Opinião e Análise

Gustavo Brigagão

O nosso sistema tributário é hoje um imenso aglomerado de normas, repleto de patologias que o tornam um dos mais complexos do gênero, seja pela forma como constitucionalmente são repartidas as competências tributárias entre as Unidades da Federação, seja pelos conflitos de competência que ele gera, seja pela complexidade que o marca ou, ainda, pela insegurança jurídica que esses fatores, juntos, proporcionam.
Apesar de ter representado extremo avanço na sua criação, em 1965, o sistema tributário brasileiro é dotado de peculiaridades extremas quando comparado com os vigentes no resto do mundo, e não está, de fato, estruturado para dispor adequadamente sobre a forma como devem ser tributadas as riquezas que circulam no mundo moderno.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias"><img class="aligncenter cta-tributos size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/cta-jota-pro-tributos.png" width="688" height="688" /></a>
Perdemos grande oportunidade de atualizá-lo e modernizá-lo no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988. Em sua essência, o sistema original continuou o mesmo, com todas as mazelas que o caracterizavam, e assim permanece até hoje.
As adversidades relativas à tributação do consumo a tornam única e decorrem, principalmente, da multiplicidade de tributos e competências tributárias que a caracterizam: Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI, federal), Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS, estadual), Imposto Sobre Serviços (ISS, municipal) e as contribuições federais para o financiamento da seguridade social (Programa de Integração Social/Contribuição para Financiamento da Seguridade Social ou PIS/Cofins).
O investidor não conhece nem, no mais das vezes, sequer ouviu falar em IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins, com todas as complexidades e regras ilógicas a que esses tributos estão submetidos. Ao investir no país, ele, o investidor, quer lidar com um efetivo “sistema tributário”, que seja capaz de interagir com os demais regimes tributários do resto do mundo.
Portanto, no que concerne à tributação do consumo, a unificação daqueles cinco tributos em um único tributo (federal ou dual) é uma alternativa interessante.
Mas há que ser um tributo efetivamente não cumulativo, que atenda às peculiaridades de todos os setores da economia (entre os quais, destaca-se o de serviços, que gera empregos e tem relevantíssima participação no PIB nacional), que elimine a guerra fiscal, mas de forma tal que não impeça o exercício da extrafiscalidade pelo Estado, mediante a criação de incentivos que atendam aos anseios e às necessidades da nação.
Já no que diz respeito à tributação direta (do patrimônio e da renda), a sua complexidade e as suas inconsistências são consideravelmente inferiores às do consumo, antes referidas. Na verdade, nem se aproximam delas. Não obstante, ela apresenta características que podem e devem ser extintas ou aperfeiçoadas: regressividade, existência de tributos que oneram a mesma base (IR e CSL), ausência de correção monetária das faixas de renda tributáveis, regras inconsistentes na tributação da propriedade e transmissão imobiliária (IPTU, IPVA, ITD e ITBI), só para mencionar algumas.
Imprescindível, portanto, a necessidade de ampla reforma tributária do sistema brasileiro, considerado no seu todo. Há, como dissemos, consenso quanto a isso.
E foram muitas as tentativas de realizá-la. De fato, assim que promulgada a Constituição Federal, em 1988, iniciaram-se as tentativas de reformá-la na parte relativa à matéria tributária.
Diversos foram os projetos que propuseram a alteração da tributação do consumo, sempre mediante a substituição dos tributos existentes por um Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Todos foram, em regra, abandonados e, em seguida, fatiados, para alterar pontualmente a Constituição, muitas vezes, com o único intuito de criar norma constitucional que estabelecesse o oposto daquilo que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgara favoravelmente aos contribuintes.
A tributação da renda, por sua vez, sofreu grande transformação e melhoria em 1995, com a aprovação da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9249.htm">Lei 9.249/95</a>.
Além da criação dos Juros sobre Capital Próprio (JCP), que foi uma inovação brasileira cuja adoção vem sendo, agora, proposta pela União Europeia, bem como dos aprimoramentos nas regras do lucro presumido, que, sem reduzir a arrecadação (pelo contrário, aumentando-a), suavizou enormemente a complexidade da tributação da renda, essa lei foi marcada pela determinação da não incidência do IR sobre a distribuição de dividendos, concentrando-a nos lucros auferidos pela pessoa jurídica, com a pesada carga tributária de 34%.
