Opinião e Análise

Luiz Felipe Centeno Ferraz

Natalie Matos Silva

Entre as várias novidades trazidas pela <a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/155647">Medida Provisória 1152</a>, publicada no último dia 29 de dezembro, a possibilidade de celebração de Advance Pricing Arrangements (APAs) pela Receita Federal do Brasil foi uma das mais esperadas.
Como sabemos, os APAs são acordos feitos entre contribuintes e seus fiscos sobre os critérios a serem adotados na determinação dos valores adequados para suas operações com partes relacionadas (tais como método aplicável, comparáveis disponíveis e ajustes a serem realizados) durante um determinado período. Tudo isso antes que tais operações – consideradas controladas – sejam realizadas (embora haja a possibilidade de APAs retroativos). Trata-se de um tipo instrumento até hoje inédito na experiência brasileira, embora nos últimos anos a Receita Federal tenha timidamente se aberto ao contribuinte para determinadas negociações, como é o caso da transação.
Essa ideia de acordo substitui a imposição de Autos de Infração anos após as transações e é, assim, extremamente positiva por conferir a desejada segurança jurídica e a sonhada previsibilidade na aplicação dos métodos de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/precos-de-transferencia">preços de transferência</a>, encurtando distâncias entre fisco e contribuinte.
A celebração de APAs é prática comum nos Estados Unidos e na Europa há décadas. Do lado norte-americano, entre 1991 e 2021 foram apresentados 2.936 pedidos de APAs. Foram 150 os APAs apresentados especificamente em 2021, sendo 16 unilaterais, 121 bilaterais e 8 multilaterais. Não é pouco. Segundo dados do Internal Revenue Service (IRS),<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> o prazo médio da conclusão dos APAs unilaterais naquele país é de 24 meses, enquanto o dos bilaterais é de 52 meses. Em 90% dos casos, os APAs são aprovados com prazos de validade que variam entre 5 e 15 anos.
Os números europeus são menores mas também impressionam: no ano de 2019, foram apresentados 1.487 pedidos de APAs, sendo que 1.136 foram aprovados,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> com prazo médio de negociação variando entre 24 e 46 meses.
Se imaginarmos que cada APA representa um contencioso a menos (ou vários contenciosos a menos, considerando que podem valer por anos), conseguimos estimar a quantidade de processos evitados nos tribunais norte-americanos e europeus ao longo do tempo – e, mais, os gigantes valores contingentes os quais as empresas naquelas jurisdições deixaram de registrar em seus balanços.
Isto tudo faz muito sentido: o assunto, árido e técnico, pautado muitas vezes em premissas e análises contábeis e financeiras atestando a comparabilidade de transações e a correção na adoção de métodos, não é da especialidade de juízes federais ou mesmo julgadores administrativos sem formação específica. É mais adequado que sejam revistas de antemão e entre técnicos das Receitas Federais e dos contribuintes interessados.
Dado este contexto, havia (como de fato há) grande expectativa sobre a adoção dos APAs no Brasil, já que seria uma revolução termos nossos tribunais administrativos esvaziados destas discussões. A nosso ver, esta expectativa pode, no entanto, ser frustrada de duas formas no que diz respeito à efetividade e alcance do mecanismo.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
<h3>Efetividade: processo de consulta</h3>
Ainda que os APAs tenham originalmente nascido nos Estados Unidos, a doutrina sobre o assunto é hoje coberta nos guidelines<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ocde">OCDE</a>) para seus países-membros. Em se tratando de acertos discutidos entre as Receitas Federais e os contribuintes, como discutimos acima, eles se distanciam das consultas privadas (private rulings), as quais se destinam a responder questões legais, com base em um arcabouço fático apresentado pelo contribuinte – o qual não é questionado.
Ao contrário do padrão OCDE, o APA brasileiro se propõe a ser conduzido por meio de processo de consulta específico a respeito da metodologia a ser adotada pelo contribuinte para o cumprimento do princípio arm’s length.
Como estabelecido pelo artigo 39 da MP 1152, esta chamada metodologia compreende a análise e aceitação dos critérios adotados para a determinação dos termos e condições que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em transações comparáveis, tais como aqueles relativos (i) à seleção e à aplicação do método mais apropriado e do indicador financeiro examinado; (ii) à seleção de transações comparáveis e aos ajustes de comparabilidade apropriados; (iii) à determinação dos fatores de comparabilidade considerados significativos para as circunstâncias do caso; e (iv) à determinação das premissas críticas quanto às transações futuras.
A ideia é que a solução de consulta proferida nesses termos seja válida por até quatro anos, podendo ser prorrogada por dois anos mediante requerimento do contribuinte e aprovação da autoridade competente. A metodologia poderá, inclusive, por autorização da Receita Federal, ser aplicada aos períodos de apuração anteriores se constatado que os fatos e circunstâncias relevantes sejam os mesmos que foram considerados para a emissão da solução de consulta.
A bem da verdade, a Exposição de Motivos da MP 1152 deixa clara uma evidente preocupação em diferenciar a consulta prevista em seu artigo 39 do processo de consulta tradicional, fundamentado no Decreto 70.235/1972.
