Opinião e Análise

Fernando Facury Scaff

<a href="applewebdata://4524DB47-33B2-4F41-8A55-2BC5A158B340#_ftn1" name="_ftnref1"></a>
Este texto surge em decorrência do debate que vem sendo travado no âmbito das ADIs 6.399, 6.403 e 6.415, nas quais se discute a questão do voto de qualidade no CARF. Tecnicamente alega-se a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 13.988/20, que inseriu o artigo 19-E na Lei 10.522/02, que passou a determinar que “em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade (...), resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.”
Muitos Amigos da Corte (amicus curiae) foram admitidos na lide, dentre eles o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA), em nome de quem peticionei apresentando memoriais e, como se trata de julgamento em Plenário Virtual, gravei sustentação oral – tudo nos autos.
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Em breve síntese, expõe-se que o conjunto das 3 ADIs não merece prosperar, sendo plenamente constitucional a alteração efetuada. Analisemos apenas dois argumentos: o processual/formal e o de mérito.
O argumento processual/formal é que no curso do trâmite legislativo o Congresso apresentou uma emenda parlamentar introduzindo o artigo alegadamente inconstitucional, sem que haja pertinência temática com o texto original da MP enviada, caracterizando-se, portanto, como um “contrabando normativo” ou mesmo um “jabuti”, como referido pelas ADIs.
Este argumento é relevante, porém não está presente no caso concreto, pois a matéria constante da MP 899/19, que foi transformada na Lei 13.988/20, através do Projeto de Lei de Conversão (PLV) 2/20, dispunha de matéria tributária desde sua origem. Durante o trâmite legislativo foi acrescido um artigo, que se transformou no art. 28 da Lei 13.988/20, ora contestado, que igualmente trata de matéria tributária.
O ministro Marco Aurélio, relator das ADIs, depositou seu voto no site do Plenário Virtual do STF, e aponta a inconstitucionalidade desse procedimento. Alega que “não se deve confundir pertinência com identidade de objeto. Eventual emenda deve ter conexão com o diploma editado pelo Presidente da  República”. Nesse sentido, prossegue o ministro, “não há conexão da matéria com o texto original”.
Seguramente esse argumento do ministro merece todo o respeito, bem como quem entende no mesmo sentido, porém não me parece a melhor interpretação no caso concreto. Há que se fazer uma distinção (distinguishing) com os precedentes mencionados pelas ADI e acatados pelo relator. Comecemos pelos dois precedentes.
A ADI 5127, relatada pelo ministro Fachin, não serve como precedente para o presente caso, pois a emenda parlamentar imputada como inconstitucional introduziu normas que diziam respeito à profissão de contabilista, porém, em sua origem a MP 472 tratava de diversas normas relativas a benefícios fiscais, como o RENEPEC, PROUCA, RETAERO etc. Logo, a disparidade entre os assuntos constantes dessa MP e os introduzidos pela emenda parlamentar é abissal.
O mesmo ocorre com a ADI 5012, relatada pela ministra Rosa Weber, pois durante a tramitação da mesma MP 472, já atacada pela ADI 5127 e que tratava de incentivos fiscais (RENEPEC, PROUCA, RETAERO etc.), foi apresentada e aprovada uma emenda parlamentar criando e estabelecendo os limites da Floresta Nacional Bom Futuro, no Estado de Rondônia. Aqui também há uma incrível dissensão temática entre o que foi apresentado ao Congresso, através da MP 472, e a emenda aprovada. Logo, esse caso também não serve como paradigma.
Retorne-se ao caso concreto em debate nas 3 ADIs: a MP 899 tratava de matéria tributária e a emenda parlamentar apresentada e aprovada também trata, inegavelmente, de matéria tributária. Logo, os precedentes mencionados não possuem o condão de afastar sua legitimidade democrática – goste-se ou não do resultado do processo legislativo. O STF não pode funcionar como instância revisora de decisões políticas estabelecidas no seio do Poder Legislativo, sob pena de invasão de funções – e, aí sim, perverter a Separação de Poderes.
Observe-se com microscópio esse argumento acatado pelo voto do ministro relator, Marco Aurélio. Diz S.Exa.: “Durante a tramitação do Projeto de Lei de Conversão nº 2/2020, inseriu-se previsão sem afinidade com o conteúdo, a revelar disciplina concernente à regra de julgamento no processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário.” E prossegue, apontando a linha de seu voto: “A arguida inconstitucionalidade decorreria do abuso desse poder, mediante enxerto, no âmbito parlamentar, durante a fase de conversão em lei, de dispositivo voltado a disciplinar tema sem relação com a proposição original, prática conhecida como ‘contrabando legislativo’ – o famoso ‘jabuti’ –, a resultar na transgressão aos princípios democrático e do devido processo legislativo”.
