Opinião e Análise

Luciana Rosanova Galhardo

Desde 2017 o Brasil negocia a sua entrada formal na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o que tem fomentado debates sobre quais seriam os benefícios e prejuízos resultantes dessa eventual adesão. A OCDE, em linhas gerais, opera como fórum para discussões, entre os chamados “países desenvolvidos”, sobre melhores práticas e políticas internacionais em variados setores, como economia, saúde, meio ambiente, educação, dentre outros.
Sob uma perspectiva genérica, certamente a entrada do Brasil na OCDE terá impactos positivos, não somente por representar o ingresso do Brasil ao chamado “clube de países ricos”, mas principalmente por favorecer o ambiente de negócios e expandir os canais de comunicação com esses países desenvolvidos, resultando em maior protagonismo no cenário internacional.
<ul class="jota-article__internal-links">
<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/degustacao/contato-tributario" target="_blank" rel="noopener noreferrer" data-saferedirecturl="https://www.google.com/url?q=https://www.jota.info/degustacao/contato-tributario&amp;source=gmail&amp;ust=1580419636157000&amp;usg=AFQjCNGIHtAJEQ7uvWmXqALbucV54DGhew">Você está preparado para 2020, o ano tributário? Fale com nossos especialistas e não seja pego de surpresa.</a></li>
</ul>
Sem prejuízo das questões políticas que norteiam a ascensão do Brasil ao quadro de países-membros da OCDE, observa-se que há uma série de questões sensíveis que orbitam em torno desse processo, inclusive as de ordem tributária. Isto é, quais seriam as implicações tributárias da eventual adesão do Brasil à OCDE, ou, trocando em miúdos, quais seriam as exigências e adequações desse “clube de países desenvolvidos” para viabilizar o acesso do Brasil aos seus quadros?
Certamente, no contexto econômico e político atual do Brasil, em que se discutem e estão sendo implementadas profundas e importantes reformas em sistemas estruturais (como a trabalhista e a previdenciária, já aprovadas, e a tributária, atualmente em discussão), preocupa-nos que interesses políticos (ingresso do Brasil à OCDE) possam nortear questões tributárias relevantes (exigências de reformas, pela OCDE, na legislação tributária brasileira), sem se atentar às particularidades da realidade brasileira.
Nesses tempos em que “reforma” é a palavra de ordem, um tema específico em matéria tributária, de importância e complexidade relevantes, tem sido objeto de intensos debates e controvérsias no contexto do ingresso do Brasil à OCDE: a alegada necessidade de “convergência” das regras brasileiras de preços de transferência (previstas pela Lei nº 9.430/96) ao modelo preconizado pela OCDE (cujas diretrizes constam dos chamados Guidelines da OCDE).
Em breve síntese, as regras de preços de transferência brasileiras têm a finalidade de evitar a transferência de lucros tributáveis do Brasil para o exterior, em operações de importação e exportação (com bens, serviços e direitos), além de operações financeiras (empréstimos), contratadas com partes vinculadas (integrantes de um mesmo grupo econômico, ou localizadas em “paraísos fiscais”) no exterior.
O chamado “modelo brasileiro”, embora “inspirado” nas Guidelines da OCDE, apresenta uma metodologia própria para o chamado controle de preços de transferência, pautada essencialmente na praticabilidade e simplicidade de apuração (pelo Fisco e pelos contribuintes), decorrente das chamadas “metodologias de margens fixas", para obtenção do preço parâmetro (que constitui, em linhas gerais, no lucro mínimo a ser tributado no Brasil em operações internacionais entre partes vinculadas).
Neste ponto, o modelo brasileiro realmente se distancia do modelo OCDE, cujas Guidelines estabelecem uma metodologia mais complexa, morosa e custosa (tanto para os Fiscos como para os contribuintes) para determinação do chamado “melhor método” (best method approach), a partir dos testes de todas as possíveis metodologias, viabilizando inclusive a realização de acordos mútuos e ajustes correspondentes, com o intuito de identificar parâmetros que estejam de acordo com o princípio arm’s length (que busca equiparar preços praticados entre partes vinculadas aos que seriam praticados em condições normais de mercado) e afastar situações de dupla tributação (e também de dupla não tributação).