Inúmeras foram as vantagens decorrentes da criação dessas regras.
No que concerne à não tributação dos dividendos, além de ter tornado o sistema mais simples, com elevados e contínuos aumentos de arrecadação e decréscimo da informalização da economia, a medida propiciou acentuada diminuição dos incríveis níveis de contencioso que enfrentávamos, seja em decorrência da eliminação das distribuições disfarçadas de lucros seja em razão da desmotivação da realização pelos contribuintes de planejamentos tributários agressivos para evitar aquela incidência. Essa medida também propiciou o destrave da distribuição dos dividendos pela empresa e, consequentemente, a maior disponibilidade de recursos para que acionista pudesse diversificar os seus investimentos (evitou-se, assim, o denominado “lock-in effect”).
Quanto à JCP, a sua criação permitiu que as empresas se financiassem com os seus próprios acionistas, evitando, assim, os elevados juros cobrados pelas instituições financeiras.
Foi uma política tributária inteligente, eficiente e de absoluto sucesso, que já perdura no país há quase três décadas.
Como, infelizmente, todos sabemos, os anos de 2020 e 2021 foram marcados por uma devastadora pandemia, que levou o Brasil e o mundo a terem que enfrentar um cenário inesperado e sem precedentes no passado recente.
Isso nos levou a crises de todas as espécies: crise sanitária, crise institucional, crise hídrica, crise cambial, crise fiscal, crise administrativa, crise energética, crise inflacionária, desemprego, economia estagnada, entre outras.
Portanto, com a pandemia, nós, brasileiros, passamos a ter muitos temas sérios com que nos preocupar, além daqueles que já nos atormentavam. A despeito disso, o que mais se discutiu no período pandêmico, e ainda se discute no Congresso Nacional, além das desestabilizações promovidas pelo Poder Executivo? Reforma tributária.
Esse assunto pautou as discussões havidas nos exercícios de 2020 e 2021.
De fato, quanto à tributação do consumo, foram debatidas, à exaustão, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/reforma-tributaria-entenda-propostas-no-congresso-29112021">as PECs 45/19 e 110/19</a>, pelas quais foram apresentadas propostas de unificação de tributos e da sua substituição por um IVA, com regras que geram efeitos opostos àqueles que deveriam ser almejados na instituição de um tributo dessa natureza.
Falo da equivocada definição do conceito de não cumulatividade (já afirmada pelo STF em relação à redação adotada pela Constituição vigente para essa mesma definição), bem como de inconcebíveis restrições que impuseram à aplicação desse instituto, que o deixa muito aquém das promessas de não cumulatividade ampla e irrestrita feitas pelos autores dessas duas PECs.
Falo, também, da alíquota única imposta a todos os setores da economia, do que decorre tratamento igual para desiguais e, consequentemente, intolerável sobrecarga para setores como o de serviços (principalmente, para as sociedades profissionais), cujos integrantes, em regra, não necessitam de insumos para a realização das suas atividades.
Falo, ainda, da extinção da extrafiscalidade (concessão de benefícios fiscais), que se mostrou absolutamente necessária neste período pandêmico. De fato, o que teria sido de nós sem ela? Falo, por último, para não mais me alongar neste ponto, do período de dez anos de transição desta para a nova sistemática de tributação. Sob esse aspecto, o contribuinte brasileiro terá que conviver, ao mesmo tempo, com o atual sistema caótico e, também, com o que se pretende criar, que promete ser tão complexo e gerador de incertezas e litígios quanto o atual.
No nível das contribuições sociais e da tributação da renda, o governo federal apresentou dois desastrosos projetos, resultantes de um fatiamento da reforma tributária do qual resultariam alterações legislativas que seriam promovidas em quatro fases (as duas últimas ainda estão por vir).
O primeiro deles (<a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2258196">PL 3887/20</a>) propõe a aconselhável, porém irrelevante, unificação do PIS e da Cofins (que, atualmente, incidem às alíquotas de 3,65% e 9,25%, nos regimes cumulativo e não cumulativo de incidência, respectivamente) e a sua transformação na denominada Contribuição sobre Bens e Consumo (CBS). O projeto, de constitucionalidade duvidosa, além de apresentar inúmeras e graves inconsistências, muito semelhantes àquelas das PECs 45/19 e 110/19, extingue o regime cumulativo de incidência daquelas contribuições e estabelece que o tributo que as substituirá (CBS) será calculado mediante a absurda e impensável alíquota única de 12% sobre o faturamento – pelo que, mesmo que operem no vermelho, as empresas serão oneradas por essa gravosa incidência.
