Apesar da recente aprovação pela Câmara dos Deputados do Projeto de Lei n.° 2.337/2021, o qual traz importantes alterações em relação à tributação sobre a renda e considerado, com razão, o tema do momento que está deixando os tributaristas e boa parte do empresariado nacional ‘em polvorosa’, vou pedir respeitosamente vênia aos leitores dessa coluna, para fazer uma breve pausa em relação às oportunas e sempre bem-vindas discussões e críticas relacionadas a esse tão polêmico projeto de lei, para tecer algumas considerações sobre a Lei Complementar n.° 87/1996, Lei Kandir, principal norma que rege o ICMS e que hoje, dia 13 de setembro de 2021, completa 25 (vinte e cinco) anos de publicação.
A Lei Complementar n.° 87/1996 que veio substituir o antigo Convênio ICM n.° 66/1988, foi concebida pelo Congresso Nacional em atendimento ao art. 146, incisos I, II e III, alínea ‘a’ da Constituição Federal, a partir da iniciativa do então Deputado Federal Antonio Kandir, e teve como papel principal estabelecer normas gerais em relação ao ICMS, principal tributo dos Estados, definindo o seu fato gerador, base de cálculo, e os contribuintes, além de ter tentado dispor sobre os ‘aparentes’ conflitos de competência havidos em matéria tributária entre a União, mais especificamente em relação ao IPI, os Estados relativamente ao ICMS, e os Municípios no que tange ao ISS.
Deve ser ressaltado que a referida norma, privilegiando um postulado de comércio internacional de que não se ‘exporta tributos’, também inovou, mediante permissivo constitucional, ao instituir verdadeira isenção heterônoma de forma ampla e irrestrita em relação às operações que destinem bens e mercadorias ao exterior, e que após a advento da EC n.° 42/2003 foi erigida à condição de imunidade constitucional (art. 155, § 2.º, inciso X, alínea ‘a’ da CRFB).
A publicação da Lei Kandir foi incialmente bem recebida e saudada pelos Estados federados e contribuintes em geral, trazendo uma visão mais moderna ao ICMS, e talvez a maior delas tenha sido exatamente o intuito de se adotar para esse imposto, o conceito de crédito financeiro (art. 20, caput da LC n.° 87/1996) na busca de uma não cumulatividade plena, inspirada no modelo do IVA europeu, contrapondo a ultrapassada concepção de crédito físico trazida pela legislação do IPI e replicada pelos antigos Decreto-lei n.° 406/1968 e Convênio ICM n.° 66/1988.
Contudo, a visão mais vanguardista de crédito financeiro, aliada à desoneração ampla e irrestrita das operações de exportação, sem que houvesse durante anos uma compensação adequada pela União, acabou trazendo certo desconforto por parte dos Estados federados que se sentiram prejudicados alegando perdas financeiras, tendo para tanto se movimentado junto ao Congresso Nacional na tentativa de mitigar o referido ‘prejuízo’. Nesse ponto, conseguiram alterar a redação original da lei para parcelar os créditos de ICMS sobre a aquisição de bens destinados ao ativo permanente em 48 (quarenta e oito) meses, limitar a apropriação de créditos de energia elétrica, dentre outros, além terem sucessivamente adiado a possibilidade de crédito sobre os bens de uso e consumo, que até hoje não possuem uma definição legal uniforme.
Por seu turno, deve ser salientado que a questão referente às compensações aos Estados em razão das perdas financeiras por eles suportadas pela desoneração plena do ICMS das operações de exportação parece ter sido temporariamente resolvida em razão do grande acordo judicial celebrado entre Estados e União no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n.° 25 e que resultou na Lei Complementar n.° 176/2020, segundo a qual os recursos compensatórios das referidas perdas serão desembolados pela União até 2037.
No âmbito privado, porém, para os contribuintes exportadores, ainda remanesce o direito de obter a compensação pelos resíduos de crédito de ICMS, tendo em vista os mecanismos existentes e pouco eficazes para que possam realizar o eventual crédito acumulado por eles suportados e decorrentes das operações de exportação.
Ao longo desses 25 (vinte cinco) anos, apesar de ter sido sua função precípua, a Lei Kandir não conseguiu evitar o crescimento do contencioso tributário afeito ao ICMS face à ausência de definições claras e assertivas em seu texto.
Sem ter a pretensão de exaurir a questão, inexiste até hoje previsão na legislação complementar acerca do conceito do que seja material intermediário e bens de uso e consumo para fins de apropriação de crédito do ICMS, deixando que cada Estado tenha seu próprio entendimento, fato que tem perpetuado a glosa de créditos por parte das autoridades fiscais estaduais, sem que para tanto haja um desfecho definitivo por parte do nosso Judiciário (STJ, REsp. n.° 1.366.437, Relator Ministro Benedito Gonçalves; STJ, AgRg no Agravo em REsp. n.° 142.263, Relator Ministro Benedito Gonçalves; STF, RE. n.º 689.001, Relator Ministro Dias Toffoli).
