Opinião e Análise

Walter Godoy dos Santos Júnior

Doris Canen

A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/inteligencia-artificial">inteligência artificial</a> é a personagem principal dos debates da atualidade. Ora vilã, ora heroína, está presente no dia a dia de todos. É possível ver sua utilização nos mais diversos ramos do direito, como exposto em notícias midiáticas já no início de 2024: desde o INSS que pretende utilizá-la para detectar fraudes em atestados para auxílio-doença e a constante polêmica sobre sua utilização no âmbito das propagandas eleitorais e diversos debates no âmbito da propriedade intelectual e direitos autorais.
É inquestionável o caráter transnacional da inteligência artificial e que ela demonstra a complexidade da sociedade atual desafiando a soberania estatal e os ordenamentos jurídicos internos. Isso gerou orientações de organismos internacionais, como os <a href="https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0449">Princípios de Inteligência Artificial</a>, publicados pela OCDE em maio de 2019 e revistos em 2024, a criação de um observatório para acompanhar o uso responsável da inteligência artificial pela OCDE, e a <a href="https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000381137_por">Recomendação sobre a Ética da Inteligência Artificial da Unesco</a>, publicada em 2022, com foco nos direitos humanos e garantia das futuras gerações. Nos países, existem projetos específicos sobre regulação da IA – no Brasil, o principal é o <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233">PL 2338/2023</a>, em discussão no Senado.
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Enquanto o mundo discute a regulação da inteligência artificial, em paralelo, do ponto de vista tributário, cada vez mais ganha protagonismo a troca de informações entre as autoridades fiscais dos diferentes países. Ambas as questões são delicadas e requerem cuidados para evitar a violação dos direitos dos particulares, principalmente ao sigilo de seus negócios e, ao mesmo tempo, impedir que ocorram, por esses particulares, violações a legalidade facilitadas pelo crescimento tecnológico.
Começando pelo ponto da troca de informações em âmbito tributário, o <a href="https://www.ibfd.org/ibfd-academic/publications/observatory-protection-taxpayers-rights-optr">relatório</a> “Observatory on the Protection of Taxpayers’ Rights - The IBFD Yearbook on Taxpayers’ Rights 2023” aponta que:
“O contribuinte deve ser informado de que será feito um pedido de informações transfronteiriço, porém há uma tendência negativa iniciada há alguns anos em relação ao padrão mínimo de notificação ao contribuinte de pedidos de informações transfronteiriços e, em particular, a melhor prática de informar o contribuinte sobre um pedido de informações transfronteiriço. Progressivamente, um pequeno, mas constante número de países continua indicando desvios tanto do padrão quanto da melhor prática, o que indica uma diminuição nos padrões de transparência em todo o mundo nessa área” (tradução livre, p. 162).
Sergio André Rocha ressalta a imprescindibilidade da garantia da privacidade e, do ponto de vista fiscal, dos direitos dos contribuintes bem como a impossibilidade de compartilhamento das informações obtidas com terceiros Estados (ROCHA, Sergio André, Exchange of Tax-Related Information and the Protection of Taxpayer Rights: General Comments and the Brazilian Perspective, IBFD Bulletin for International Taxation, Setembro 2016, p. 502/516).
Sobre o ponto, o relatório aponta que no Brasil, o contribuinte não tem o direito de ser ouvido pela autoridade tributária antes da troca de informações relacionadas a ele com outro país, mas pode questionar a troca de informações perante o judiciário. Sobre proteção de dados entende o relatório que “um Estado não deve ter direito a receber informações se não for capaz de fornecer evidências independentes e verificáveis de que observa altos padrões de proteção de dados” (tradução livre p. 172).
Interessante apontar que o Brasil participa de diversos acordos de troca de informações, como por exemplo a Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua em Assuntos Fiscais (no Brasil, Decreto 8.842/2016), Lei de Conformidade Tributária de Contas Estrangeiras (Foreign Account Tax Compliance Act- FATCA) (no Brasil, Decreto 8.506/2015), Declaração País-a-País (Country-by-Country Reporting - Instrução Normativa 1.681/2016) e, alterações em tratados para evitar a dupla tributação visando a atualização da cláusula referente a troca de informações e celebração de acordos específicos para troca de informações.
Tais acordos têm clausulas de sigilo dispondo sobre limitações às revelações das informações – que podem ocorrer somente para as autoridades da outra jurisdição e não poderão ser reveladas sem o consentimento expresso por escrito da autoridade competente da parte requerida a terceiros (incluindo autoridades), com exceção de decisões judiciais, dentre outros.