O segundo projeto (<a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2288389">PL 2337/21</a>) mais se parece com um daqueles desastrosos “pacotões de final de ano” dos anos 1980, com finalidades nitidamente eleitoreiras (financiamento do aumento do Bolsa Família — ou Auxílio Brasil, como queiram) e baseado em alegações “robinhoodianas” de que, por meio dele, estar-se-á supostamente retirando dos mais ricos para dar aos mais pobres. Apesar de proposto por um governo que se diz liberal, esse projeto promove mudanças radicais e retrógradas em políticas tributárias nacionais introduzidas, há décadas, pela Lei 9.249/95.
Por esse projeto (que foi aprovado de forma assustadoramente açodada pela Câmara dos Deputados e aguarda votação no Senado), propõem-se: a) a correção monetária da tabela do IR (em níveis muito aquém do necessário à atualização dos valores que a compõem e, também, muito abaixo do prometido na campanha presidencial realizada pelo presidente da República) e, como contrapartida e em enorme retrocesso, b) a extinção do JCP e o retorno à tributação dos dividendos, entre outras medidas.
Alega-se, para tanto, que, no vigente sistema de tributação da renda, há séria disparidade de tratamento entre pobres e ricos, consistente no fato de que os “ricos”, sócios de pessoas jurídicas, são isentos do IR sobre os dividendos que recebem, enquanto os “pobres”, os assalariados, são tributados em valores que podem chegar a 27,5% da renda por eles auferida.
Quem faz essa alegação se esquece de que o dividendo nada mais é do que valor decorrente do lucro que se forma na empresa, este já gravosamente tributado em carga equivalente a 34%. Esquece-se, também, de que os sócios dessas sociedades, além de assumirem o risco do negócio e não usufruírem das benesses decorrentes das relações empregatícias, são empreendedores e geradores de empregos. Além disso, o fato de serem sócios não indica, de forma alguma, que sejam “ricos”. Eles pertencem a todas as classes sociais. Nada há em relação a eles que os identifique, pelo simples fato de serem sócios, com sinais exteriores de riqueza ou capacidade contributiva. Há, por outro lado, no País, assalariados cujas remunerações superam, em muito, o faturamento alcançado pela grande maioria das PJs constituídas. Em suma, ser pobre ou rico nada tem a ver com o fato de ser sócio ou assalariado.
Também quem segue essa linha de raciocínio “robinhoodiana” costuma alegar que o lucro presumido realça a diferença de carga tributária entre os sócios e os assalariados, em decorrência de as margens presumidas de lucro serem baixas.
Ora, se o problema é esse, que sejam aumentadas as margens de lucro desse regime de tributação, mas que jamais se pretenda destruir política tributária que vem sendo adotada com êxito durante essas três décadas, sob o pretexto de promover-se um sistema mais igualitário. Do contrário, voltaremos ao cenário anterior à edição da Lei 9249/95, com todas aquelas mazelas a que já nos referimos.
Esse projeto é de tão baixa qualidade, que um grupo por nós organizado com mais de duas centenas de entidades — representativas de todos os setores da economia e com atuação em todo o território nacional — subscreveu um manifesto para veementemente pleitear ao Congresso Nacional o imediato arquivamento da proposta.
O que se constata, portanto, diante de tudo o que foi demonstrado até aqui, é que, em vez de uma reforma tributária ampla do sistema nacional, como ocorreu em 1965, o que há no atual cenário são propostas veiculadas por três projetos de alteração das regras de tributação no país totalmente retrógradas e desconexas.
Essa desconexão pode ser constatada pela simples verificação de que, caso esses três projetos fossem aprovados na forma como estão, a carga tributária por eles proporcionada (nas sociedades profissionais, por exemplo, cujos faturamentos muito se aproximam dos lucros e dividendos que geram) seria algo em torno de 60 a 70% das receitas por elas auferidas! De fato, tal carga corresponderá ao somatório de 37,1% (IR e CSL), 12% (CBS) e, aproximadamente, 20% (IVA)!
