Opinião e Análise

Flávia Cavalcanti

David H. Gershel

Se o fenômeno da globalização tem contribuído ao longo das últimas décadas para a intensificação dos fluxos de bens, capitais e pessoas, o corrente processo de digitalização da economia tem reforçado ainda mais essa tendência, possibilitando o desenvolvimento de interesses, em suas múltiplas projeções, nas mais diversas jurisdições.
Essa crescente mobilidade, cumulada com diversos outros fatores — como aqueles ligados a instabilidades políticas, crises econômicas e, até mesmo, a significativas assimetrias no estatuto jurídico que rege pessoas e investimentos em cada país — fomentam a busca por estruturas pessoais, patrimoniais e negociais mais eficientes. Como resultado, verifica-se uma escalada, nos últimos anos, das migrações de “high net worth individuals” (HNWIs)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Dentre os destinos mais frequentes, sem dúvidas, figuram os Estados Unidos.
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Ganha destaque, nesse contexto, o necessário desenvolvimento de planejamento pré-imigratório, que, dentre outras análises, deve cuidar das aproximações e dos distanciamentos entre os ordenamentos tributários dos países de origem e de destino, a fim de que sejam evitados efeitos fiscais adversos e ineficiências. A atenção quanto a esses elementos deve ser redobrada em casos envolvendo mudanças de / para jurisdições como o Brasil e os Estados Unidos, considerando não apenas as complexidades das suas legislações domésticas e ausência de tratado internacional entre eles, mas também o já conhecido rigor da sistemática tributária deste último país. Além de oferecer um panorama geral sobre determinados aspectos dessa sistemática, nossas breves considerações neste artigo pretendem ressaltar como a utilização de Trusts (desde que adequadamente estruturados) pode mostrar-se um instrumento útil no âmbito do referido planejamento pré-imigratório.
Tributação sobre a Renda de HNWIs nos Estados Unidos
Cidadãos, residentes permanentes (green card holders) e indivíduos que se enquadram no chamado “substantial presence test” devem submeter seus rendimentos auferidos em qualquer lugar do mundo<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> ao imposto de renda (IR) federal dos Estados Unidos a alíquotas progressivas que podem alcançar 37% — já havendo manifestações do novo governo de Joe Biden no sentido de majoração para até 39,6%<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Os rendimentos auferidos por esses contribuintes englobam itens como salários, dividendos, juros, aluguéis, rendimentos empresariais, ou quaisquer valores de mercado atribuídos a serviços ou ativos recebidos por esses indivíduos que não por meio de doação, herança ou legado.
As bases tributáveis podem, ainda, ser integradas por outros itens, tais como parcelas proporcionais dos resultados de partnerships, ou mesmo de outras entidades, inclusive estrangeiras, que sejam consideradas “transparentes” sob a perspectiva tributária dos Estados Unidos (e.g., disregarded ou flow through entities), independentemente de qualquer disponibilização efetiva. No tocante aos investimentos detidos em entidades fiscalmente “opacas”, os benefícios de eventual diferimento devem ser sopesados em face de potenciais ineficiências, como um duplo nível de tributação ou outros aspectos negativos.
Ademais, tais entidades opacas devem ser testadas para fins de enquadramento como “Controlled Foreign Corporations” ou como “Passive Foreign Investment Companies”, caso em que poderão ficar submetidas a tratamento fiscal mais gravoso. Nessa esteira, os veículos de investimento e modelos negociais adotados pelos HNWIs devem ser cuidadosamente avaliados, para que sejam realizadas opções eficientes quanto às classificações fiscais, a serem adotadas em relação a cada estrutura (“check-the-box elections”).
Além do IR federal, os cidadãos e residentes fiscais dos Estados Unidos podem, ainda, se sujeitar ao Medicare Surtax de 3,8%, incidente sobre rendimentos passivos (e.g., juros, dividendos, ganhos de capital, aluguéis, royalties) que ultrapassem determinados montantes. Somam-se a essas tributações em nível federal as imposições sobre a renda cobradas em nível estadual por algumas unidades da federação, como ocorre em Nova York, Califórnia e em outros quarenta e um estados (além de algumas cidades)<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, o que pode elevar a alíquota nominal a até 54,1%.
Sobre Doações e Heranças de HNWIs nos Estados Unidos
Primeiramente é importante esclarecer que as regras relativas à caracterização de HNWIs como os contribuintes do IR em bases universais nos Estados Unidos são distintas daquelas aplicáveis aos tributos sobre transmissão. Dessa maneira, a depender do planejamento adotado, é possível que um HNWIs qualifique-se como residente fiscal nos Estados Unidos para fins de IR, mas não seja considerado domiciliado para fins de tributos sobre transmissão.