Não é bem assim. O que ocorreu durante o trâmite legislativo foi o privilegiamento do Princípio Democrático, ínsito ao Congresso Nacional, no âmbito federal e nacional, e presente nas Assembleias Legislativas e Câmaras dos Vereadores Brasil afora. O voto do Exmo. Ministro, neste tópico, acaba por reforçar a concentração de poderes no Poder Executivo de todos os entes federados, o que vai exatamente contra o Princípio da Separação de Poderes, constante do art. 2º, caput, CF.
Observe-se um detalhe de suprema importância: não existe emenda parlamentar em Medida Provisória; existe emenda parlamentar em Projeto de Conversão de Medida Provisória. E, no presente caso, como descrito em seu voto, se tratou de uma emenda parlamentar aglutinativa, isto é, resultante de múltiplas negociações e composições políticas, que se transformaram em norma dentro do Parlamento – como sói acontecer.
Um paradigma contemporâneo pode ajudar na análise: a recém aprovada EC 109/21, que reintroduz regras financeiras e orçamentárias para o enfrentamento da pandemia, não continha em sua origem o art. 2º, que modificou o art. 101 do ADCT. Como é sabido, a PEC na qual se transformou a EC 109 nada dispunha sobre a prorrogação do prazo de pagamento de precatórios estaduais e municipais, porém, durante seu trâmite legislativo, esta norma (art. 2º) foi inserida pelos parlamentares, e se transformou em norma constitucional transitória, realizando novo calote nos credores e desmoralizando as decisões judiciais pendentes de pagamento.
Pode-se dizer que essa norma (art. 2º, EC 109) é inconstitucional e se caracteriza como um jabuti? Obviamente não, a despeito de não constar esse específico artigo na origem da PEC, surgindo em sua tramitação e se transformando na EC 109. Pode-se, com alguma largueza, considerar que a prorrogação do pagamento de precatórios aliviará o caixa dos Estados e Municípios, favorecendo o combate à pandemia – logo, em princípio, não há jabuti parlamentar nesse caso.
Caso venha a ser reconhecida a prática de contrabando normativo no art. 28 da Lei 13.988/20, incontáveis outras normas serão contrastadas perante o STF sob o mesmo argumento – como a que exemplificativamente se apontou na EC 109, acerca da prorrogação dos precatórios.
Passemos agora à análise de mérito do caso. O que se debate é a aplicação do princípio da presunção de inocência, através do uso do mecanismo in dubio pro reo ao processo administrativo tributário, isto é, in dubio pro contribuinte. A conclusão é de simples compreensão.
Reivindicações muito antigas da sociedade (interesse social, que é diferente do interesse privado/individual, bem como do interesse público/estatal) encontraram eco no Congresso, e, de forma legal e legítima, foi alterada a norma que estabelecia o voto de qualidade no CARF, que, em concreto, era in dubio pro Estado para in dubio pro reo. Isso nada mais é do que fazer prevalecer a presunção de inocência no processo administrativo tributário, e, havendo empate na votação, constata-se haver dúvida razoável na situação em debate, e não se pode condenar alguém se as provas e as análises jurídicas não apontam para a condenação além de qualquer dúvida razoável.
<blockquote class="jota-article__eye">Deve-se considerar a proximidade entre o processo administrativo fiscal e o processo penal. Este se inicia com uma denúncia contra uma pessoa, que se torna acusada de ter cometido um crime; e aquele, processo administrativo fiscal, se inicia com um Auto de Infração, no qual uma pessoa é acusada de ser devedora de determinados valores.</blockquote>
Um tem por escopo regular o direito fundamental de liberdade; o outro, regula o direito fundamental sobre o patrimônio. Os dois processos devem tramitar à luz das garantias processuais. Ambos, em caso de empate, devem ser orientados para a aplicação do in dubio pro reo, garantindo presunção de inocência.