Isso é razoável? Não, isso está muito longe de ser razoável.
Para que resultados como esse sejam evitados, resta evidente que as possíveis mudanças do sistema tributário nacional têm de ser examinadas e ponderadas de forma abrangente, e não isolada.
Uma comissão de juristas e economistas do mesmo calibre dos que criaram o sistema vigente em 1965 deve ser formada com o objetivo de elaborar um anteprojeto que consubstancie alterações das quais decorram o aprimoramento da tributação brasileira.
Caberá, então, ao Congresso Nacional, sem o lamentável açodamento que marcou a aprovação do PL 2337/21 na Câmara, votar as alterações propostas, mas não sem antes observar a tramitação do projeto em todas as comissões das duas Casas do Legislativo, bem como a realização de audiências públicas que permitam intenso debate sobre as novas regras com a sociedade, com os estados e municípios e todos os setores da economia por elas atingidos.
O que propomos é algo muito semelhante ao trâmite que o Senado, na pessoa do senador Angelo Coronel (PSD-BA), vem responsavelmente adotando no exame e relatoria do PL 2337/21. Essa é a forma adequada de lidar com a complexidade da matéria e com as sérias consequências que podem decorrer das alterações por ele propostas.
Isso é o que propomos no que concerne ao “como fazer”, referido no título desta coluna.
E quanto ao “quando fazer”?
De fato, além da necessidade de uma reforma tributária global (e não fatiada) do sistema, há ainda esse outro aspecto: o momento em que todas essas mudanças estão sendo propostas por aqueles três PLs.
O Comitê Fiscal da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em meados de abril de 2020, no âmbito da reunião do G20, produziu o relatório intitulado “Tax and Fiscal Policy in Response to the Coronavirus Crisis: Strengthening Confidence and Resilience” <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Por ele, o órgão aconselhou diversos países no sentido de que o enfrentamento da Covid-19 fosse feito em quatro fases: as três primeiras fundadas na extrafiscalidade (de forma a que as empresas se mantivessem vivas e geradoras de empregos); a quarta e última fase, implementada somente quando a crise já tivesse passado (o que é muito distante da realidade brasileira), seria dedicada ao necessário acerto das finanças públicas, abaladas com o impacto financeiro resultante das medidas de apoio prestadas a empresas e famílias nas fases anteriores.
Portanto, o momento atual não é, definitivamente, próprio para a discussão de reforma tributária, não só pelo período atípico em que estamos, como também pelo fato de que é mandatório que as mudanças nas regras tributárias somente ocorram após a tomada de medidas que propiciem reequilíbrio fiscal, em que os gastos públicos sejam encolhidos e a carga tributária necessária ao seu enfrentamento, reduzida à menor possível.
Já se fez, ainda que não a contento, a reforma previdenciária, que representa o maior dos gastos públicos. Restam, ainda, para dizer o mínimo, a reforma administrativa, a definição e execução do plano de privatizações, bem como a tomada de medidas eficientes e necessárias ao reequilíbrio das finanças públicas.
Fazer reforma tributária com o Estado inflado e necessitando de receitas extras para cobrir os gastos públicos incorridos neste período calamitoso é medida inoportuna e, consequentemente, equivocada. Decisões definitivas não devem ser tomadas em tempos de crise.
Antes de pensarmos em reforma tributária, temos que trazer o tamanho do Estado a um nível satisfatório e, aí sim, definirmos o nível de tributação que seja com ele condizente.
Essa será a reforma tributária que fará do Brasil um país melhor.
Vamos devagar e cuidadosamente, porque temos pressa!
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://read.oecd-ilibrary.org/view/?ref=128_128575-o6raktc0aa&amp;title=Tax-and-Fiscal-Policy-in-Response-to-the-Coronavirus-Crisis">https://read.oecd-ilibrary.org/view/?ref=128_128575-o6raktc0aa&amp;title=Tax-and-Fiscal-Policy-in-Response-to-the-Coronavirus-Crisis</a>

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JOTA

Fazer reforma com o Estado inflado e necessitando de receitas extras neste período calamitoso é medida equivocada

Reforma tributária: Estado deve chegar a um tamanho satisfatório antes dela

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