Opinião e Análise

Daniel Dix

Ao celebramos a chegada de 2021 e após uma breve reflexão sobre o ano que passou, a partir de uma visão estoica, temos que a nossa sociedade, por mais planejamento que se proponha, sempre estará sujeita a fatos e circunstâncias imprevisíveis provenientes das forças da natureza ou das próprias ações humanas, sobre as quais não temos o mínimo controle, porém é com base nesses eventos, muitas vezes de cunho negativo, que passamos a evoluir como corpo social e, também, como indivíduo.
A imprevisível pandemia causada pelo vírus Sars-CoV-2, que assolou o mundo no ano que passou, e ainda nos aflige, impôs à ordem mundial, num curtíssimo prazo, consequências sanitárias, sociais e econômicas incomensuráveis, no que passou a se denominar como um "novo normal".
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Ruas desertas, restrições na liberdade de locomoção, fábricas paralisadas, alto-fornos desligados, aeroportos e rodoviárias praticamente vazias, pequenos comércios e restaurantes fechando, dentre outras providências, remédios mais do que amargos na tentativa de limitarmos e restringirmos a disseminação da doença, a sobrecarga do sistema de saúde, e a redução do número de mortes, fez com que a circulação e consequente distribuição de riquezas ficassem extremamente reduzidas no Brasil e no mundo. Uma crise sem precedentes, comparável em tempos modernos à grande depressão de 1929.
A história nos demonstra, contudo, que a humanidade tem uma grande capacidade de se reinventar e sair de situações adversas, fazendo valer o dito popular: "do limão uma limonada".
Em termos científicos e sanitários, nunca se discutiu e pesquisou, em tempo recorde, alternativas para mitigarmos ou mesmo eliminarmos os efeitos nocivos do vírus, e já temos o surgimento de vacinas e terapias que são alvissareiras para o ano que se inicia.
No âmbito econômico e social, mais uma vez o mundo se curvou à teoria de Lord John Maynard Keynes, para quem o Estado tem o dever de socorrer seus cidadãos e contribuintes, fomentando a economia por intermédio do seu poderio financeiro em situações de grandes crises cíclicas do capitalismo, e que nos assolam de tempos em tempos, de forma a conferir um mínimo de dignidade às pessoas num momento conturbado e de total desequilíbrio dos fatores de produção, fato que causa calafrios aos economistas alinhados à escola clássica e mais liberal, que, por sua vez, até hoje, não conseguiu formular a contento um mecanismo tão eficiente de socorro monetário em tempos de crises e dificuldades econômicas como o que estamos passando atualmente.
Nessa linha de raciocínio, no Brasil, mesmo com a pasta da Economia no âmbito federal sendo capitaneada por um discípulo do liberalismo econômico clássico, o caminho não foi diferente daquele trilhado pelas principais economias do mundo, ao se valer de políticas econômicas intervencionistas, mediante a concessão de auxílio financeiros individuais, acessão de linhas de créditos especiais a empresas e pequenos empresários, postergação do vencimento de alguns tributos federais, instituição da transação tributária, possibilidade de redução de jornada e salários com o objetivo de se manter os empregos, dentre outras medidas.
As quais apesar terem conferido algum fôlego financeiro, principalmente às grandes empresas, ainda foram tímidas e criticadas por muitos, pois não tiveram o condão de manter minimamente as atividades econômicas e estabilidade do PIB.
<blockquote class="jota-article__eye">Se no âmbito federal as medidas econômicas e fiscais poderiam ter sido mais efetivas, nos estados e municípios elas praticamente inexistiram, corroborando a tese daqueles que defendem que vivemos em um estado federal "centralizado".</blockquote>
É fato que, em tempos de crise econômica, como a que estamos atravessando e diante da ausência de auxílios econômicos totalmente eficazes por parte dos governos, quando as atividades empresariais não conseguem fazer o seu resultado contábil e financeiro através do desenvolvimento das suas operações normais (venda, produção, prestação de serviços), seus sócios e administradores voltam seus olhos para a contabilidade, no intuito principal de reduzirem custos e despesas e salvar caixa.
Dentro desse contexto, o ICMS, um tributo de natureza não cumulativa e competência estadual pode ganhar especial relevância nessa empreitada, uma vez que possibilita o reconhecimento de créditos por parte dos contribuintes, nos estritos termos da legislação tributária, e, consequentemente, a redução ou adequado reconhecimento do custo da mercadoria vendida ou do produto vendido, pois guarda direta ligação com a classificação fiscal e destinação dos materiais por eles adquiridos, seja para revenda ou para utilização na linha produtiva.
A análise criteriosa dos materiais cuja aquisição é passível de apropriação da parcela do referido imposto deve ser considerada, portanto, como sendo suma importância, tendo em vista que nem toda compra realizada pode induzir a possibilidade de geração de crédito, nos termos da legislação infraconstitucional, isso porque, em que pese o art. 20, caput, da LC nº 87/1996 ter adotado o conceito de crédito financeiro para fins de apropriação do ICMS incidente nas aquisições por parte dos contribuintes, ainda perdura nos termos do art. 33, inciso I do referido diploma a vedação até janeiro de 2033 da apropriação de créditos sobre os denominados bens de uso e consumo.
Fato que autoriza as autoridades fazendárias estaduais a terem uma visão mais restritiva, enquadrando dentro do conceito de uso ou consumo itens que poderiam ser considerados como produto intermediário e bens destinados ao imobilizado de forma a ensejar o direito ao crédito, no simples objetivo de incrementar a sua arrecadação, face à ausência de uma norma geral nacional específica que defina com exatidão o que seja bem de uso e consumo.