À semelhança do disposto nos guidelines da OCDE, a Exposição de Motivos explica que a diferença residiria no fato de que aqui não se está diante de uma medida que tem por finalidade apenas oferecer uma interpretação a respeito da legislação tributária sobre a matéria consultada pelos contribuintes. Na solução de consulta da MP 1152, a situação concreta é analisada em mais detalhes, a fim de se estabelecer a metodologia a ser utilizada pelo contribuinte e os demais aspectos atinentes ao cumprimento das normas de preços de transferência.
É claro, no entanto, que esta pretendida análise mais minuciosa da situação concreta apresentada pelo contribuinte isoladamente não transforma o procedimento previsto no artigo 39 da MP 1152 em legítimo APA se a possibilidade de real negociação e diálogo não estiverem presentes.
É neste ponto que se percebe que a frustração em relação ao APA brasileiro está no fato de que um processo de consulta sugere uma unilateralidade que parece fugir ao escopo do que se entende por APA em âmbito internacional, e de como este é praticado (o verdadeiro arrangement, como diz o nome). Afinal, uma consulta em nada se assemelha a uma negociação, e nela tampouco há espaço para um esperado diálogo entre fisco e contribuintes.
Para agravar a situação, um processo de consulta induz ao justificado receio de que contribuintes se vejam em situações de ampla abertura de informações ao fisco e que, em uma resposta negativa, fiquem expostos a riscos de autuações com relação ao passado – como aliás, ocorre em qualquer processo de consulta. Neste caso, terão caído por terra os autodeclarados objetivos do APA na MP 1152 envolvendo a promoção de segurança jurídica, a diminuição dos custos de conformidade para os contribuintes e a redução de litígios sobre preços de transferência.
<h3>Alcance: unilateralidade vs. bilateralidade</h3>
Na prática internacional, os APAs podem ser firmados pelo fisco apenas com o contribuinte em sua jurisdição (unilaterais) ou ter como partes também as autoridades fiscais e a parte relacionada do país ou países envolvidos na operação controlada (bilaterais ou multilaterais).
Em suas guidelines, a OCDE recomenda a adoção de APAs bilaterais ou multilaterais<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> como forma de prevenir a dupla tributação da renda. O APA unilateral considera apenas a segurança jurídica no âmbito de uma jurisdição considerada, mas não da operação como um todo – é, portanto, menos abrangente.
Na forma como redigida, a MP 1152 não sugere a possibilidade de celebração de APAs bilaterais ou multilaterais, embora também não a exclua. Evidentemente, o APA previsto na MP 1152 encontra-se delineado em termos ainda bastante amplos, e certamente deverá ter suas minúcias procedimentais e consequências explicitadas em atos normativos editados pela Receita Federal, caso aprovada a MP 1152 nos termos em que proposta.
De todo modo, vale lembrar que o Mutual Agreement Procedure (MAP), mecanismo pelo qual se poderia evitar a dupla tributação – e que poderia ser o meio adotado para concretizar os APAs multilaterais ou bilaterais – foi até hoje pouco ou nada utilizado pelo Brasil, o que demonstra que o país ainda precisa se abrir à prática de negociar com as autoridades tributárias de outras jurisdições.
A nosso ver, uma conversão do texto proposto em lei deveria reformar todo o processo, trazendo a possibilidade de fisco e contribuinte efetivamente se ajustarem em situação de maior igualdade, e com procedimentos que estimulem a bilateralidade e a multilateralidade. Ainda que uma flexibilização do mecanismo de consulta e do alcance naturalmente possa vir por regulamentação posterior da Receita Federal, seria importante não deixar para o nível infralegal questões que decidirão se o APA brasileiro será ou não um instrumento a efetivamente reduzir o alto contencioso tributário no país.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://www.irs.gov/pub/irs-drop/a-22-07.pdf">https://www.irs.gov/pub/irs-drop/a-22-07.pdf</a>. Acesso em: 19 jan. 2023.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="https://ec.europa.eu/taxation_customs/system/files/2021-04/apas_2019.docx.pdf">https://ec.europa.eu/taxation_customs/system/files/2021-04/apas_2019.docx.pdf</a>. Acesso em: 19 de janeiro de 2023.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Se há uma boa notícia sobre o assunto APAs na MP 1.152, ela está no custo: uma vez aceito o pedido de consulta pela autoridade competente, o contribuinte recolherá uma taxa de R$ 80.000,00 (ou R$ 20.000,00, para o pedido de extensão do período de validade da resposta à consulta). Ainda que determinados países não apresentem qualquer custo para análise de APAs (Áustria, Bélgica e França, por exemplo), o valor brasileiro segue uma linha de valores médios para demais países da Europa, como a Alemanha (entre 10,000 e 20,000 euros) e Luxemburgo (10,000 euros) – e é bastante inferior ao valor cobrado pelo IRS norte-americano (113,500 dólares para APAs).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> OECD. OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2022. Paris: OECD Publishing, 2022, p. 215-216.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2022. Paris: OECD Publishing, 2022, p. 223.

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Um novo capítulo na relação entre fisco e contribuintes em matéria de preços de transferência

Os Advance Pricing Arrangements na MP 1152/22

Um novo capítulo na relação entre fisco e contribuintes em matéria de preços de transferência com a MP 1152