Por sua vez, no âmbito do instituto da substituição tributária (arts. 8.º, 9.º e 10), a referida lei também pecou ao não definir adequadamente a possibilidade e formas de ressarcimento/complemento do ICMS-ST nas situações de vendas realizadas pelos contribuintes substituídos por valor inferior (ressarcimento) ou superior (complemento) ao que serviu de base presumida. Tal questão demorou anos perante o STF para ser definitivamente decidida (julgamento conjunto do RE n.º 593.849/MG e das ADIs ns.º 2.777/SP e 2.675/PE) sendo certo que mesmo após a referida decisão ainda inexiste norma complementar que defina a possibilidade de se exigir do contribuinte substituído o complemento da parcela do ICMS-ST em caso de vendas feitas em valores superiores à base que foi presumida.
Também não são raras as lides e interpretações diversas havidas no âmbito do ‘aparente’ conflito de competência existente entre Estados (ICMS), União (IPI) e Municípios (ISS), fato potencializado pela dinâmica evolutiva da nossa sociedade e o surgimento das novas tecnologias e economia digital. Nesse caso, face às lacunas existentes quando do manejo conjunto da legislação do ICMS (LC n.° 87/1996), do ISS (LC n.° 116/2003) e do IPI (Regulamento do IPI), o contribuinte muitas vezes não sabe qual tributo deve recolher, ficando à mercê das mais variadas interpretações e exigências por parte dos entes federal, estaduais, e municipais, sendo esse um dos principais fatores de contingências tributárias nas empresas nacionais hoje em dia.
A ausência de definição clara na Lei Complementar n.° 87/1996 da base de cálculo, do contribuinte e da hipótese de incidência no que tange ao diferencial de alíquotas (DIFAL), nas vendas interestaduais para não contribuintes trazidas pela EC n.° 87/2015 também foi objeto de discussão no Supremo Tribunal Federal (ADI n.◦ 5469 e do RE n. 1287.019, Tema 1093 de Repercussão Geral), ocasião em que foi deliberada pela necessidade de existência de Lei Complementar para exigência do DIFAL. É bem verdade que a referida decisão cinge-se às hipóteses de vendas interestaduais para não contribuintes, porém a ratio decidendi pode ser estendida também à cobrança do DIFAL incidente nas aquisições interestaduais de bens destinados ao ativo imobilizado e uso e consumo por contribuintes e cujos elementos básicos do fato gerador nunca foram previstos originariamente no bojo da Lei Complementar n.° 87/1996.
Parece evidente que a Lei Kandir pretendeu dar passos no sentido de modernizar o ICMS, porém, por outro lado acabou ensejando um sem-número de conflitos por ela não solucionados ou que foram abordados de forma insuficientes, alguns inclusive mencionados no presente texto.
Ademais, pensando nessas e outras questões, eu em conjunto com os professores e amigos Juselder Cordeiro da Mata e Valter de Souza Lobato conseguimos reunir grandes autores e estudiosos do Direito Tributário que se dedicam, diuturnamente ao ICMS e à tributação indireta em geral, na obra coletiva intitulada: 25 anos da Lei Kandir: questões controversas do ICMS, Arraes Editores, e cujo lançamento, apoiado pela ABDF/ABRADT, ocorrerá hoje, dia do aniversário da referida lei, às 18 horas no canal da ABDF no YouTube, evento para o qual todos estão convidados.
Apesar de pessoalmente entender que não nos encontramos em um momento político, institucional, econômico e social estável e adequado para discutirmos eventual reforma tributária estrutural, é fato que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.° 110/2019, voltou a ganhar corpo no Senado Federal, sendo que uma das suas proposições é exatamente a alteração da tributação sobre o consumo no sentido de torná-la mais simples e justa através da criação do denominado IVA dual o qual aglutinaria de um lado vários tributos federais sobre o consumo e de outro o ICMS e o ISS.
Há ainda um longo caminho a ser percorrido para esse fim, bem como a necessidade de equalização dos vários interesses financeiros envolvidos por parte dos entes federados, porém que os problemas e questões enfrentados nesses 25 (vinte cinco) anos da Lei Kandir, possam enriquecer os debates relacionados à PEC n.° 110/2019 e que nossos parlamentares a partir de uma visão Rawlseana se coloquem efetivamente sob o ‘véu da ignorância[1]’ no sentido de anteverem e evitarem todos os problemas que possam advir da sua aprovação, pois o que menos precisamos hoje no Brasil é de mais contingência e conflitos tributários.
[1] Situação hipotética, dentro da concepção filosófica liberal de justiça desenvolvida por John Rawls, a qual garante que ninguém seja favorecido ou desfavorecido quando da escolha dos princípios de justiça a serem seguidos (RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. de Jussara Simões. 3. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008, pp. 14 e 15).