Desde 2018, OCDE, Receita Federal do Brasil (RFB) e Confederação Nacional da Indústria (CNI) promoveram congressos e debates, com o intuito de identificar os pontos de convergência e divergência entre o modelo brasileiro e o modelo OCDE, em matéria de preços de transferência.
Essas reuniões resultaram em uma série de estudos, cujas conclusões foram consolidadas em um extenso e recente relatório (Relatório Conjunto)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, publicado conjuntamente por OCDE e RFB. As 329 páginas do Relatório Conjunto cuidam de abordar, minuciosamente, todos os pontos de convergência e divergência entre o modelo brasileiro e o modelo OCDE, seus prós e contras, em matéria de preços de transferência.
<blockquote class="jota-article__eye">A existência de um documento dessa magnitude revela não apenas a clara divergência entre os modelos, mas, principalmente, a complexidade e a relevância da matéria, tanto para o Brasil quanto para a OCDE.</blockquote>
Com efeito, sob a perspectiva brasileira, o enfoque é preservar a praticabilidade, simplificar a apuração e o controle dos preços de transferência e garantir a tributação de lucros mínimos tributáveis no Brasil, garantindo a entrada de capital estrangeiro no país e minimizando a perda de arrecadação tributária. Sob a perspectiva da OCDE, parece-nos que o intuito da Organização é o de apontar as falhas do modelo brasileiro e, consequentemente, promover a convergência entre os modelos, a partir da reforma da legislação brasileira de preços de transferência, para que esta se adeque ao modelo OCDE.
Além de a convergência ser uma tarefa hercúlea (tanto assim que o relatório, em suas 329 páginas, não cuida de apresentar um roteiro prático ou alternativa viável para a convergência dos modelos), a reforma da legislação de preços de transferência, para que suas diretrizes passem a refletir o modelo preconizado pelas Guidelines da OCDE, pode não representar exatamente um “avanço” e, mais do que isso, pode acarretar “retrocessos” sob a perspectiva da arrecadação e administração tributária, como já abordado pela doutrina especializada<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Observa-se que o Relatório Conjunto avalia as lacunas e divergências das regras brasileiras (em comparação com o modelo OCDE) a partir de 5 critérios/objetivos principais, quais sejam: (i) garantir a base tributável apropriada em cada jurisdição; (ii) evitar a dupla tributação (e a dupla não tributação) da renda; (iii) simplificação da administração tributária; (iv) facilidade da conformidade tributária; e (v) segurança jurídica, sob a perspectiva brasileira e internacional. É consenso que o modelo brasileiro atende, com louvor, aos requisitos (iii) a (v) acima, estando as falhas da legislação brasileira concentradas nos itens (i) e (ii).
Sem prejuízo de todas as demais questões que norteiam a complexa seara dos preços de transferência, não é de hoje (e não foi o Relatório Conjunto que trouxe inicialmente esse apontamento) que se sabe que a metodologia de margens fixas é a origem de praticamente todas as virtudes e defeitos das regras brasileiras de preços de transferência.
É a metodologia de margens fixas que permite ao Fisco e aos contribuintes, com facilidade, identificar os preços parâmetros (simplesmente aplicando uma margem fixa sobre um custo operacional ou sobre um valor de revenda), os quais são comparados com os valores das operações praticadas entre partes vinculadas, para se determinar se o preço da transação deve ou não ser ajustado para fins tributários. Essa metodologia simples, além de reduzir custos e simplificar a tributação, reduz a quantidade de disputas entre Fiscos e contribuintes, garantindo transparência e segurança jurídica. Eis porque o modelo brasileiro atende aos critérios (iii) e (v) do Relatório Conjunto, e o modelo OCDE não.
A mesma metodologia, contudo, por estar baseada em margens fixas que não necessariamente refletem a realidade de mercado (isto é, o padrão arm’s length), pode resultar (e resulta de fato, em muitas situações concretas) em distorções, caracterizadas por cenários de dupla tributação, ou de dupla não tributação, muito bem detalhados ao longo do Relatório Conjunto. Para mitigar tais distorções, reconhecemos, o modelo OCDE possui mecanismos mais eficientes que o modelo brasileiro, embora sua aplicação resulte em excessivos custos e morosidade (o que comprometeria, necessariamente, a praticabilidade e simplicidade que são os grandes trunfos do modelo brasileiro).