Tendo em vista a ausência de definições claras, a tarefa de classificar os bens e materiais adquiridos por uma Sociedade contribuinte como item gerador de crédito de ICMS pode ser considerada das mais complexas e relevantes, considerando a autonomia dos Estados da Federação no que tange à normatização da matéria e subjetividade na interpretação e aplicação correta dos ditames da LC nº 87/1996, especificamente em relação ao conceito do que seja insumo, material intermediário, bens de uso e consumo e item destinado ao ativo imobilizado.
Assim, é comum, de tempos em tempos, que os contribuintes do ICMS, especialmente em tempos de crise, revisitem o seu cadastro de materiais no intuito de revisar a classificação fiscal a eles conferida e adequá-la, de acordo com as características e aplicabilidade de cada item, ao mais recente entendimento interpretativo das autoridades fiscais estaduais e também à jurisprudência prevalente no âmbito dos tribunais superiores.
Nesse aspecto, a partir do trabalho periódico de avaliação e reclassificação fiscal dos itens cadastrais por parte dos contribuintes do ICMS, pode surgir a possibilidade do reconhecimento extemporâneo de eventual crédito do imposto que não fora oportunamente capturado nos livros fiscais, seja por equívoco de avaliação por ocasião da entrada do bem no estabelecimento, ou mesmo em razão da evolução interpretativa do Fisco ou dos Tribunais quanto ao seu correto enquadramento.
Assim, na hipótese de os contribuintes do ICMS identificarem operações de entrada, tendo em vista a revisão do seu cadastro de materiais, e relativamente às quais os documentos fiscais foram devidamente escriturados, mas sem a correspondente apropriação do crédito conforme o valor de tributo neles destacados.
Surge o direito legítimo de reconhecer o referido crédito de forma extemporânea, desde que observado o prazo decadencial de 5 (cinco) anos, o que propiciará não apenas o ajuste do custo contábil nas suas operações futuras, mas também na observância de um incremento do resultado contábil do exercício face ao reconhecimento de um novo ativo (crédito extemporâneo do ICMS) em contrapartida à conta de receita.
Contudo, em razão de os Estados federados, no mais das vezes, não seguirem uma política que implique em austeridade e responsabilidade fiscal, tenta-se, a todo custo, limitar e restringir o direito ao desconto de crédito de ICMS por parte dos contribuintes, seja mediante uma ação subjetiva de seus agentes no sentido de não reconhecerem um determinado item ou produto como essencial (insumo, produto intermediário ou bem destinado ao ativo) reclassificando-o como de uso e consumo e glosando o crédito.
Ou exigindo na hipótese de apropriação extemporânea de créditos identificados, autorização prévia para que o contribuinte o lance em sua escrita fiscal,  objetivando, nesse caso, fazer um juízo de valor quanto a sua adequação e pertinência de forma apriorística.
Em síntese, tem-se que o critério utilizado por boa parte dos entes federados para fins de definição de um item como sendo intermediário, e não de uso e consumo é o do contato físico do bem com a matéria-prima a ser transformada, independentemente da sua essencialidade no processo produtivo, quando inexiste essa previsão na LC nº 87/96, que, como mencionado, optou pelo conceito de crédito financeiro.
Porém, a possibilidade de apropriação do ICMS referentemente à aquisição de materiais intermediários independe, vale ressaltar, de qualquer contato físico e direto com o produto final e de sua aplicação em linhas principais ou marginais, sendo que a definição do que seja bem de uso e consumo deve ser feita de forma residual, avaliando-se a essencialidade de cada item dentro do processo produtivo, essa posição ademais já foi exarada pelo STJ (REsp. nº 1.366.437, relator ministro Benedito Gonçalves, D.J.U. de 03/10/2013; e STJ, AgRg no Agravo em REsp. nº 142.263, relator ministro Benedito Gonçalves, D.J.U. de 19/02/2013).
Deve ser ressaltado que há uma tendência do STF hoje em rejeitar a apreciação da matéria, por considerar que se trata de questão sujeita à interpretação da legislação infraconstitucional, o que se faria a partir de uma interpretação partindo do racional trazido pela LC nº 87/96, o que deixaria o tema circunscrito tão-somente a análise por parte do STJ, em que pese essa mesma Suprema Corte ter se manifestado recentemente no sentido de que a não cumulatividade do ICMS ainda estaria atrelada à ideia de crédito físico, nos termos de decisão monocrática proferida pelo min. Dias Tóffoli (RE. nº 689.001, rel. min Dias Toffoli, 22.06.2017), tem-se que a questão ainda se vê como não definida, a depender do caso analisado, até porque, em nossa opinião, partiu-se de premissas equivocadas e utilizadas ainda sob a égide do Convênio nº 66/88 há muito revogado.
Com base nessas premissas, e independentemente de qualquer proposta de reforma tributária futura que vise extinguir o ICMS, tem-se que o atual cenário de crise econômica pode ser muito favorável aos contribuintes do referido imposto no sentido de revisitarem os seus cadastros de materiais de modo a perquirirem a sua correta classificação fiscal para fins de apropriação do ICMS a partir do conceito de crédito financeiro, sendo irrelevante para tanto o contato físico, mas sim de suma importância a sua essencialidade na linha produtiva.
Somente a partir desses procedimentos, os contribuintes poderão provocar os tribunais no intuito de uniformizar e consolidar a jurisprudência a esse respeito, ou mesmo forçar as Casas Legislativas Federais a deliberarem Lei Complementar que defina o conceito de material intermediário e bem de uso e consumo, de forma a nos conferir maior segurança jurídica nesse aspecto.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE

Cédulas de dinheiro. Foto: Marcos Santos/USP Imagens

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JOTA

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