Em apertada síntese, sujeitam-se aos impostos sobre doação (Gift Tax) e sucessão (Estate Tax), com alíquotas que podem alcançar até 40% (havendo proposta de majoração, pelo novo governo, para até 45%), as transferências patrimoniais envolvendo cidadãos norte-americanos e indivíduos considerados domiciliados nos Estados Unidos. Há uma presunção relativa de que portadores de green card são domiciliados no país, mas o critério decisivo para essa qualificação é a demonstração de intenção de permanência definitiva, o que é aferido a partir de uma série de indícios fáticos que precisam ser avaliados casuisticamente.
Ressalvadas algumas exceções, HNWIs considerados domiciliados nos Estados Unidos estarão sujeitos aos tributos sobre transmissão relativamente a todas as doações realizadas no curso das suas vidas, bem como sobre heranças e legados deixados no seu falecimento, independentemente da localização dos ativos e dos seus respectivos beneficiários. Assim, a incidência desses tributos poderá alcançar a totalidade dos ativos de HNWIs caracterizados como domiciliados nos Estados Unidos, ao passo que, no caso de HNWIs não-domiciliados, referida incidência apenas recai sobre ativos locais (i.e., situados no território daquele país).
<blockquote class="jota-article__eye">De forma geral, doações, heranças e legados, realizados por transmitentes estrangeiros / não domiciliados nos Estados Unidos, envolvendo ativos no exterior, não se sujeitam à tributação pelo Gift Tax / Estate Tax, ainda que o beneficiário seja cidadão ou indivíduo domiciliado naquela jurisdição.</blockquote>
Além dessa não incidência, é importante destacar também a existência de exclusões relevantes aplicáveis a essas pessoas e que precisam ser avaliadas com precisão — seja em função de limites anuais de transferências isentas, seja em função da destinação dos recursos (e.g., para cobrir despesas médicas ou educacionais), seja em função do limite global de exclusão combinada de Gift e Estate Taxes, que considera todas as transações realizadas ao longo da vida do transmitente até um determinado montante total (esse montante, atualmente, é de aproximadamente USD 11,58 milhões para 2020 e USD 11,7 milhões para 2021, mas há proposta do novo governo de Joe Biden para reduzir essa exclusão para apenas USD 3,5 milhões). Mencione-se, ainda, a possibilidade de os descendentes elegerem uma sistemática de “portabilidade” de eventual montante não utilizado da referida exclusão global; nesse caso, a parcela da exclusão global não utilizada na sucessão do de cujus, pode ser carregada em favor do cônjuge sobrevivente.
Além dos tributos federais sobre doação e sucessão, que recaem sobre o patrimônio do transmitente, algumas unidades da federação impõem ainda: (i) Estate Taxes locais (e.g., Connecticut, Delaware, Maryland, New Jersey, New York, Washington D.C.), e (ii) Inheritance Taxes sobre os beneficiários (e.g., Kentucky, Maryland, New Jersey, Pennsylvania).
Utilização de Trusts 
Tendo em vista o breve panorama apresentado nas seções precedentes, verifica-se que os Trusts podem figurar como um instituto de grande utilidade na estruturação pré-imigratória de HNWIs em processo de mudança de residência para os Estados Unidos.
Já abordamos os aspectos gerais conformadores do Trust em outra oportunidade<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, mas vale aqui repisar que esse instituto é juridicamente legítimo, existente há séculos (particularmente em países de tradição jurídica anglo-saxônica) e se presta a atender a uma grande diversidade de finalidades. Tratando de alguns dos seus propósitos já mencionados, interessa relembrar que o Trust pode figurar como um relevante instrumento de preservação patrimonial e planejamento sucessório.
Assim, por exemplo: eventuais julgamentos que atribuam responsabilidade civil a instituidores ou beneficiários não alcançam ativos geridos sob um Trust bem estruturado; é possível resguardar, ainda, a participação dos beneficiários no patrimônio do Trust com base em previsões que vedem a estipulação de penhor ou qualquer outra garantia sobre tal direito; ademais, o Trust pode facilitar a transmissão de ativos aos beneficiários, provendo maior celeridade e evitando procedimentos burocráticos, muitas vezes impostos para a  validação de testamentos nos Estados Unidos e no exterior; além disso, o Trust oferece flexibilidade para que ativos sejam distribuídos de formas, sob circunstâncias e em períodos diferentes, conforme estipulado pelo instituidor, permitindo, inclusive, a sua destinação a múltiplas gerações.