Assim, em resumo, a busca contínua e irrestrita pelo padrão arm’s length, preconizada pelo modelo OCDE, se tornou custosa e complexa. Sua subjetividade perde para a objetividade para as regras brasileiras.
<blockquote class="jota-article__eye">O modelo OCDE deixa justamente de capturar a sinergia de empresas do mesmo grupo econômico ao impor que apurem seus preços como se estivessem negociando com terceiros independentes.</blockquote>
A solução do dilema, portanto, não nos parece ser a simples introdução do modelo OCDE em substituição ao modelo brasileiro. Pelo contrário, o caminho mais adequado a ser percorrido parece ser o de aperfeiçoar o modelo brasileiro, que inclusive poderia servir de inspiração, em muitos de seus pontos, ao aprimoramento do próprio modelo OCDE.
Deve-se reconhecer que a legislação brasileira sofreu significativo avanço no que diz respeito à sua metodologia de margens fixas, em especial as aplicáveis ao método do preço de revenda menos lucro (PRL), o mais largamente utilizado no Brasil. Em um primeiro momento, houve um intenso contencioso entre Fisco e contribuintes, acerca da legalidade das instruções normativas (INs) que regulavam a aplicação do aludido método (período entre 1996 e 2012, de vigência das INs 38/97, 32/01 e 243/02). Em 2012, a Lei nº 9.430/96 foi reformada pela Lei nº 12.715/12, sendo criado um “novo PRL”, no qual as margens fixas de 20% e 60% (aplicáveis, respectivamente, a importações de produtos acabados e a importações de insumos destinados à produção local) foram substituídas por margens fixas de 20% a 40% (variáveis conforme o segmento econômico de atuação dos contribuintes).
A nova legislação fez reduzir drasticamente o volume de autuações e disputas entre Fisco e contribuintes em matéria de preços de transferência, conciliando praticabilidade a um cenário de maior certeza jurídica. Contudo, não foram solucionadas as distorções causadas pela aplicação indistinta das margens fixas, em especial as situações de dupla tributação (ajustes simultâneos no Brasil e no exterior) e dupla não tributação (ausência de ajustes no Brasil e no exterior).
Portanto, embora a legislação brasileira nitidamente tenha evoluído ao longo dos anos, é nítido que ainda precisa de aprimoramentos. A otimização do modelo brasileiro dependeria da criação de mecanismos práticos para a utilização de margens alternativas (em substituição à Portaria RFB nº 222/08 e à IN nº 1.312/12), para a realização de ajustes correspondentes (afastando as limitações dos Tratados Brasileiros, que descartam esse mecanismo, contrariando os demais assinados por outros países), dentre outros (criação de regras específicas para intangíveis, serviços intragrupo, reestruturação de negócios, rateio de custos, atribuição de lucros a estabelecimento permanente, métodos alternativos – TNMM e PSM, MAPs e APAs, etc.), para os quais a legislação brasileira ainda requer considerável aprimoramento.
O enfoque nesse aperfeiçoamento deve constituir o norte de nossos representantes, tanto nos projetos de reforma tributária como nas negociações para ingresso do Brasil nos quadros da OCDE. A simples adesão ao modelo OCDE não nos parece a melhor alternativa, em especial em matéria de preços de transferência. Há um longo caminho a percorrer, mas cada passo deve ser dado com extrema responsabilidade e cautela em defesa dos interesses nacionais.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> OCDE/Receita Federal do Brasil (2019). Transfer Pricing in Brazil – Towards Convergence with the OECD Standard, OECD, Paris, <a href="http://www.pecd/tax/transfer-pricing/transfer-pricing-in-brazil-towards-convergence-with-the-oecd-standard.htm">www.pecd/tax/transfer-pricing/transfer-pricing-in-brazil-towards-convergence-with-the-oecd-standard.htm</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Dentre outros, fazemos referência ao Manifesto à declaração conjunta sobre projeto de preços de transferência OCDE-Brasil, de 25.7.2019, assinado pelos Professores Heleno Taveira Torres, Luís Eduardo Schoueri, Romero J. S. Tavares e Sérgio André Rocha.

Tributário

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Simples adesão ao modelo OCDE não parece a melhor alternativa, em especial em matéria de preços de transferência

Brasil, OCDE e os reflexos tributários para a legislação de preços de transferência

Simples adesão ao modelo OCDE não parece a melhor alternativa, em especial em matéria de preços de transferência