Se algum julgador no CARF, contribuinte ou auditor fiscal, agir de forma irregular, existe toda uma gama de normas que devem ser utilizadas para sua punição, sejam administrativas, penais, civis etc. Aliás, em passant, foi amplamente divulgada na semana passada a fortíssima coação efetuada pelo Presidente de uma das Turmas Julgadoras do CARF sobre Conselheiros representantes dos contribuintes que apresentaram votos distinguindo no caso concreto a aplicação de uma Súmula do próprio CARF. Houve ameaça de ser instaurado processo administrativo disciplinar pelo Presidente daquela Turma se insistissem naquele voto, o que bem demonstra como os contribuintes, e seus representantes, vêm sendo tratados naquele Tribunal administrativo, de glorioso passado. Pode não parecer, mas tudo isso passa pela presunção de inocência.
Essa é, de certa forma, a análise do ministro Marco Aurélio, relator das 3 ADIs. Embora tenha votado pela inconstitucionalidade formal, na linha acima exposta, da qual divergimos, o ministro avançou em seu voto e analisou também o mérito do debate, afirmando que “a adoção, no contencioso fiscal, de solução favorável ao contribuinte, em caso de empate na votação, não conflita com a Constituição de 1988. É opção legítima e razoável do legislador, estando em harmonia com o sistema de direitos e garantias fundamentais”.
E faz uma distinção muito interessante em seu voto, ao asseverar que “com o artigo 19-E, não se criou – nem faria sentido falar de – voto de qualidade em benefício do contribuinte, sujeito passivo da obrigação tributária, parte mais fraca da relação, que oferece resistência contra o Estado todo-poderoso. Inexiste estipulação de duplo voto ou peso maior da manifestação de certo integrante, em caso de empate. A leitura do preceito direciona a concluir que, uma vez não formada maioria no colegiado, não se tem confirmado o lançamento do tributo”. Corretíssimo o Ministro no que tange ao mérito, que acaba por privilegiar o in dubio pro reo, o que nada mais é do que privilegiar a presunção de inocência dos contribuintes.
Na verdade, o que se denominava de voto de qualidade no CARF estava incorreto, pois o que se praticava era o voto duplo, pois, sendo paritária sua composição, um mesmo julgador, sempre indicado pelo Fisco, votava duas vezes.
Esta é uma questão que se coloca desde a origem dos tempos. Na Grécia clássica este tipo de preocupação já estava presente, como se pode ver na peça de teatro denominada Eumênides, escrita por Ésquilo, representada pela primeira vez 458 anos antes de Cristo. Nela, Orestes é perseguido pelas Fúrias por ter matado sua mãe, a qual havia matado seu marido e pai de Orestes. Orestes é réu confesso, mas pede absolvição por ter agido para vingar a morte de seu pai, cometida pela mãe. Levado à presença de Minerva, deusa da sabedoria, ela cria e convoca um tribunal dentre os habitantes da cidade de Atenas para julgar o acusado, e menciona “Serei a última a pronunciar o voto, e o somarei aos favoráveis a Orestes. Para que este vença, basta que os votos se dividam igualmente”. O julgamento acabou empatado e o voto da deusa Minerva foi pela absolvição do acusado. Surge daí a expressão “voto de minerva” que é a regra usada nos órgãos colegiados para decidir um processo em caso de empate envolvendo direitos fundamentais – pro reo.
O que o Congresso fez, ao extinguir o voto duplo no CARF, e introduzir o in dubio pro contribuinte, está completamente de acordo com a Constituição e com o direito que ancestralmente se pratica<a href="applewebdata://4524DB47-33B2-4F41-8A55-2BC5A158B340#_ftn2" name="_ftnref2">[1]</a>, não havendo nenhuma mácula em seu trâmite ou em seu conteúdo. Inconstitucionalidade havia no sistema anterior, de voto duplo, já revogado pela norma que está em julgamento.
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O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute a crise militar e seu impacto no Supremo Tribunal Federal. Ouça:
https://youtu.be/WAU2xWiR5DQ
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<a href="applewebdata://4524DB47-33B2-4F41-8A55-2BC5A158B340#_ftnref2" name="_ftn2">[1]</a> Uma versão mais completa dos argumentos pode ser encontrada em: SCAFF, Fernando Facury. Processo fiscal, princípio inquisitivo e teoria da prova ou porque a execução fiscal deve ter como legislação subsidiária o CPP e não o CPC. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2010. v. 14, p. 72-89. ISBN: 857500252.

Carf

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JOTA

Inconstitucionalidade havia no sistema anterior, de voto duplo, já revogado pela norma que está em julgamento

ADI 6399: presunção de inocência e In Dubio Pro Contribuinte no Carf

Inconstitucionalidade havia no sistema anterior, de voto duplo, já revogado pela norma que está em julgamento