As implicações fiscais dos Trusts nos Estados Unidos variam significativamente a depender de diversas características pertinentes aos seus aspectos conformadores. Nesse contexto, deve-se avaliar a qualificação do Trust como sendo “U.S.” ou “Non-U.S.”, em função dos chamados “control test” e “court test”. Deve-se examinar também a sua caracterização como “grantor” ou “nongrantor”, a partir de diversos elementos, tais como aqueles referentes aos poderes passíveis de serem exercidos pelo instituidor, à sua revogabilidade, às pessoas que figuram como beneficiárias de distribuições realizadas durante período de vida do instituidor; ao transmitente dos ativos que compõem o patrimônio do Trust, dentre outros.
De modo geral, grantor Trusts revogáveis, sejam eles U.S. ou Non-U.S., são tratados como fiscalmente transparentes, de modo que os ativos e os rendimentos produzidos são diretamente atribuíveis ao seu instituidor. Desse modo, se, por um lado, Trusts revestidos dessas qualificações podem ser interessantes para fins de IR, por outro lado, eles não oferecem proteção quanto à tributação sucessória.
Diversamente, nongrantor Trusts irrevogáveis podem afastar a tributação sucessória sobre os ativos que compõem o seu patrimônio (desde que determinados requisitos sejam observados) e apresentam certa flexibilidade para fins de IR ao serem tratados: (i) de modo semelhante a entidades fiscalmente transparentes, no que diz respeito a rendimentos distribuídos e tributados nas mãos dos beneficiários (tendo em vista a dedução que é permitida relativamente a tal imposição), e (ii) como contribuintes autônomos, tributados separadamente, no que diz respeito aos rendimentos acumulados pelo Trust. Importante destacar que Non-U.S. nongrantor Trusts, podem enfrentar complexidades adicionais e a imposição de alíquotas desfavoráveis em função da aplicação das regras de distribuições acumuladas (accumulation distribution rules).
Diante desse quadro, é possível cogitar-se, ainda, da instituição dos chamados “Intentionally Defective Grantor Trusts” (IDGT), que podem assumir qualificação híbrida, ao serem estruturados como grantor Trusts para fins de IR e como nongrantor Trusts para fins de tributação sucessória. Uma série de outros aspectos relevantes deve ser avaliada, de acordo com as especificidades do caso, sobretudo quanto aos limites e supervisão das funções dos trustes e à conveniência de atribuição de poderes a protectors, comitês de investimentos e outros órgãos.
É importante destacar que todas as questões acima destacadas tornam-se particularmente sensíveis em um contexto pré-imigratório. Dentre outras especificidades, a legislação dos Estados Unidos contém previsão no sentido de que, em determinados casos, a contribuição de ativos para um Non-U.S. Trust, por um HNWI que, nos cinco anos subsequentes, venha a se tornar cidadão ou residente fiscal naquele país, tem o condão de fazer com que tais ativos venham a ser a ele diretamente atribuídos. Na prática, portanto, tal previsão pode transformar um nongrantor Trust em um grantor Trust, relativamente aos ativos transferidos dentro dos cinco anos que antecederam à redomiciliação do HNWI para os Estados Unidos.
Essas breves notas buscaram lançar luzes sobre alguns aspectos relevantes a serem considerados na migração de HNWIs para os Estados Unidos e como a utilização de Trusts pode se mostrar interessante na estruturação do seu planejamento patrimonial e sucessório. A essas notas devem ser somadas inúmeras outras que acomodem devidamente as especificidades dos interesses de cada HNWI, bem como todos os aspectos jurídicos brasileiros relevantes para adaptação da sua estrutura familiar, patrimonial e de investimentos, e para a sua adequada saída do país.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Cf. <a href="about:blank">https://www.visualcapitalist.com/global-migration-of-millionaires/</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Para fins de cômputo das bases tributáveis, rendimentos auferidos em moedas estrangeiras devem ser convertidos para dólares norte-americanos; posteriores operações de efetivas conversões de moedas podem ainda ensejar a apuração de ganhos tributáveis de variação cambial.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Observados determinados requisitos, ganhos de capital e dividendos podem qualificar-se para a aplicação alíquotas preferenciais de 20%, muito embora Joe Biden tenha sinalizado a eliminação dessas alíquotas preferenciais relativamente a montantes que ultrapassem USD 1  milhão.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Cf. <a href="about:blank">https://www.usa.gov/state-taxes</a> ; <a href="about:blank">https://files.taxfoundation.org/20200203173310/PIT-2020-dv2-01.png</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Cf. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abdf/trust-e-suas-repercussoes-fiscais-no-brasil-25052020

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JOTA

Aspectos fiscais e a utilização de Trusts no planejamento fiscal pré-imigratório

Mudança de residência para os Estados Unidos

Aspectos fiscais e a utilização de Trusts no planejamento fiscal pré-imigratório