Na legislação brasileira, dispõe o artigo 198 do Código Tributário Nacional,  a obrigatoriedade de sigilo por parte da Fazenda Pública e seus servidores e que trocas de informações devem ocorrer por lei ou convênio (art. 199 do CTN). A Emenda Constitucional 115/2022 elenca a proteção de dados pessoais como garantia fundamental.
Esses pontos de limitação e proteção aos direitos do contribuinte podem ser transportados para a regulação da inteligência artificial que será analisada a seguir.
A função regulatória do Direito desempenha um papel fundamental nesse processo, ajudando a compreender e aplicar normas legais que afetam as operações de mercado de forma equitativa. Patente a necessidade de conciliação inteligente entre os velhos conceitos jurídicos e as novas necessidades da sociedade cada vez mais dependente de intangíveis.
Para Eros Grau (GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007, p.195), a antiga intervenção, na qual o Estado atuava como participante ativo da ordem econômica, foi substituída por uma intervenção indireta, que demonstrou a nova função do Estado como agente regulador da Ordem Econômica.
Sobre a atividade regulatória do Estado, Gilberto Bercovici aponta que:
<blockquote class="jota-article__citation">o repasse de atividades estatais para a iniciativa privada é visto por muitos autores como uma “republicização” do Estado, partindo do pressuposto de que o público não é, necessariamente, estatal.[1]</blockquote>
Assim, a intervenção do Estado no domínio econômico foi legitimada, mas essa atuação só ocorreria quando a liberdade de iniciativa fosse um meio de atingir o bem-estar geral, sendo certo que, atualmente, a atuação estatal está pautada no princípio da subsidiariedade.
As novas tecnologias, entretanto, apresentam desafios ao Estado regulador, principalmente em vista de sua transnacionalidade o que dificulta a regulação que, apesar de necessária tem diversos pontos delicados.
Luiz Fernando Bandeira de Mello, Bruno Crasnek e Juliana Silva Veiga apontam que:
<blockquote class="jota-article__citation">o formato tradicional não é adequado ao dinamismo e a flexibilidade que marcam ferramentas de inteligência artificial, o que obriga que o ordenamento jurídico brasileiro acompanhe os avanços sem criar obstáculos que impeçam a consolidação da inovação, impondo-se a contínua revisão do conjunto normativo regulatório.[2]</blockquote>
Na linha de regulação das novas tecnologias, a União Europeia, em fevereiro de 2024, entrou em vigor o <a href="https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/europe-fit-digital-age/digital-services-act_pt">Regulamento dos Serviços Digitais</a> (RSD) que “regulamenta os intermediários e as plataformas em linha, como os mercados, as redes sociais, as plataformas de partilha de conteúdos, as lojas de aplicações e as plataformas de viagens e alojamento em linha. O principal objetivo deste regulamento é evitar as atividades ilegais e nocivas em linha e a propagação da desinformação. O regulamento garante a segurança dos usuários, protege os direitos fundamentais e cria um ambiente justo e aberto para as plataformas em linha".
A regulação em colaboração pode ajudar a evitar abusos por parte dos particulares e das autoridades governamentais pois as plataformas sabem quais regras devem ser obedecidas de antemão.
Um bom exemplo de sistema de freio e contrapeso para evitar o abuso do poder regulatório das autoridades que lidam com futura regulação da inteligência artificial são justamente balizas envolvendo o sigilo das informações e as boas práticas de notificação do contribuinte sugeridas nas trocas de informações fiscais pois o sigilo e os direitos dos contribuintes de não ter suas informações compartilhadas sem bases legais para tanto não podem ser perdidos de vista.
Considerando a importância do erário público e relevância da cobrança do crédito tributário e de evitar a evasão fiscal, não faz sentido uma autoridade reguladora de inteligência artificial/novas tecnologias ter poderes ilimitados, inclusive além dos permitidos às autoridades fazendárias.
Portanto, a regulação da inteligência artificial é crucial, mas deve ser feita de maneira a promover o desenvolvimento tecnológico sem comprometer os direitos fundamentais e a ética. É importante encontrar um equilíbrio que permita a inovação e o progresso, ao mesmo tempo em que se protegem os valores e direitos essenciais da sociedade.
<hr />
[1] Bercovici, Gilberto; et all Reforma do estado, prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 171-193, jan./jun. 2006. Disponível em: &lt;<a href="http://www.ite.edu.br/ripe/">http://www.ite.edu.br/ripe/</a>
[2] MELLO, Luiz Fernando Bandeira et all, É Possível Regulamentar a IA Sob Uma Visão Tradicional do Direito? In ARAÚJO, Valter Shuenquener, GOMES, Marcus Livio (coord) e CANEN, Doris (org), Inteligência Artificial e Aplicabilidade Prática no Direito, CNJ, 2022, p. 215
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marco legal da inteligencia artificial

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JOTA

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